terça-feira, 22 de setembro de 2015

Musgo e Vento de Fernando Magno


   Subitamente veio o escuro, nunca mais o sol, nunca mais as estrelas: no olhar somente musgo e vento, o tempo poético que se chama infinito, a mistura de passado e futuro neste instante de agora, a poesia de Fernando Magno. O escuro veio com o acidente que lhe roubou a vista. Sem mais a intensidade das manhãs de sol, jamais se rendeu às trevas; ao contrário, fez uso da poética para clarear tudo que era para ser somente escuridão. Passou a enxergar com a memória e a trazer para o visível todo seu outrora. É esta a substância de sua poesia: a memória dos tempos da Amazônia em primeiro lugar; e, depois, todas as demais memórias dos tantos sons escutados, dos tantos cheiros sentidos, da imensa vida que continuou a desabrochar nele incessantemente.
   Todas as vezes que vou a Manaus, eu me lembro de Fernando Magno. Não existe mais a cidade que sobrevive nele e em seus versos. O progresso a levou para longe, de tanto que foi empurrando o ermo das florestas para depois do horizonte. Agora, blocos de concreto e asfalto cobrem o que antigamente era mata e rio. E até mesmo a cultura amazônica, seu sagrado hoje esquecido, tudo isso deu vez aos fenômenos típicos das sociedades de massas. Entretanto, na poética de Fernando Magno tudo sobrevive. O sol que se insinua, por entre seus versos, ainda é o mesmo sol que seus olhos de menino e adolescente se acostumaram a contemplar sobre o rio Negro. É, portanto, pela vida e pelo sagrado que Fernando Magno escreve. Porque o sagrado - a própria vida, enfim! - o salva da escuridão e nos salva a todos do esquecimento, levando-nos à nascente de todos os rios.
   Musgo e Vento foi lançado há pouco. É um livro de poesia escrito por um verdadeiro poeta. Pode ser encontrado nas livrarias da cidade. Oxalá que muitos venham a ter a alegria de ler os poemas de Fernando Magno. Sabe-se que poesia nada tem de utilitário, salvo o de registrar a passagem do humano pelo planeta. Ao fim e ao cabo, é o mundo que se torna privilegiado com a presença deste livro. Nada mais digo. Seriam palavras supérfluas. Deixo-lhes de presente Pássaro:

Prisioneiro alado
maiúscula vontade de ser voo,
fugir como flecha cortando os ares,
de que húmus embebeste teu canto
que se mostra assim tão doce?
Em qual nuvem talhaste teus pés de silêncio?
De que arco-íris as cerdas
com que bordaste o apogeu de tua fronte?
E esse peito de turmalina?
Teu cantar é tua maneira de ser livre
- sem legendas nem partituras,
livre como o sol das ruelas de Piquiri.

domingo, 6 de setembro de 2015

Um homem



        Vive nesta rua um homem de sentimentos ambíguos, de pensamentos desconcertados. Tudo nele é pueril, tumultuado, incerto, hesitante. Aparenta a experiência de um homem bem vivido, mas sofre de ser criança pirracenta dentro de um corpo maduro. Por isso é triste: porque perdeu a noção do tempo, embora justifique a própria melancolia como um defeito de nascença. Este é outro grave defeito dele: o de não falar objetivamente, o de valer-se excessivamente de falas oblíquas, de obscuras metáforas. Tudo nele é máscara, por isso disfarça a adolescência tardia com discursos circunspectos.
        Adolescentes são adolescentes. Homens são homens. Adolescentes sonham, homens vivem. Adolescentes nunca se amedrontam com a morte, homens vislumbram incessantemente a morte. Quando dentro de uma mesma criatura esses personagens ocupam o mesmo espaço, ao mesmo tempo, na mesma vida, os resultados são patéticos: adolescentes sobrevivem em homens e homens perdem sua solidez – lá dentro, um menino birrento resiste a morrer, e aqui fora um homem envelhece sem se dar conta disso. 
         Assim é este homem de minha rua. Taciturno, distante, irresoluto. Às vezes é visto na padaria, outras vezes na quitanda; esporadicamente no botequim. Qualquer que seja o lugar onde se encontre, diz coisas que ninguém entende. Se ele fala de política, não apenas critica governos, como todos o fazem, mas também alude a repúblicas platônicas lideradas por filósofos. Se ele fala de mulher, não apenas repete comentários masculinos corriqueiros, como todos o fazem, mas também assinala a poesia que existe em olhares, em andares, em vozes femininas. Se ele fala de solidão, diz duas ou três palavras e depois, apático, se cala. Nada nele é incisivo, brutal, rude, desconfiado, como se espera dos homens que já tiveram tempo de se livrar da ingenuidade.
        Quem é ele? Um poeta ou um filósofo?
        Dele são estas palavras soberbas: “Toda arte é um ato de magia, por isso escrevo; nesse fluxo de palavras e reminiscências, empreendo uma marcha sem fim através da verdade. Caminho querendo enxergar um ponto de luz geralmente inalcançável – não o sonho, mas a vida!”. Frases de efeito que não combinam com o falar direto e seco dos outros homens. É isto ser poeta?
Esta manhã, ele escreveu um soneto em louvor a um beijo de amor e, concluída a obra-prima, renunciou aos mecanismos da poesia, ao constatar que nenhum beijo de poema vale mais que um beijo propriamente dito – beijo de poesia escrita é beijo ausente, beijo sem a boca do ser amado, beijo sem gosto de hálito e saliva, beijo sem humanidade, beijo que nunca deixa de ser anseio para virar fato.
Ainda esta manhã, ele recorreu a tratados filosóficos escritos e lidos em grego clássico. Ninguém o entendeu quando ele se expressou na linguagem cifrada dos filósofos antigos. Ninguém compreende metafísica no botequim, que é lugar onde só se entende de sobrevivência, da vida crua, do mundo infame. Ao reconhecer que desconhecia o vocabulário usual dos outros e que não poderia mais se comunicar com ninguém, silenciou de vez, renunciando também aos ardis da filosofia.
O silêncio desse homem é medo. Os outros opinam que é presunção. Mas é somente medo, um medo invencível. Está diante de um navio, mas não se atreve a deixar o cais. Está diante de um avião, mas se amedronta para enfrentar as nuvens, as distâncias. Está diante das catedrais, mas tem medo dos céus e finge julgar-se deus de si próprio. Está diante do mundo, mas é retido pelos muros do seu refúgio ilusório. Está diante das pessoas, mas se agarra em desespero a fantasmas solitários. Está diante da vida, mas não se decide a viver.
Por sorte, passa agora pela rua uma procissão de revolucionários e de místicos. O adolescente que sobreviveu no homem corre atrás dos revolucionários, pensando em derrubadas de governos pelas armas. O homem que envelhece sem se dar conta disso corre atrás dos místicos, almejando alcançar uma iluminação que só é concedida aos santos. Para sua perplexidade, a procissão desaparece na esquina, levando para sempre os revolucionários e os místicos, que eram apenas espectros, nada mais que espectros, ou ideias que jamais seriam outra coisa senão ideias. “Somos apenas simulacros, nós e todas as coisas...”, conclui na esquina onde sumiram as derradeiras fantasias.
Só há mundo infame, só há sobrevivência, só há vida rente à sarjeta. O homem entende. Assim morre o menino pirracento que resistia a morrer, assim nasce o homem que finalmente se dá conta de que vive para morrer. (A birra não combina com a inocência!).


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Louvor à Rachel Leal

A risada mais parece uma metáfora.
Metáfora de quê?
Clarão de sol numa cidade amanhecendo.
Marés em noites enluaradas.
Alvoroço de rua congestionada.
Rádio tocando rock metal.
Praças e ruas em passeatas.
Criança tomando sorvete.
Adolescente fazendo pirraça.
Metáfora da própria vida.

Rachel e sua risada. Menina mística.
Que sabe gargalhar a boa magia.
Mas se o avesso da vida a entristece,
Tudo se converte em antítese e aridez.
As ruas se transformam em ruas de feriado.
As rádios tocam réquiem.
O sorvete das crianças derrete.
As revoluções dos adolescentes se esfumaçam.
Rachel triste é uma metáfora das cinzas!

Longe de Rachel sobrevivo desses ecos de risada.

O insosso da ausência: cadê a Rachel?

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O ópio chinês

     Quando menino, escutei muitas cantigas de ninar e fábulas
inesquecíveis de minha avó Paula. Tínhamos uma rede, uma lamparina, uma
janela entreaberta e um quintal onde cantavam as cigarras. Ela me contava
histórias de santos, cobras encantadas, índios valorosos e até de imigrantes
chineses. Deles havia escutado o relato da vida de um rei louco.
     Segundo minha avó, havia no ponto mais remoto da China – e
apontava para o Oriente – uma esquecida província governada por um rei
solitário e um conselho de sábios. Certa vez, esses sábios se reuniram para
tratar de um grave problema: o que fazer do soberano viciado em ópio e
dado a engendrar ardis contra o povo.
     O rei enlouquecera. Dizia-se que ele, na solidão do palácio, exagerava
no uso do ópio para conseguir suportar os assuntos corriqueiros do governo,
as reclamações dos ministros, o descontentamento das tropas, os queixumes
do povo, as estiagens prolongadas, as colheitas perdidas, as iminências dos
golpes de estado. Levantava-se muito cedo e se retirava para a montanha, a
fim de ler pergaminhos de filosofia e política. Depois, com a mente inspirada,
retornava ao povoado e começava a tomar medidas drásticas de governo.
     Primeiro: ordenava às tropas que invadissem e saqueassem as casas
do povo, e matassem os velhos, as crianças; terror, governo de terror para
acabar com a visão infernal da miséria. Depois, temeroso de rebeliões (a
maior parte da tropa vinha dessas classes populares dizimadas; só os
generais procediam das castas), voltava-se contra suas próprias legiões e
mandava para a forca os suspeitos de conspiração ou motim. Em seguida, se
juntava aos sábios e procurava estabelecer pactos criminosos para fuzilar
inimigos e se manter no poder.
     Acostumada a governantes sanguinários, a província se resignava. Mas
os sábios e os generais, os ditos aliados do soberano, um dia decidiram pôr
fim ao governo e providenciaram um plebiscito: vida ou morte para o tirano?
Ali mesmo, na praça dos fuzilamentos, o rei perdeu a cabeça, decepado por
um golpe de machado.
     Moral da história: primeiro, a solidão aniquila as almas, despertando
déspotas incorrigíveis; segundo, o maior efeito do poder é enlouquecer os
que o exercem com descabida onipotência; terceiro, a erudição raramente
quer dizer sabedoria, sendo inúteis os pergaminhos quando não se sabe
interpretar corretamente os sinais da vida; quarto, não há, nunca houve e
jamais haverá fidelidade absoluta nos palácios; e, por último, a justiça
popular é, em si mesma, um grande engodo, pois só acontece pela vontade
exclusiva dos opressores, na hora em que estes bem entendem que devem
dar às pessoas a ilusão de que elas têm licença para se meterem nos
assuntos dos governos.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O círculo



