Superfícies e subterrâneos
A vida, em certo ponto do tempo, me deixou
com a impressão de que tudo começa e acaba diariamente. Um instante é a
claridade, outro, o espasmo do escuro. Não obstante, eu resisto e sobrevivo em
meu espelho, entre traços de memória e simples rugas que desencobrem a finitude.
Rodopio no redemoinho dos relógios, sem discernimento dos começos e fins,
atordoado pelo cotidiano, conhecendo apenas o tempo trivial, mas nunca o sem
tempo, outro nome do eterno. Estou no mundo, sozinho nas multidões, tateando no
meio dos ruídos, sabendo que no acerto das contas o resultado final é o
silêncio irreversível.
Fujo;
todos os dias eu fujo; escapo das ruas, escapo dos ruídos, escapo da poeira; eu
me transformo em vento e planta, eu me disfarço de rocha, eu me esculpo em
argila, numa evasão incessante sob as chuvas cálidas que fazem brotar tudo que
já morreu. Sempre que chove calidamente, uma semente se retesa para aflorar na
terra, um pássaro salta do ninho para as nuvens, uma mulher se prepara para
acolher em si, amorosamente, o corpo de alguém.
Por que o homem vive tão diferente dos bichos e das plantas,
que não se preocupam com mortalidade? Ou
mesmo das rochas que se deixam amar pelos ventos, numa dança sensual de
saltimbanco? Isso é tudo; e isso é nada; e isso é o bastante: a vida, tal qual
ela é: às vezes tão clareada, outras vezes tão sombria, mas ainda assim vida.
Para que escrever tantos versos, se basta a poesia do amanhecer e do
anoitecer?
Até acho que a vida, fora do poema escrito, é mais poesia do
que se pode supor. Mesmo sendo vida transitória, sujeita à aniquilação. Mas a
gente escreve por causa do medo de desaparecer e ser esquecido. Almeja-se fazer
de cada vida corriqueira um destino monumental. Talvez por isso, então, com esse
desesperado intuito de atenuar o horror à finitude, tenhamos inventado a
escrita rupestre, os hieróglifos e os pergaminhos, a prensa e os livros, a
poética da memória. Deve haver, pois, algum antídoto de resistência na palavra,
certo vigor arcaico para se enfrentar a morte, não com punhais e metralhadoras,
nem com lágrimas e rezas, nem com apatia ou desespero, mas com uns poucos
versos de bravura, guerrilha e barricadas; de um lado o homem, sua nudez, sua
fraqueza; do outro, uma metafísica monumental e incompreensível.
Como viver, então, em conluio ou em confronto com o outrora,
o hoje, o amanhã e, principalmente, o depois de tudo que ninguém sabe como é?
Talvez a gente precise aprender a viver como um rio desassossegado e suas
águas-bailarinas, que ora são águas de nascente, ora águas de correr nas
ribanceiras e planícies, ora águas que se abandonam de vez à vastidão da foz.
Abandono, perda, tristeza. É o que se sente quando o rio desaparece no delta. Mas
a melancolia é somente um instante prolongado de sombra em meio aos outros
instantes de esplendor na vida. Segue-se a vida enigmática. Os enigmas são como
nascentes e poentes, ou como superfícies e subterrâneos, inclusive o mistério
de morrer. Pode ser que, depois da morte, não haja claridade ou treva, nem
lugar algum; pode ser assim e pode ser o contrário. Que importa isso? Durar ou
dissipar. Isso é o de menos. A vida é para sempre enquanto for lembrada. Quem
há de morrer no vigor resistente da memória e da palavra?
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Os setenta
e cinco mil
Ontem de madrugada
bem cedinho
Passou na rua um povinho
Cantando
tristemente.
Um povinho que não
era mais gente...
Almas posseiras da
calçada,
Buscavam um sol que
cintilava
Muito no outrora,
antigamente,
Quando eles eram
simples gente...
Fantasmas falam no
ritmo dos ventos
Discursos
misteriosos, tantos lamentos,
Tantas feridas
abertas na memória,
Vilarejos
queimados, colheitas perdidas,
Inocentes
fuzilados, muitos velórios,
Tanta vida
desperdiçada, ah tanta vida...
Eu quis escrever em
desespero
Um longo poema de
guerra...
— Não! Não! Esqueça
os horrores, poeta,
Nenhum de nós agora
se interessa
Por política,
disputa de terra,
Bravura, covardia,
tiros de morteiro...
Eu quis escrever em
desespero
Um longo poema de
guerra...
— Não! Não! Fale da
roupa domingueira
Usada na missa, das
brincadeiras
Das crianças
E de suas bandeiras
brancas,
Das mulheres e seus
vestidos floridos,
Dos homens e suas
camisas vermelhas,
Da cor do sol, do
sol que era bonito...
Eu quis escrever em
desespero
Um longo poema de
guerra...
Heróis e revoluções
latino-americanas,
Guerrilheiros e
soldados com ódio,
Casas vazias,
mulheres e crianças
Sós, saudosas, sem
nenhuma glória.
— Não, poeta,
queremos ver o amanhã,
Substitua os
assuntos de batalha e guerrilha
Por versos tão
doces quanto torta de maçã!
Dê sua mão, venha,
venha por esta trilha
Conhecer nosso
rancho nas estrelas,
Escutar cantigas
camponesas,
Comer ovos mexidos
na frigideira...
Desisti finalmente
do horror,
Da morte e seus
miasmas,
Escutei os milhares
de fantasmas
Da guerra sangrenta
de El Salvador
— setenta e cinco
mil
Mortos, o valor da
guerra civil! —
Eu quis escrever em
desespero
Um longo poema de
guerra,
Mas por que
desperdiçaria versos
Se isto não vale a
pena mesmo?
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Textos que integram o livro Águas Mornas, 2ª edição, revisado pelo autor e publicado pela editora Novo Século. O livro pode ser encontrado nos sites da própria editora (www.gruponovoseculo.com.br) e das livrarias do país. Melhores preços na Amazon Brasil (www.amazon.com.br).