“A mortalidade ou a corruptibilidade do corpo não pode afetar a
imortalidade ou a incorruptibilidade da alma.”
(De um manuscrito rosacruz)


     Um círculo, um símbolo sagrado, o que gira sempre. Dentro dele nada
começa e nada termina, tudo existe. A vida, que mais é do que uma alegoria
do círculo? A morte, que mais é do que a aparência de um círculo extinto?
    No Livro do Gênesis, encontrei que Deus, certa vez, apanhou barro,
esculpiu o homem e, para transformar sua criatura em algo factível, soprou
dentro dele a essência anímica do universo. Se a origem da alma humana foi
mesmo esse sopro divino dentro daquela figura inanimada de barro, entendo
melhor o porquê de eu me pretender definitivo: é que guardo comigo a
reminiscência desse hálito primordial.
     Estou diante do espelho. Cadê a alma? Só vejo o homem perecível e
mortal. Os cabelos precocemente grisalhos. O corpo maduro (ou gordo?). As
rugas inevitáveis. Os medos ridículos. O olhar impreciso. O não sei o quê.
     Eu me olho. Sou o quê? Um homem sujeito aos resfriados, aos vírus,
às bactérias e às angústias. Coisa fugaz. Tenho pela frente menos vida e
mais mortalidade. Reajo. Simulo imortalidade com palavras, sou um livro
que pode ser lido e relido, mas como evitar a última leitura?
     Escrevi este texto imaginando a vida e a morte como um círculo. Eu
dentro dele. Em alguma parte dele. Escrevendo, atônito. No meio dessa
escrita, supus ver, subitamente, o olhar de Deus. Mas como se Deus não tem
olhos e se Deus é um Círculo?
     Diante dessa constatação, me faltaram palavras para continuar. Não é
que eu tivesse perdido a inspiração, é que repentinamente eu submergi por
completo na inspiração. Acolhido pelo Círculo, emudeci. Ainda estou mudo.
Espantosamente mudo. Talvez esse espanto, essa palavra que nunca perde a
condição de ideia, talvez isso é o que seja a alma – alguma coisa mais ou
menos imune aos resfriados, aos vírus, às bactérias e às angústias. Que não
vira coriza. Que não vira pneumonia. Que não vira infecção. Que não vira
câncer. Que não vira morte. Que não vira nada porque nada é.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

PAI

     Todo dia me lembro do meu pai. Seu modo prático de enxergar a vida,
sua rudeza às vezes exagerada, seu vocabulário de poucas palavras, sua
vida de tanta experiência, seus pecados inconfessáveis, suas rezas tão
desesperadas, ele pequenino diante de Deus e Deus tão imenso na frente
dele.
     Aprendi com ele tantas coisas boas, mas também centenas de
equívocos. Fez questão de me ensinar que lágrimas tinham natureza
feminina, que homem precisava mesmo era mostrar valentia, pôr comida na
mesa, cumprir obrigações, conhecer o vasto mundo, desfrutar o direito de
retornar para casa, de madrugada, sempre com muitas histórias para contar
e impregnado de múltiplos cheiros femininos. Ele me acordava,
ruidosamente, ao chegar de madrugada, ligando a velha vitrola para ouvir e
cantar boleros. Eu o olhava, entre fascinado e assustado, sem saber dizer se
ele era um macho vencedor ou um homem aturdido.
     Meu pai me dizia que homens falam necessariamente com rispidez,
andam de cara fechada, escondem faca na cintura, seduzem mulheres,
vencem desafetos, têm certezas absolutas. Jeito de ele moldar um filho para
os combates da vida. Para ele, a poesia só tinha vez nas letras decoradas
daquelas canções passionais. Em sua opinião, poetas eram seres
demasiadamente vulneráveis. Preferia para mim outro destino, no fundo
desconfiava desse mistério de escrever versos, achava o ofício de poeta uma
excentricidade doentia.
     Um dia meu pai me deu presente uma espada, me apontou a rua (Vai,
que o mundo te espera, meu filho!), me ensinou meia dúzia de fórmulas
irresistíveis de sedução e me aconselhou a ter cuidado com os excessos de
romantismo, que isso, na opinião dele, aniquilava os homens e os fazia
sucumbir facilmente diante de mulheres encantadoras e interesseiras. “Nada
de poesia, meu filho, nada de poesia: viver é um combate diário, privilégio
dos fortes!”
     Homem de ir muito à missa, usava um cabalístico crucifixo de ouro,
quase um amuleto. Tinha fé em Deus e nos santos. Às vezes dizia que anjos
e fadas, ou espíritos iluminados, como costumava assinalar, vinham até
nossa casa para dar conselhos. Nessas horas a vida se transformava numa
indescritível epifania. Certa vez, escutou de um desses santos que o meu
destino era mesmo fazer versos e que eram inúteis as suas resistências à
poesia. Pensou durante algum tempo e concordou com pesar: “Que pelo
menos escreva versos irresistíveis para lindas mulheres!”. E foi assim que
meu pai se convenceu de que não era tão nociva a ideia de ter um filho
poeta.
     Cresci, vivi, tive inumeráveis provações e quedas, mas conquistei
também algumas vitórias. Andei muito pelo mundo, virei uma espécie de
cigano, adquiri o gosto de vagar indefinidamente pela vida. Certa vez tive de
viajar para longe e disse a ele: “Me espere, pai, que vou para outro país,
mas volto em dois anos”. Ele andava adoentado, meio sem noção do que era
estar vivo. Olhou-me com seus olhos graúdos, riu com certa tristeza, me deu
um abraço e ficou parado na calçada, esperando que eu sumisse na esquina.
Suas palavras ecoavam dentro de mim: “Nada de poesia, meu filho, nada de
poesia: viver é um combate diário, privilégio dos fortes!”; “Que pelo menos
escreva versos irresistíveis para lindas mulheres!”. Longe dele eu escrevi
poemas épicos que falavam de homens conquistadores – como ele era em
suas andanças noturnas – e mulheres sonhadoras, eu escrevi tanto sobre
histórias de amor, sobre esperanças e desesperos humanos. Guardei tudo
em um caderno de espiral, pensando que fosse ler para ele. Porém, numa
madrugada de junho, o telefone tocou trazendo mensagem do Brasil.
     Sobressaltado, me acordei. Afinal, telefones não tocam sem mais nem
menos em horas avançadas da noite. Tive um indesejável pressentimento, e
tudo ficou escuro dentro de mim, e minha mãe me disse: “O teu pai
morreu!”. O coração, tinha de ser o coração, logo o coração que vibrara
tanto dentro dele! Depois de tantas peripécias, aquele valente silenciara nos
braços da mulher que o acompanhara por mais de quarenta anos. Minha mãe
me disse que ela se levantara para ir ao banheiro, ele estava se mexendo e
murmurando na cama, como se estivesse doendo o peito. “Quando voltei,
perguntei se ele estava bem, ele me olhou sem dizer nada, se aconchegou
nos meus braços, fechou os olhos, ficou quieto.” Morrer assim deve ter sido
para ele um memorável acontecimento, protegido pela fiel mulher amada,
que mais pode querer um homem valoroso?
     Andei pela casa o resto da madrugada, esperei amanhecer. Vi, pela
janela, que as pessoas apareciam como sempre, cruzando a rua, passando
por minha calçada, cada uma com seu destino. Liguei meu rádio de pilha,
escutei as notícias da manhã, chorei como um forte, senti como um poeta. O
sol brilhava sobre a cidade.
     Escrevi pequenas notas em meu diário: “A gente se encontra, pai,
qualquer dia. Aí vou tirar da estante o amarelecido caderno de espiral com os
poemas que eu não tive tempo de ler para o senhor. De algum lugar desse
céu, o senhor deve estar me enxergando, constatando que sou poeta de
versos sedutores (alguns, líricos; outros, metafísicos), mas também homem
bravo, que nunca leva desaforo para casa e maneja habilmente qualquer tipo
de arma. Aprendi bastante com o senhor, nunca me esqueci dos seus
conselhos, das coisas certas que me ensinou e também dos seus muitos
erros. Quando eu for embora daqui, quando eu deixar este mundo para me
tornar alma livre, tenho a certeza de que vamos nos reencontrar. E
saltaremos de estrela em estrela, percorrendo espaços siderais, rindo a valer
dessa coisa ilusória que a gente chama de vida."

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O romance Tomé Mayruna

Prólogo

   Por que escrever Tomé Mayruna?
   Fiz do meu particular universo mítico um poético e abstrato refúgio
chamado Literatura. Nessa espécie de lugar sagrado, convergem para um
ponto impreciso de mim sonhos e memórias, que somente subsistem
graças à arte das palavras - uns poucos substantivos, alguns sóbrios
adjetivos e dois verbos prediletos, desejar e lembrar, que eu conjugo
como quem decifra a metáfora do tempo e a substância da vida: nunca
estou em lugar algum, vivo no fluxo apressado dos acontecimentos.
   Dependo de reminiscências ou da imaginação para viver. Em outras
palavras, só enxergo manhãs clareadas quando já vi e memorizei o sol.
Escrevo textos aturdidos e urgentes, imitações do canto das cigarras de
minha rua, que cantam com frenesi porque pressentem a perturbadora
transitoriedade das coisas - cantam para a vida e secam para a morte.
Todos somos simulacros de cigarras, chegamos e vamos embora na
vertigem do tempo, aparecemos com o sol e sumimos na escuridão,
brotamos na saudade alheia e murchamos no esquecimento do mundo.
Existir e perecer formam a mesma metáfora das horas perdidas e dos
milagres ansiados.
   Algumas vezes, risco traços alegres ou não às variadas lembranças
de minha existência e construo memórias fingidas dentro de memórias
verídicas - mergulho, por assim dizer, em um labirinto de reminiscências
superpostas. Esse é um privilégio dos poetas e dos loucos, dispor do
atributo de lembrar o fato que existiu e o fato ainda por inventar - afinal,
toda literatura tem um resíduo indelével da loucura criativa e da fecunda
fragilidade humana. Escrever Tomé Mayruna resulta desse
incompreensível fato: se não o escrevo, me transformo em cigarra com
morte anunciada.
       Humberto B. Leal

PARTE I

A MEMÓRIA

Capítulo 1

     Madrugada. Tomé Mayruna, sozinho numa cela fétida da
delegacia de Marupiara, uma remota vila na Amazônia
brasileira, olha o céu e o casario através das grades. A solidão
e a iminência da morte fazem-no pensar e lembrar.

     “Daqui a pouco vai amanhecer. Sou testemunha solitária de tudo
que acontece nesta hora que antecede o clarear do dia de meu santo
guerreiro, São Jorge destemido, que matou muitos dragões e, dizem, vive
mesmo na Lua Cheia. Segundo os índios mapanas, esse santo católico, a
quem eles conhecem como Sawara Suçuarana, até hoje continua vivendo
nos terreiros das malocas e nos oratórios das casas das benzedeiras.
Apesar da minha fé nesse santo de guerra, sei que ele não vai aparecer,
derrubando tudo com seu cavalo, dizimando os meus inimigos. O meu
santo predileto está longe, brigando em outra parte desse céu grande de
Deus, e é por isso que me sinto completamente abandonado. Nem os
santos da igreja, nem os deuses da mata, nem os amigos do mundo,
ninguém pode fazer nada por mim.
     Estou vendo o relógio de parede da delegacia, o guarda Silvério
dormindo, uma luzinha de sol querendo aparecer entre nuvens escuras.
Há tanto silêncio em Marupiara, uma espécie de sossego misterioso, um
silêncio avassalador de Deus, que me assusto quando um galo canta, em
algum quintal, um canto de presságio ruim. Nem os bichos experimentam
paz nesta madrugada.
     Está mesmo amanhecendo e hoje vai ser um dia para ninguém
esquecer, porque está marcada a morte de um homem na forca e faz mais
de cem anos que aconteceu de alguém morrer assim em Marupiara. Esse
acontecimento estremeceu a vila: entre gente eufórica e gente pesarosa,
houve quem chegou a encomendar terno de linho, vestido de seda,
perfume estrangeiro, roupa de luto e velas roxas, para ver suspenso, no
ar da manhã, aquele a quem todos acusam de ser o Mapinguari, o maldito
que come carne humana, este humilde servo de Deus que vos fala.

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quinta-feira, 30 de julho de 2015

O menino ribeirinho do Amazonas

     O menino descia da canoa, exausto de remar, os pés dentro d’água,
sem se preocupar com os detritos ao redor. Ele se misturava com homens e
mulheres que gritavam a valer no Mercado de Manaus. Disputava com outros
meninos de rua o direito de viver e vender mentiras aos forasteiros que
chegavam, inventando-lhes histórias em um dialeto mesclado de palavras
em português, inglês e linguajar indígena. Eu vi esse menino numa manhã
de mormaço, os olhos amendoados, o corpo magrinho, os pés descalços, a
roupa humilde. Dele lembro suas fabulosas alegorias do amor, seus blefes de
criança, seu costume de falar por monossílabos para disfarçar as tristezas
herdadas dos antepassados.
     Usava uma camisa aberta para o sol, andava descalço, pensava na
liberdade sem se dar conta de que ninguém era mais livre do que ele
vivendo na rua, sem preocupação com relógios, o ontem, o hoje, o amanhã.
Queria ser herói de histórias em quadrinhos, passar por todos
os perigos e conquistar uma mulher prodigiosa. Entre acordar e dormir,
andava por becos, subia e descia ladeiras, queria coisas difíceis, tudo o que
lhe fazia falta, o bom amor, a boa roupa, a boa comida, o bom sonho, o bom
viver e o bom morrer. Viver assim era viver um grande poema de poucas
rimas mas muitos adjetivos.
     Passou o tempo. Dizem que o menino cresceu, foi para longe,
conheceu muitos lugares, muita gente. Mas, passados tantos anos, não
conseguiu se livrar de sua própria história, nem perdeu sua fisionomia vaga,
nem deixou de pretender ser um herói, nem abandonou os sonhos de viver
com mulheres prodigiosas.
     Falar dele me faz lembrar o rio Negro, as terras muitas vezes
devastadas por enchentes periódicas, o terror dos ribeirinhos ante os
temporais. Esse menino costumava apanhar a canoa e ir para o meio do rio
enfrentar as tempestades. Gritava para os céus, e ninguém sabia se eram
gritos insolentes ou súplicas desesperadas. Qualquer que fosse a natureza
daquela gritaria, o fato é que tudo se acalmava e ele retornava para casa.
     Afirmavam os mais cultos do lugar, os que pelo menos tinham
aprendido o abecedário, que aquele menino insolente e romântico, meio
sobrenatural por ser filho de uma vidente, era um poeta, um lunático com a
pretensão de querer tocar o Sol com as mãos. Esses eram os rumores sobre
o menino.
     Desconheço o paradeiro desse menino sonhador e com jeito precoce de
homem. Não sei o que a vida fez dele. Sei apenas que, numa certa manhã
de verão, seguiu uma procissão de soldados que passaram por sua vila
vacinando os nativos contra febre amarela. Alguns supõem hoje que, se
fosse possível misturar substâncias imisturáveis, como as essências
antagônicas do poeta e do soldado, ele teria entrado num quartel para
cumprir o sonho de ser herói numa guerra qualquer. Talvez estivesse hoje
atirando de fuzil, marchando na avenida, cruzando pântanos, decepando
inimigos.
     Ignoro se ele está vivo ou não. Se vivo estiver, talvez ainda olhe as
pessoas com seu jeito acanhado de gente tímida, com sua fisionomia
sobressaltada de criança indefesa, ou então com seus olhos insolentes de enfrentar
tempestades. Pode ser que continue andando pelas ruas com a camisa
aberta pro sol e tenha encontrado, num desses acasos da vida, a mulher
prodigiosa com quem sonhou desde que era um simples menino. Se isso
tiver acontecido, terá finalmente tocado o Sol com as mãos de artífice das
palavras e se livrado de seus mais remotos medos, que nada mais eram do
que presságios irreais.
     Esse menino ainda pega a canoa, nos dias de tempestade, e vai gritar
no meio do rio. Esse menino ribeirinho, esse menino poeta sobreviveu nos
meus espelhos.

domingo, 26 de julho de 2015

Ícaro

Parte I

     Aqui no edifício, tem uma janela discreta. Da rua, até alguns dias
atrás, via-se a luz tênue da lâmpada acesa o tempo inteiro. E, às vezes, no
parapeito, um homem com o olhar perdido, quase uma esfinge. Sol ou
chuva, o homem solitário se fixava no horizonte. Esperando o quê?
     Homem misterioso. De vez em quando, vestia umas roupas escuras e
saía carregando mochila. Cheirava a pólvora. Homem de guerra.
Semana passada, os jornais noticiaram um atentado a bomba num
cinema. No mesmo dia, o homem misterioso se suicidou. Vou contar como
foi.
     Ele imitou os pássaros, voando para a morte no vento do meio-dia.
Calor e tráfego insuportáveis. Acontecimento inesperado. Havia gente e carro
em demasia na rua. De repente, aquele corpo vindo lá de cima. Ele flutuou
primeiro, depois rodopiou de braços abertos, como um helicóptero
desgovernado. Ele quis e não conseguiu suprimir a lei da gravidade. Um
tremendo baque na calçada. Nem houve grito, só aquele espatifar-se rouco.
     Meio-dia, precisamente meio-dia, a hora em que Ícaro se despedaçou.
Veio o rabecão e o levou para o Instituto Médico Legal. O cadáver ficou
em vão à espera de algum parente. Os bombeiros e os vizinhos invadiram o
apartamento dele e encontraram uma carta.
     Ícaro era terrorista. Confesso.

Parte II

     O remorso. O suicídio. Ícaro escreveu que fora ao cinema. Que tinha
andado pelas ruas, seguindo um casal de namorados. A mulher mais linda da
cidade. Acompanhada de outro. Por quê? Por que outro e não ele? Seguiuos,
entrando no cinema. Lá dentro, os namorados se encontraram com
amigos. Tanta gente bonita, tanta gente alegre. Exceto ele, sozinho e triste
como sempre. Terrivelmente só e triste. Mundo injusto.
     Acomodou-se numa poltrona bem à retaguarda. Distraiu-se com as
primeiras imagens na tela. Depois se concentrou nas pessoas. O olhar se
fixou no casal de namorados, na mulher mais linda da cidade. Por que o
outro e não ele?
     A cabeça dele doía. Ele carregava aquela mochila, todo mundo pensava
que ele transportava livros, uma enorme biblioteca. Não, ele carregava outra
coisa. Mais mortífera. Dia mais, dia menos, faria os outros sentirem o gosto
do inferno. Apalpou as bananas de dinamite.
     Os namorados se beijavam, pouco interessados no filme. Ele se irritou.
Demasiada felicidade alheia para ele suportar. Subitamente, fechou os olhos
e sonhou intensamente com aquele beijo. E tão repentinamente quanto,
despertou desse sonho inútil, reabrindo os olhos com uma expressão insana.
O beijo de boca dos namorados fez eclodir nele muita ira.
    Ícaro acendeu o estopim ligado à dinamite e pôs a mochila debaixo da
cadeira da frente. Levantou-se e foi embora. Andando com pressa, contou
mentalmente os quarenta e cinco segundos que levaria para detonar o
explosivo. Saiu do cinema quase correndo.
     Lá fora ouviu o estrondo. Pegou um táxi e fugiu. Deixou para trás o
cinema destruído, a mulher mais linda da cidade, a lembrança daquele beijo
atordoador, o seu próprio inferno.

Parte III

     Mas se enganara. O inferno viera junto com ele. E, ao ler o jornal com
a notícia da bomba no cinema, sentiu que absorvera os infernos de todos os
que haviam sido destroçados pelas bananas de dinamite. Insônia. Perdição.
Visões fantasmagóricas. A pior delas: os namorados continuavam a se beijar
e, mesmo morta, aquela mulher mais linda da cidade continuava a pertencer
a outro homem. Inveja irremissível. Ícaro pirou na batatinha.
     O que se seguiu foi o voo desgovernado de Ícaro. Ao meio-dia,
precisamente ao meio-dia, se espatifou na calçada o terrorista que explodira
um cinema por não ter suportado a intensidade de um beijo de amor. O beijo
que ele tanto quis e nunca teve.

domingo, 19 de julho de 2015

A última criança camponesa tem um amor no coração

   Crianças. Não sei quantas. O avô está sentado na varanda. Cadeira de embalo, o homem fala coisas aos pequenos para encher-lhes a imaginação de luzes fantásticas. O céu profundamente estrelado. A noite é mais escura no campo. Não há prédios, janelas e ruas iluminadas. Apenas um escuro que, paradoxalmente, reluz no céu. Que brilha mais. Que clareia mais. Que invade a alma das crianças.
   Crianças camponesas. Meninos e meninas. Todos acostumados aos pernilongos e bem atentos ao coaxar das rãs que moram nos alagados. Andam descalços e, vez por outra, precisam arrancar de entre os dedos as larvas que fazem coçar demais - bichos de pé não lhes metem medo. Movimentam-se o dia inteiro pelas plantações. Entram no curral e metem os pés na bosta de vaca. Bebem leite fresquinho quando o dia ainda não despontou. Correm quando surpreendidas por abelhas enfurecidas. Livram-se dos carrapatos, tomam banho de rio, trocam de roupa, comem arroz e feijão, aipim e torresmo, sossegam para escutar as fábulas do avô. E também da avó quando esta chega trazendo um pouco de café e se senta na varanda da casa.
   Lâmpadas incandescentes, fraquinhas, foscas, alimentadas por um gerador. De repente, a escuridão total, alguma coisa aconteceu na casa do dínamo. O avô para de contar estórias de fantasmas e diz às crianças que resolvam o problema. Elas sabem o que fazer. Basta corrigir o curso de água e fazê-lo correr na direção certa. Rio desobediente: no meio da noite, resolve fluir pelo meio das pedras, mudar o rumo da correnteza. Que rio nada, apenas um córrego bravo que vem lá do alto da montanha. As crianças então se assustam. "Mas, vô, tá tudo escuro!". E o avô se abre numa gargalhada com o medo que as crianças sentem dos fantasmas à espreita nas trilhas. "Vão andando! Vão andando!". E as crianças driblam o terror e inventam travessuras para enganar as almas penadas. Sapecas, atravessam a escuridão, endireitam o rego feito de pedaços de telhas e pedras. Subitamente, a luz outra vez nas lâmpadas embaciadas, o gerador voltou a funcionar. As crianças retornam quase correndo e dão o pronto pro avô. A avó lhes dá café e um pouco de mingau.
   Assim era. Até que, por causa de outro tipo de rio desobediente, tudo foi se apagando. O vovô foi embora, a vovó foi embora, todos os mais velhos foram embora. Levados para repousar no cemitério do povoado. Apagaram-se e não foi possível às crianças sapecas reverter a escuridão. Neste caso, o rio deixara de correr dentro da casa do dínamo.
   Até as crianças foram embora também. Ficaram adultas. Quando a fazenda começou a ficar em ruínas e se precisou construir a vida noutro lugar, todos migraram para a cidade. Exilaram-se no mundo de concreto. E as crianças camponesas, precisando acompanhar os pais, se tornaram urbanas quase arbitrariamente. Muitas, então, deixaram de gostar do campo depois que conheceram o conforto da cidade. Outras, todavia, ainda voltam lá até hoje, mesmo que doa olhar e sentir a decadência. A estranheza: tudo diferente. O povoado cresceu e foi tomando conta de tudo. Ninguém mais quer ser camponês. Até as revoluções românticas se transferiram para os grandes centros urbanos, para suas passeatas, para suas ruas tumultuadas.
    Não sei aonde as crianças foram. As cidades as engoliram.
    Mas sei que uma delas ainda se lembra da casa do dínamo. Ela jamais abandonou sua gênese. Vive na cidade, mas gosta de voltar às cachoeiras, às serras, às trilhas poeirentas no verão, às veredas transformadas em lamaçais quando chegam as chuvas torrenciais. Abre suas janelas quando vem a noite e suas estrelas; escuta os sinos da catedral e se transporta para o outrora que sobrevive em seu espírito.
    A última criança camponesa tem um amor no coração - o sentimento pelo lugar em que tudo principiou, o seu onde de brotação.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Dia Santo - 1ª parte - Gênese - Capítulo 1...

Capítulo 1

     Nasci e vivi muito tempo na Amazônia. Criança de brincar nos
beiradões dos rios lamacentos, de carregar as bacias de roupa de minha
avó que labutava sobre balsas de sapopemba, de me esconder do meu
pai me chamando para beber purgantes contra todo tipo de verme e
cujo gosto intragável fui incapaz de esquecer. Aprendi a nadar nos
igarapés, vivi em cortiços em minha primeira infância, ouvi muitas
histórias de visagens e presumo ter visto fantasmas confabulando na
solidão das calçadas. Eu e uma porção de crianças costumávamos
passar as manhãs, enegrecidos pelo sol amazônico, a ver as
embarcações passando ao largo, no rio Negro, sem preocupação com a
vida ou a morte.
     Lembro-me desse tempo com certa tristeza. Deparo sempre com
um menino magro à beira do rio, um espectro que insiste em cruzar os
séculos na espera de um milagre. Ele tem uma lágrima
permanentemente no rosto. Tem ainda a minha cara e, quando fala, usa
também minha voz. Esse menino de olhar opaco vive no arco-íris por
onde caminho para reencontrar os meus ancestrais.
     Vivi em remotos lugares onde se delineiam as nossas fronteiras
setentrionais, comendo a poeira do seu verão quase eterno ou cheirando
a umidade dos ventos quando vinham as chuvas do outro lado do rio.
Fui uma criança indefesa e tímida, o próprio desamparo, a figura
patética do menino ribeirinho chupando os dedos na beira do rio, a
barriga graúda dos vermes, magricela da própria natureza humana,
amedrontado diante dos estranhos. Apesar disso, é desse tempo na
Amazônia que me vem a lembrança de liberdade, aquela vida de andar
nu, vendo o sol nascer, tomando banho de chuva, dormindo com os
pássaros.
     Cresci na Amazônia e vi as suas cidades crescerem, as pessoas
vindas de todas as partes chegarem, as florestas se encolherem sobre si
próprias, até o seu provincianismo permutar-se por novos hábitos e
adquirir todas as semelhanças do mundo além dos rios e da mata. Ainda
hoje, muitos meninos amazônidas correm do purgante do pai e amam a
procissão dos barcos carregando esperanças rio acima, rio abaixo. Pois
lá, na imensidão do remoto, onde não é possível valer-se de mapas e
onde tudo parece inexequível, encontra-se a mística vila chamada
Maciriguei, cuja gente louva o Deus cristão e as divindades da floresta.
Nenhum rosto é desconhecido entre os habitantes nem existem histórias
alheias secretas. A história de Maciriguei parece uma fábula. Um dia
jurei a mim mesmo que escreveria um livro sobre esse lugar, sua gente,
seus amores, seus crimes, sua grandeza e sua miséria. Hoje cumpro a
palavra empenhada.

                                                   *

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quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ana Agar - prólogo

Prólogo
           
Ao escrever as primeiras palavras deste romance, pensei parodiar Machado de Assis, em seu fenomenal Memórias Póstumas de Brás Cubas. Menos difícil seria esta autopsicografia, eu diria simplesmente: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. Mas desisti das fórmulas de plágio e dos contatos sobrenaturais e, deste modo, me aventuro mais uma vez na inaudita experiência de escrever por minha própria conta. Antes de tudo, entretanto, quero dedicar estas memórias a Ana Agar, heroína dos desertos, feiticeira das encruzilhadas, santa dos primórdios, que me deu, numa noite de outono medieval, a honra de uma dança ao som de harpa e um amor sem fim. Ainda hoje, cumprindo a palavra empenhada, nós dois preservamos o pacto contra o esquecimento e conservamos, intacta em nossas lembranças, uma aquarela onde se veem dois amantes clareados pela Lua e animados pela paixão.
            Neste lugar onde não há tempo e tudo é eterno, me foi dado o direito de viver numa modesta casa situada sobre um morro de vegetação rala, desde que deixei de existir entre os homens. Daqui diviso uma estrada de pedregulhos que conduz invariavelmente ao Norte e ao Sul. Ao Norte, pode-se avistar no horizonte o contorno das cidades humanas, de onde me vêm os rumores de intensas, efêmeras e irremediáveis paixões. Lá eu já estive, embora não lembre quando. Ao Sul, região de clima frio e pouca claridade, todos os caminhos terminam inevitavelmente num rio de águas muito geladas, em cujas margens geralmente o terrível Cérbero, guardião do reino de Hades, monta guarda. Ele, numa gôndola veneziana, cruza essas águas escuras, transportando as agoniadas almas fadadas às sombras. Quase nunca o sol aparece por lá, como é de se supor. Faz constantemente frio e costuma nevar muito. Não é que lá haja inverno, é que as sombras estranhamente produzem essa aparente estação de ano justamente onde não existe tempo, fazendo cair uma neve não em forma de flocos, mas de pensamentos sombrios e enregelados. Ruídos de todos os tipos se fazem escutar, desde uivos de lobos a gritos humanos, desde estrondos de avalanches a sons de tempestades, desde toda e qualquer gritaria até a última sonoridade do terror, que é o silêncio da escuridão.
            Aqui, todavia, em meu recanto, o céu é estrelado. Pontilhado de infinitas constelações. Tantas que deus algum poderia contá-las com precisão. Eu tenho os meus olhos permanentemente fixados numa delas, a que cintila mais que todas as outras. No meio dessas estrelas vive a mulher que um dia há de voltar para os meus braços. Talvez seja esta a razão de eu escrever tantos poemas sobre estrelas cadentes. Na realidade, os meus versos celebram não a resplandecência das estrelas, mas sim o brilho altivo dos olhos de Ana Agar, a maneira como me fitava quando fazíamos amor em noites de lua cheia.
            Este livro resultou de uma epopeia de amor que vivi com Hécate, primitiva deusa de um mundo muito antigo. Foi ela quem, disfarçada de escrava, dormiu com Abraão durante a esterilidade de Sara, nos primórdios dos tempos santos. Conhecida por sua magia e por seus aparecimentos inesperados na claridade do luar, ela participou de muitos conflitos na Antiguidade. Entre os romanos, no papel de Diana, ela inspirou governantes e comandou centuriões antes de Roma ser chamada por João, na ilha de Patmos, de a Grande Besta. A mim ela se apresentou, primeiramente, como Maria da Terra, uma rainha das encruzilhadas brasileiras. Vivemos uma linda história de amor que eu, recolhido à visceral solidão desta existência abstrata, recordo em meio aos meus alvoroços de homem apaixonado.
            Longe dela, sou um homem de vento, que já não reflete nos espelhos. Tenho a chave dos mistérios e dos medos, não me preocupando mais com essas questões simplórias que tanto afligem as pessoas: coisas como a morte, a finitude, a eternidade, o que existiu antes, o que virá depois. Nada disso tem importância diante do fato de que somos, a um só tempo, perecíveis e eternos. Viver e morrer são apenas dois verbos, do mesmo modo que vida e morte são dois substantivos. Que significam verbos ou substantivos para quem se situa hoje além das gramáticas?
Houve época, contudo, quando eu ainda perdia tempo com verbos e substantivos, que um espanto se apossava de mim diante da simples ideia da morte e do que poderia acontecer comigo. Agora eu me assombro com esta perpetuidade quase insuportável, sem contornos como o vácuo, esta condição de alma sem mais carne, sem mais ossos, sem mais sangue, sem mais cheiros, sem mais sabores. Impossível decifrar o inefável.
            Encontro-me, agora, debruçado sobre planícies, rios, montanhas, oceanos, uma infinidade de lugares. Tenho à vista muitos pássaros inquietos, multidões aflitas na solidão das metrópoles, povoados que crescem e cidades que se extinguem. Só posso contemplar o que não me é mais possível tocar. Neste lugar sem tempo, capenguei tanto entre os pensamentos, desnorteado pelo silêncio, transformado numa coisa condenada a incessantemente pensar e lembrar. Cheguei a esta fase em que nos convertemos não em anjos ou demônios, mas primeiro em reminiscência e depois em esquecimento.
            Esquecido das vozes de todos os personagens longínquos de minha história desfeita, eu demorei em entender que a morte não passa de um eterno fluxo de lembranças em redemoinho. Estar morto é um complexo estado de espírito, que ainda não consigo simplificar e expor claramente com palavras. Quando eu souber dizer o que isto significa, talvez se complete em mim o sentido dos meus enigmas que não logrei interpretar.
            Demorei muito em me acostumar a este voo de sentido circular, tardei demais para aprender a flutuar entre o ponto zero da vida e o infinito das ideias. O azimute dos círculos me conduziu a um mundo onde os espíritos continuam a viver. É com eles que divido o privilégio de fazer versos e inventar destinos. Fascina-me este relato póstumo com que tento ser lembrado, porque, no final das contas, a única imortalidade servível é a que fica na memória dos outros, e a única morte irreversível é a que acontece no esquecimento alheio.  
            Neste livro há vestígios de remotas conversas travadas nos céus, nos desertos, nas encruzilhadas, nos prostíbulos, nas igrejas, nos botequins e nos esconderijos, desde os tempos em que os imperadores se encontravam para celebrar conquistas e tramar ardis, e os pobres se rebelavam nas tabernas, e os revolucionários morriam na ponta das baionetas, e os poetas blefavam para mulheres sonhadoras.
            Heróis, reis e plebeus que viraram primeiramente lendas e depois deuses, chegaram à Terra, segundo as narrativas dos povos tanto do Ocidente quanto do Oriente, e desmancharam a escuridão original, entre esperanças e controvérsias, para criar um tipo de vida e história marcados pela dialética e pela barbárie. Semearam os campos, levantaram castelos e igrejas, constituíram exércitos e hostes sacerdotais, dançaram à luz do Sol e da Lua, amaram-se profundamente para reproduzir uma prole mais abundante que as estrelas do céu e se dilaceraram uns aos outros com guerras intermináveis e estúpidas. É justamente dessas épocas que vêm estas histórias que agora descrevo.

            Apaixonei-me pela política, pelas guerras, pelo romance, pela pompa, pelas intrigas das cortes, pelas revoluções, pelos motins, pelas utopias. De todos esses episódios, resultou uma história de amor prodigiosa, a recordação dos acordes de uma harpa, a fábula de Ana Agar.

sábado, 4 de julho de 2015

Ayeorun


     Eu me chamo Ayeorun, sou o último sacerdote de uma dinastia que há
governado por séculos estas terras remotas e esta civilização que
desaparecerá nos próximos dias. Desde tempos imemoriais, todos os
governantes de minha linhagem, ao prepararem seus sucessores,
preocuparam-se em ensinar que a essência de todo nosso poder reside na
credulidade dos governados e em nosso conhecimento hermético sobre
sistemas de irrigação, agricultura e metafísica. Muitos tiranos terríveis
valeram-se disso para passarem por mensageiros de Deus. Eu me recuso a
endossar esta farsa.
     Esta é a história do estertor de um soberano. Vou falar um pouco de
mim e do que sinto ao destruir o meu próprio império. Não sinto pesar, sei
que dessas cinzas vai emergir a liberdade. A claridade predominará sobre as
trevas. Assim será.
     Quando completei quatorze anos, meu pai previu a própria morte ao
concluir que a dor de que padecia nas articulações era mais que um
inofensivo reumatismo. Quis me preparar para o exercício do poder e me
levou até o templo central, onde me ensinou teologia, poética, astronomia,
arte da guerra, técnicas agrícolas, filosofia primeira, magia branca, bruxaria
e o alfabeto sagrado. Diante de tantos segredos desvelados, perguntei a ele
por que se escondia tudo aquilo dos governados e por que ele, sabendo
tanto, sucumbia à doença que o matava. Morreu sem nunca me responder
convincentemente.
    Aos meus dezoito anos, eu acompanhei os funerais do meu pai e fui
declarado rei depois que o fogo consumiu-lhe o corpo e as cinzas foram
guardadas no templo central. Levantou-se, em memória dele, uma pirâmide
com o ápice voltado para certas constelações que nunca são vistas a olho nu.
   Desde então venho usando minha perspicácia para destruir o império que
meus ancestrais construíram em cima da farsa. Persisto neste propósito,
porque prefiro a iluminação do espírito à suntuosidade hipócrita dos reis e
das cortes.
   Decidi que todos os meus feitos devem permanecer anônimos, estando
os cronistas do reino proibidos de registrar as minhas obras. Nada mais se
escreve nos monumentos construídos durante meu governo, nenhuma
referência às batalhas que venci, nenhuma palavra sobre as secas que
assolam os povoados. Nenhum artesão tem mais permissão de cunhar nas
pedras símbolos cabalísticos mentirosos. Eu, Ayeorun, sou o rei do
esquecimento. Por isso tenho este nome: Aye, o que vem do mundo visível,
tangível; Orun, o que vem do cosmo, dos espíritos – em mim esta
convergência se chama liberdade, eu quero o meu povo indo embora dessas
terras inóspitas, para se multiplicar em outras partes e ampliar a civilização
humana. Quero-os livres, mesmo que isto me custe o império.
   Esta, portanto, é minha obra principal: pôr fim à onipotência dos
tiranos, que seriam menos onipotentes se os governados fossem menos
ignorantes e menos crédulos. A ruína é só aparente, o que eu produzo é a
iluminação.
   Eu ordenei aos astrônomos que ensinassem o povo a entender melhor
a influência dos astros na agricultura. Todos sabem agora quando devem
plantar e colher, não precisam mais recorrer aos sacerdotes. Determinei
também aos funcionários do governo que não mais cobrassem tributos
extorsivos de irrigação e que instruíssem os camponeses a utilizar moinhos
de vento e esterco nas terras ásperas. Instruí os monges para que
abandonassem a vida de contemplação nos templos e fossem comer com os
pobres. Abri as portas do palácio para que o povo viesse ao meu encontro e
comprovasse que sou feito da mesma substância imperfeita de que eles são
compostos.
   Admito que estas medidas drásticas desorganizaram mentalmente os
meus sacerdotes, os meus funcionários, os meus soldados, os meus
governados. Todos me tomam por insano e iconoclasta. Houve tentativas de
sedição, todas fracassadas por razões nem sempre muito claras. Mais de
uma vez escapei da morte, apelando para súditos fiéis que morreram no meu
lugar quando as portas dos meus aposentos foram arrombadas por
revolucionários enlouquecidos. Com imensa tristeza soube que vários dos
meus familiares foram assassinados à luz do dia, por vingança dos nobres e
dos sacerdotes. Ainda assim, me mantive no meu propósito de semear
iluminação e liberdade neste império que só conheceu tirania e misticismo.
   Meu último ato de governante foi o de proibir os sacrifícios de sangue
em favor dos deuses, coisas que o povo faz em troca de boas colheitas.
Disse aos sacerdotes e aos governados, na praça dos rituais, as mesmas
palavras: “É uma estupidez crer que oferecer aos deuses o coração das
virgens e dos imberbes possa criar algum tipo de boa sorte”.
   Retirei-me então do templo principal e me sentei no topo da pirâmide
que construíram em memória do meu pai. Olhei a constelação que ninguém
vê a olho nu e decidi concluir meu trabalho mais depressa, antes que uma
revolução ponha tudo a perder. Aqui me encontro há muito tempo,
completamente imóvel, com o olhar estendido sobre todo o império, sem me
alimentar, sem me proteger das intempéries. Sou uma esfinge à vista de
todos. Os sacerdotes e nobres me encaram com ódio, mas não se
aproximam de mim. Confabulam clandestinamente, estão convencidos de
que serei consumido pelo longo tempo exposto ao sol, às chuvas, ao calor,
ao frio. Mas se desorientam quando veem, em torno de mim, certa aura
azulada, que me protege contra os rigores da natureza. O povo, por sua vez,
atônito, me vê como um rei emudecido, um deus morto – que deve ser
lembrado, jamais louvado.
   Percebo que a fome grassa no reino. Há uma terrível estiagem. Meus
súditos estão desorientados. Por algum motivo o povo não sabe o que fazer
quando não tem um rei que o conduza, um governo que o intimide, um deus
que o assuste. Os sistemas de irrigação se arruinaram: sem as taxas antes
cobradas, faltam fundos para a manutenção das engrenagens. Os sacerdotes
e os nobres morrem de fome, porque já não contam com as porções de
comida que as pessoas lhes traziam em troca de favores políticos e
conselhos divinos. Embora eles saibam ler e escrever, desconhecem técnicas
agrícolas, artifícios de caça e pesca. São todos inúteis, para nada lhes serve
tanta erudição e tanto conhecimento de magia.
   Um dos meus teólogos afirmou, numa última e desesperada tentativa
revolucionária de reverter a situação, que era preciso restabelecer o medo
nos súditos, ou do contrário estes jamais retornariam com suas oferendas.
Mas os governados, tendo compreendido finalmente que os sacerdotes não
passavam de embusteiros, fizeram pouco caso deles. Agora, com esta
terrível seca, o que vejo são enormes procissões de migrantes, gente que vai
embora para onde houver vida, terras férteis. Sinto que meus sonhos
começam a virar realidade.
   Eu, Ayeorun, de nada me arrependo, nenhum pesar sinto. Meu povo foi
para longe e conseguirá sobreviver. Falta pouco para eu cumprir meu
destino. Ainda estou no alto da pirâmide da antiga praça dos rituais de
sangue, sou uma esfinge que se desfaz pela ação dos ventos e das
tormentas, pouco a pouco, sem que eu sinta nenhuma dor, sem que o
mundo perceba o que está acontecendo. Daqui a algum tempo não serei
sequer tênue recordação. Estas são minhas últimas palavras, já não existe
nenhum oráculo hermético, tudo é claro, tudo é nítido, tudo é visível.
   Construí a liberdade, destruí a ignorância, posso morrer em paz.

terça-feira, 23 de junho de 2015

As lembranças da professora de grego

CRÔNICAS E MEMÓRIAS DA CALÇADA: reminiscências de Rita Codá

            Insurgente contra a mortalidade, mas não a ponto de rebelar-se diante do modo de a vida se pôr e se esvair. Assim é Rita Codá, com suas crônicas e reminiscências, disposta a confrontar-se com o esquecimento, a resistir à fugacidade das coisas, a recriar mundos sumidos no tempo. Nada se perde em sua memória, nada se deixa para trás, nada perde o gosto sutil da saudade. Sua arma de lembrar é simples – a narrativa, com a qual, insistentemente, palavra por palavra, faz sobreviver lembranças, reinstaura realidades perdidas, revigora destinos consumados e clareia as sombras que costumam engolir os mortos. Seu livro, inevitavelmente, nos remete à fala de Édipo diante de Teseu (versos 607-609 de Édipo em Colono), que ela mesma traduziu no seu belo livro de estreia, Epitáfios Gregos: “os deuses são os únicos a quem não ocorre nem a velhice nem a morte, mas o tempo soberano todas as outras coisas aniquila”. E, também, com suas crônicas, numa luta obstinada contra a aniquilação, Rita Codá nos traz a riqueza do folclore brasileiro, relatando as peripécias de fantasmas em lendas que se mesclam com cirandas e cantorias de gente humilde. A cronista louva a vida que antigamente era boa de viver e hoje é boa de lembrar.
            A contemporaneidade tecnológica desorienta o homem, ao automatizar as multidões alvoroçadas e opor-se ao silêncio. Já não se escuta o que vem dos mistérios. Mesmo nas pequenas cidades do interior, o dito progresso levou embora certo modo de viver que priorizava a simplicidade e o humano. Há dissonâncias entre a tecnologia e o poético. Rita Codá, então, se encarrega de conciliar essa desarmonia, ao retomar as vidas e as histórias que parecem só encontrar guarida no imaginário. Fala das almas se redimindo em penitências nos dias seguidos à morte, da luta que travam para sair da escuridão, dos pactos feitos com os vivos em torno de um galo preto e uma botija com dinheiro. Lembra a coragem de José Codá e Maria Rosa no enfrentamento com vândalos revolucionários em 1930, jagunços violentos e armados por latifundiários. Ri e faz rir com as crianças que brincam com ximbras – bolas de gude, como se diz em Pontal da Barra – e meninos que se espantam, debaixo das saias de uma mulher sem calçola, e descobrem que dona Paulina tem “um siri com barba colada” entre as pernas. Conta, feito uma avó em torno da fogueira, os acontecimentos de um casarão mal-assombrado, as crenças nas orações contra as almas errantes. Lamenta, com nostalgia, o desaparecimento de certos lugares em que a vida daquele tempo palpitava e que depois a urbanização tratou de suprimir, como o casarão dos fantasmas que virou primeiramente quartel de Marinha e depois órgão público. Comove-se e faz comover ao relatar as brincadeiras do irmão caçula, Carlos Virgínio, dado a assustar os irmãos se fazendo de assombração à noite. E investiga a origem do nome Codá, com a perspicácia de quem quer reencontrar a força remota das origens da família.
Trata-se de uma tentativa do poético de restaurar o humano no mundo da técnica excessiva. Este é o grande mérito do esforço literário de Rita Codá em Crônicas e Memórias da Calçada. Que cada um de nós se atreva a acompanhá-la nessas veredas da saudade. É preciso coração simples para tanto.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

A insistência em compreender (ou desistência)

O passar da vida nos dá a impressão de que, por algum mecanismo não muito claro ainda, todas as coisas vão e retornam sempre; em outras palavras, vê-se o mesmo filme da existência, mesmo que num remake pasteurizado.
É o que tenho constatado nesses dias de outono, ao caminhar tarde da noite pela rua Piabanha, nesta Petrópolis que ora reluz com suas manhãs claras de sol, ora se esconde na vastidão da neblina: a vida de ontem volta permanentemente como vida de hoje. Nem falo das auroras e dos poentes, que sempre estiveram e vão estar lá no horizonte; eu falo da repetição das coisas enquanto a gente corre e se perde em tentativas vãs de tocar esses horizontes que se alargam cada vez mais para tão longe.
Noutra época, depois que a Europa silenciou seus canhões e tratou de cuidar de suas feridas e ruínas, fui menino latino-americano na Guerra Fria; era impossível para a criança compreender aquelas manchetes de jornal dando por certo o holocausto nuclear, pois toda a seriedade infantil se concentrava exclusivamente na magia dos brinquedos e em jogar bola nos terrenos baldios.
E quando me tornei adolescente latino-americano na Guerra Fria, também era impossível compreender as cisões internas do país, a disputa pela primazia da visão de mundo mais correta, a liberdade usada como peça de retórica do totalitarismo multifacetado, o risco da aniquilação nuclear substituído pelos conflitos de baixa intensidade (guerrilhas e contraguerrilhas), as ideologias a levantar muros entre os vizinhos de porta, todas aquelas batalhas que hoje parecem ter sido em vão, sem sentido.
E, mais tarde, adulto latino-americano no pós-Guerra Fria, continuou a ser impossível compreender   o condicionamento da vida pela economia globalizante, que passou até mesmo a criar todas as necessidades humanas, inclusive as que são desnecessárias; vive-se como escravo sob a força motriz do capitalismo - o consumo. Não bastasse isso, quem pode viver com lucidez sob o flagelo do terrorismo e da violência que detona as cidades no mundo inteiro? A guerra agora é o cotidiano trivial, tão perto e tão dentro da gente, neste em vão que se repete indefinidamente,
A vida civilizada é um horizonte muito longínquo. Como homem globalizado, tento compreender os sintomas da contemporaneidade doente, o desespero humano, os artifícios de se viver drogado para suportar a vida destituída da inocência, a vida dos remédios tarja preta, a vida das drogas marginais, a vida de promiscuidade e aberrações, a vida finita de tédio e medo.
Levaria horas tentando compreender o humano, mas hoje novamente a neblina chegou mais cedo na cidade friorenta; preguiça de pensar, fecho então a janela, não deixo o mundo se apossar de mim. O pensamento fica lá fora. Outro dia, então, deixo para outro dia a insistência em compreender...

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Essa coisa de imensidão

Diz-se que o ontem deve ficar para lá e que para cá só tem lugar o hoje; não é bem assim, porque mal começamos a falar do agora ficamos com a impressão de que as palavras se derretem e correm para longe, imitando os rios desassossegados (que são, a um só tempo, água de nascente, água de correr em leito, água de morrer na foz); estamos sempre falando daquilo que nos escapa e talvez seja por isso que, rebeldes contra a vida que jamais fica e que só pode ser vivida enquanto passa, tenhamos criado esse artifício de lembrar, essa mania incorrigível de sentir saudade.
Como ficam dentro de nós o outrora, o hoje, o amanhã, que são no fundo a mesma coisa? Como ser sendo passageiro, impermanente?
...
Talvez ser como o rio, que não distingue dentro de si os diversos tipos de água, pois esse hábito de nomear, classificar, catalogar, valorar, isso vem de uma parte bem específica do homem, aquela que não sabe ser rio.
O rio é coisa muito simples; não é rio principal ou afluente, não está à margem direita ou à esquerda, não contém minerais, hidrogênio, oxigênio, não alimenta povoados e hidrelétricas, não seca nas estiagens prolongadas, não pinga das torneiras e não sacia a sede nem se presta para lavar roupa; o rio é outra coisa... (Que coisa? A vastidão!)
...
Lá do fundo da nascente está vindo a água de brotação; quando brota, ainda que sob o disfarce de outro tipo de água, nunca engana os olhos muito atentos: é a mesma água-bailarina que se dispersa pelos caminhos em sua vontade de provar o gosto das terras e permear os mundos; e é também a mesma água já impotente que, depois de tanto percorrer as ribanceiras e as planícies, se aquieta cheia de reumatismo e se submete ao destino de ser água de foz de rio, aquela que deixa de ser rio porque essa condição de rio não lhe é mais necessária.
Trata-se daquela água que vai para a imensidão do mar, porque de lá talvez ela tenha vindo - sim, a imensidão parece ser o destino da água de nascente, da água-bailarina, da água de foz de rio...
...deve ser assim a coisa que permanece, a única coisa duradoura, suponho que seja assim a vida, essa nossa vastidão possível!
...
Mais tarde, o mar devolve tudo que acolheu em seu imenso, e as águas devolvidas logo se transformam em nuvens e vão chover nas cabeceiras, infiltrando-se na terra e nos montes, com aquela força de aparecer outra vez como água de nascente e se transformar em rio, em vida, em sagrado; tudo é assim, terrivelmente indizível e inocente - uma inocência pirracenta captada apenas pelos espíritos dóceis e avessa à presunção da certeza científica.
...
Estou pensando essas tolices depois de caminhar pelas ruas da cidade e não encontrar mais os que já se foram para além da foz do rio; doeu muito a ausência daqueles a quem não posso mais abraçar; e foi com uma sensação indescritível de pequenez que experimentei, por frações de segundos, essa coisa de imensidão...
...isso me assustou muito, estar diante do enigma indecifrável: o de viver para além da lucidez...
...
...Outro dia, quem sabe, eu me arrisco a pensar sobre a imensidão; talvez nunca isso venha a ocorrer, porque para pensá-la é preciso ser acolhido e transformado por ela em toda a sua pungência, deixar de ser homem porque esta condição não será mais necessária; serei somente vastidão...
...(E vastidão não pensa, não sente, não fala! Ela é todo pensamento, todo sentimento, toda fala! Em si e por si!)  

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O sol das Agulhas Negras


Dia friorento. A cidade dentro da neblina. Desde ontem à tarde. Que tarde chuvosa, que domingo sem sol. Choveu demasiadamente à noite. Pelo menos em minha rua. Os gatos se recolheram. Idem os cachorros. Não houve latidos durante a madrugada. Nem presumi haver escutado o caminhar dos felinos por sobre o telhado. Fez bastante silêncio.
E apesar dos carros que, desde bem cedo, costumam formar fileiras na rua em dias de chuva, apesar deles e de tantas outras coisas, ainda continuou a fazer silêncio na manhã. Isso não me deixa triste. Talvez introspectivo, sim; triste, não; a melancolia é somente um instante prolongado de sombra em meio aos outros instantes de esplendor na vida. Como negar que também gosto de Petrópolis em seu modo de ser típico de cidade na montanha? Chuvas contínuas, zunidos de vento, neblinas espessas, paralelepípedos úmidos. Lá dentro há um sol, sempre há um sol, que às vezes desponta e nos dá dias claros, reluzentes. Este mesmo sol, outras vezes, permanece escondido e só reaparece quando a memória desembaça seus olhos.
É o sol de que me lembro agora. Não o sol que ainda vai despontar em Petrópolis talvez amanhã. Mas o sol de outrora, de quando eu era pouco mais que um menino vindo de longe. Era sábado. Havia chovido a semana inteira em Resende. Mas o sol reaparecera no sábado. Eu estava no meio de um pátio, entre os meus colegas, todos esperando o café da manhã. Cercados por um prédio imponente e sua imensa história. De repente, fomos surpreendidos pelo horizonte. Olhamos todos ao longe. O clarão imenso sobre o pico das Agulhas Negras. Jamais vou esquecer aquelas montanhas. Nem os sonhos brotados dentro de mim naquela hora. Eu era apenas pouco mais que um menino vindo de longe, acostumado com planícies, florestas, rios imensos. Eu não conhecia as montanhas e seus contornos enigmáticos. Depois é que fui me tornar íntimo delas. Da Serra do Lenheiro em São João del Rey e da Cordilheira dos Andes no Chile. Vim então envelhecer na Serra do Mar nesta cidade onde há uma catedral gótica, de cujos sinos se expande o sagrado.
Faz frio hoje, densa é a neblina, mas aquele sol das Agulhas Negras me joga no mundo e me desafia a decifrar os enigmas. Pode ser que, depois da morte, não haja nem claridade nem treva, nem lugar algum; pode ser assim e pode ser o contrário. Que importa isso? Durar ou dissipar. Isso é o de menos. O sol das Agulhas Negras é para sempre enquanto for lembrado. Quem há de morrer no vigor da memória resistente?

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Miragem

(cadê você, mulher sobrevivente na memória?)

Parte I


Precisei sempre de uma visão fantástica para viver, por isso fui ao
deserto. Lá onde os olhos humanos são corrompidos pelo reflexo da luz
solar. Não falo propriamente dos desertos convencionais, das longas
extensões de terras inóspitas, calcinadas pelo sol. Nem sempre é preciso ir
ao Saara para colher ilusões sedutoras. Uma cidade pode ser também um
deserto, as multidões transformadas em rostos desconhecidos e
incomunicáveis, o resto convertido em solidão. É neste estar-só inexorável
que surgem terríveis miragens em cada esquina, em cada beco, em cada
avenida, em cada semáforo, em cada bar, em cada cinema.
Miragem, em meu caso, lembra um grande amor, mais pretensão
poética que realidade. A mulher perfeita, a amante, a namorada. Hoje eu
não falo mais seu nome. Digo somente: Miragem. Se penso, eu penso nesta
mulher. Se falo, eu falo desta mulher. Se sonho, eu sonho com esta mulher.
Mas quem é ela que, não existindo mais, insiste em permanecer em mim?
Que mulher pode ser para um homem seu ontem, seu hoje, seu amanhã,
quando não passa de uma simples impregnação poética? Ela existe e não
existe. Ela é miragem. Morre e revive em mim. Sempre. Não é como certas
estrelas que perdem o brilho quando morrem na vastidão do espaço. Ela me
ilumina simplesmente sem cessar. Sou mera sombra sem sua claridade.
Mulher perfeita?

Parte II

Dizem que a mulher perfeita é a que tem os olhos verdes da cor do
mar, ou quem sabe do azul do céu, ou pretos da noite de lua-nova. A que
tem cabelo para esvoaçar no vento da manhã, a que usa vestido negro numa
noite de sábado, a que cruza as pernas em público só para mostrar a
calcinha, a que homem nenhum consegue tocar de verdade. A que passa
indiferente, do outro lado da rua, a que fala na televisão, a que aparece nua
numa revista masculina, a que desnorteia os homens desamparados. Mulher
perfeita ou metáfora da perfeição?
Você nunca quis ser perfeita. Pegava minhas mãos e as enfiava por
dentro de suas roupas, me dizendo que era de carne e osso, “pode tocar,
não se sinta constrangido, meu bem”. De manhã cedo, fazia questão de se
mostrar despenteada, com cara de sono, falando que na vida não se beijava
na boca como se beija nos filmes, porque antes se deve escovar os dentes e,
de preferência, tomar um bom café para não passar mal enquanto se faz
amor. Mas, às vezes, de madrugada, você esquecia essas regras, vinha para
cima de mim, dizia que no escuro o mau hálito adquiria o gosto de hortelã.
Você tinha uma só perfeição: a de ser mulher de verdade.
Você existiu mesmo?
— Como é o seu nome?
— Miragem! – você me disse.
Foi assim que você falou numa esquina de Copacabana, vestida para a
noite. Eu novamente perguntei o seu nome, você outra vez me disse que era
Miragem, e eu ri pensando na metáfora da mulher perfeita.

Parte III

Miragem: minha namorada. Ela retrucava: “Sou sua amante!”. Para
que um homem precisa de uma amante? Eu indagava, ela negava resposta,
dizia que eu pensava em demasia e que deveria me concentrar mais no
amor. “Olhe-me bem, meu amor, sou sua amante!”.
Miragem dizia que as amantes eram as melhores namoradas,
incomparáveis, perfeitas para homens que precisam inexplicavelmente trair.
Inegável a vantagem da amante, incessantemente desejada pelo homem
que vê nela uma mulher feita exclusivamente de qualidades, isto é, uma
miragem em todos os sentidos. Vestida de um jeito de estar sempre pronta
para uma festa, o tempo todo disposta ao amor, raramente reclama de
fadigas, enxaquecas inesperadas, tristezas repentinas. Conversa sem
embaraço sobre todos os assuntos e, de vez em quando, consegue a façanha
de ser poliglota. Longe de ser a coisa comum do cotidiano. Fantasia dos
homens desnorteados.
Mas chega o tempo em que a amante perde o encanto, deixa de ser
novidade, vira mulher comum. Reduz-se, então, a uma pobre criatura,
desorientada no mundo. Nessas horas ela lamenta a condição de intrusa e a
falta de exclusividade que julga merecer. Cansa dos álibis e da
clandestinidade; quer ser a mulher oficial, a matriz e não a filial. Sozinha,
detesta os fins de semana, dias de insuportável solidão. A amante, quando
deixa de ser miragem, racha literalmente.
Mas Miragem nunca escondeu seus defeitos, nunca mostrou duas
caras, nunca quis ser fantasia, mas sim mulher de carne e osso. De sangue,
de suor, de glândulas.

Parte IV

Fui às enciclopédias pesquisar Miragem. Porque Miragem era frenética
em minha cama. Porque gozava alucinadamente, “o meu ponto G, você
encontrou o meu ponto G”.
Antigamente me diziam que toda mulher tem um grande mistério entre
as pernas e que conhecê-lo era tarefa primordial do homem. Eu indagava
aos mais velhos se por acaso eles se referiam à vagina. Eles, que pareciam
conhecer tudo da vida, riam de mim e frisavam que seria preciso viver pelo
menos sete vezes mais para decifrar todos os enigmas femininos. Depois de
muita conversa e risada, me revelavam: “Todo homem precisa dominar o
funcionamento do clitóris, que é o centro da lascívia feminina”.
Eu perguntava: “Miragem, que mistério é este no seu grelo?”
Miragem respondia: “Mistério nenhum. Apenas é sensível ao seu dedo
e à sua língua!”
Pois bem, um dia desses, lendo um tratado de Medicina, fiquei sabendo
do ponto G, uma glândula extremamente sensível – ou algo parecido – que
existe no interior e na parede frontal da vagina, a uns cinco centímetros de
sua abertura. Foi batizada de ponto de Gräfenberg, em homenagem a um
certo doutor Ernst Gräfenberg, um médico alemão que se notabilizou por
essa descoberta inusitada da genitália feminina.
Miragem nunca se perdeu em detalhes técnicos, ia direto ao assunto:
“Quero ficar sentada sobre você, assim você atinge intensamente o meu
ponto G...”. Minha amada jamais se interessou por pesquisas científicas. “E
precisa discutir, meu amor?”.
Dizem os cientistas que se trata de um pequeno ponto no corpo
feminino, não tão visível quanto o clitóris, menor ainda, mais úmido e mais
oculto. Decifrar seu código é o que precisa o homem para levar uma mulher
ao orgasmo impensável. Quero conhecer bem todos esses pontos, essas
glândulas secretas, mas sei que preciso ir além dos gráficos dos anatomistas
para atingir o lugar mais fecundo e doce da alma feminina. Lá onde a mulher
guarda, diligentemente, os seus mais preciosos favos de mel.
Nessas horas, Miragem me capturava: “Você pensa demais, que tal me
amar agora? Quero ficar por cima de você, bem sentada, que é assim que
você atinge intensamente o meu ponto G...”. E, depois, contente, ela dizia:
“Agora vamos sair, ver as vitrines, bater pernas...”

Parte V

Miragem na butique de lingerie. Um instante inusitado. Preciso mesmo
escolher?, ela me perguntava várias vezes, eu dizia que sim. Apontava
adiante, trêmulo, renda e seda, cor e um pedaço de pele, pequena ou maior
que o desejável. Lingerie, meu bem, é meu fetiche, você bem sabe. Miragem
abria a bolsa, tirava um comprimido de tarja preta, “toma, toma, senão vai
ser aqui mesmo, na cabine de experimentar roupa”. Safada, Miragem era
safada, me encabulava de propósito na frente das senhoras e adolescentes.
Eu era o único homem na butique refinada. Enquanto Miragem escolhia
lingerie, eu olhava as outras mulheres. Em algumas, eu notava a
desesperança, a trivialidade da escolha. Noutras, havia o brilho do olhar de
felina, a imaginação solta entre se verem mais ou menos vestidas, tudo
dependendo do tamanho ou da transparência da calcinha escolhida.
Miragem me beliscava, “está olhando o quê? nunca viu?”. Então me
mostrava suas escolhas: eu escolhia a calcinha de renda negra, quase
transparente, e o sutiã cor de sangue. “Vem me ver, então, vem na cabine,
vem dizer se o conjunto cai bem”.
Na cabine, Miragem se desvestia primeiro para pôr o sutiã cor de
sangue e a calcinha de renda negra. “Que tal?” Linda, eu só dizia: linda,
muito linda, vamos embora. Rápido, passávamos pela caixa registradora,
pela seção de embrulhos, eu arrastava Miragem comigo, ela amava os meus
impulsos desse tipo. Íamos apressados, sem respeitar semáforos.
Dessas coisas me lembro, tanto quanto do sutiã cor de sangue e da
calcinha de renda negra, ah eu me lembro da umidade e do furor de
Miragem. Da mulher que, depois de fazer amor e dormir, se levantava cedo
e fazia café para nós dois. Da mulher que gostava de poesia e, por isso,
recolhia os versos dispersos que eu escrevia pela casa.

Parte VI

Miragem, que aconteceu? Você perdeu o gosto de se sentar sobre mim
para que eu lhe atingisse intensamente no ponto G? Ou você simplesmente
cansou de ser uma romântica irresponsável?
Penso no que você terá feito dos versos que escrevi no espelho de sua
cômoda.
Penso em tantas coisas. Penso e não penso. Não é possível pensar
quando você dança, em meu pensamento, com um vestido negro decotado.
Minha mente é uma tela de cinema: as imagens substituíram os
pensamentos, você agora me atordoa, de sutiã cor de sangue e calcinha de
renda negra, no meio de sombras. Cadê você, Miragem?
Meus remédios de tarja preta.
Aturdido, não sei mais o que fazer.
Deus do céu, cadê esta mulher?

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Os deuses e a ordem política e social

1. Introdução
O livro X de As leis de Platão destaca a gravidade das licenças e insolências cometidas pela juventude, sugerindo, em seu preâmbulo, para que se elaborem sabiamente as leis do Estado, a necessidade de educação dos cidadãos, fundamentando-a na crença aos deuses: “ninguém que acredite, como é prescrito pela lei, na existência dos deuses, jamais cometeu uma ação ímpia voluntariamente ou proferiu uma palavra criminosa” (Leis, X, 885b). Por conseguinte, entre os que praticam e/ou estimulam a injustiça, encontram-se os ímpios, agrupados pelo ateniense (em debate com Clínias e Megilo, os outros protagonistas do diálogo) segundo três convicções: aqueles que não acreditam nos deuses; aqueles que acreditam nos deuses, mas não que estes se importem com os seres humanos; e aqueles que acreditam que os deuses são passíveis de serem subornados por oferendas e orações.
Evidencia-se, na elaboração do projeto legislativo para o Estado magnesiano, a predominância do caráter essencialmente educador da lei, cujo alcance pedagógico deve ser estendido à cidade inteira, não mais se limitando apenas ao governante. O discurso filosófico se apresenta como sustentáculo da legislação, em forma de preâmbulos, nos quais se formulam e se fundamentam as normas do bem agir, precedendo os preceitos coercitivos do legislador; em outros termos, vem, primeiramente, a persuasão e somente depois a coerção. A correta educação deve ser aplicada continuamente desde a infância até a velhice[1] e, neste sentido, encaixa-se o papel pedagógico da constituição legal.
Também fica evidente, no discurso sobre a crença nos deuses, a tentativa de se legitimar metafisicamente as leis humanas, confiando-se plenamente no ethos divino, ao invés de amparar-se, por exemplo, na vontade dos mais fortes ou dos mais ricos. Ao tomar como base a moral fundada pelos deuses, pode o homem justo amar a justiça em si mesma, diferenciando-se do homem da “moral” comum, que é propenso a obter vantagens com a injustiça, ao mesmo tempo em que se escuda na proteção das leis, reivindicando, hipocritamente, valores e fazendo discursos de aparência sobre o bem, sem qualquer relação com o ser. Vê-se em tal comportamento um simples cálculo de interesse pelo homem que, embora amando secretamente a injustiça, se priva de realizá-la, não porque ame a justiça, mas para não ter de sofrer as injustiças alheias ou mesmo sofrer punições. O célebre mito do anel de Giges desvela o auge da injustiça: assinala que o sonho secreto de cada homem é parecer justo sem o ser (República, II, 359b sq.)[2].  Ressalte-se, contudo, que a divindade em Platão não é a mesma apregoada pelos poetas, mas sim um Bem supremo, que é comprovado dialeticamente pela filosofia. O filósofo converte-se, pois, em legislador, empenhado em educar toda a cidade contra a impiedade dos discursos dos poetas e materialistas, que, em verso e prosa, desconhecem a anterioridade da alma em relação ao corpo, pondo em primeiro lugar o que é último, isto é, os princípios materiais. “A alma é mais velha que o corpo, e não diferentemente.” (Leis, X, 892c).
Ao identificar a impiedade como gênese da injustiça e estabelecer leis para que os ímpios renunciem ao seu ateísmo em favor dos caminhos dos piedosos, o ateniense atribui diferentes tipos de prisão e castigo, com o fito de restabelecer a justiça. Ao fazê-lo, termina por incluir, entre os apenados, aqueles que, embora não acreditando em deuses, nem por isso perdem seu caráter naturalmente justo – ou seja, pune-se o justo pelo fato de ser ateu e não porque seja injusto. Sem contar que, ao aplicar as leis para os demais ímpios, termina por recair no que antes se queria evitar: a vontade arbitrária do mais forte – no caso, o Estado. Trata-se, pois, de uma dupla contradição, isto é, tanto ao defender os deuses – que não precisam da ajuda humana – com as penas dos homens quanto ao punir o justo não porque seja injusto, mas por ser ímpio.
Com uma breve reflexão sobre o que significa justiça no pensamento de Platão e o sentido das leis contra impiedade, pretende-se, neste breve ensaio, tentar compreender essa aparente antinomia.


2. A justiça em Platão e o sentido das leis contra a impiedade
            Nosso breve ensaio se estrutura em três partes: numa primeira, esboça-se o conceito de justiça em Platão, com base em seus argumentos sobre o homem e as virtudes cardeais, presentes nos quatro primeiros livros de A república; numa segunda, descrevem-se os tipos e subtipos de crimes de impiedade e as diferentes prisões para as quais são destinados os ímpios, conforme o estabelecido no livro X de As leis; e, finalmente, numa terceira, comenta-se sobre a aparente contradição do fato de uma lei humana punir em nome dos deuses.  
            Tratemos, inicialmente, do conceito de justiça em Platão.
            Toda a práxis política em Platão se volta, primordialmente, para a dimensão ética e política da existência humana. Segundo Jaeger, “o problema para o qual desde o primeiro instante se orienta o pensamento de Platão é o problema do Estado” (2003, p.749). Toda a argumentação política e ética platônica, em A república, como se constata já na leitura do livro I, tem como ponto de partida a busca da definição de justiça. Tem em vista com isso estabelecer uma nítida diferenciação entre as esferas da ética e dos apetites desmedidos, pois no agir do homem se mantém uma relação nem sempre simétrica entre lei e desejo, e é dessa assimetria que, geralmente, emergem as crises morais. Comumente, nessa relação entre desejo e lei, o homem se situa em três posições: ou dá preponderância ao desejo, em detrimento da lei; ou abre mão do desejo em prol da lei; ou opera o desejo em níveis mínimos, isto é, na justa medida, em conciliação com a lei.
            Como em seus diálogos anteriores, Platão, por meio de Sócrates, continua a utilizar o método dialético em A república, em torno da definição de justiça. Diante de Céfalo, para quem a justiça é “dizer a verdade e devolver o que se tiver recebido de outrem”, diz:

Belas palavras as tuas, Céfalo, disse eu. E, assim, afirmaremos que em si a justiça é simplesmente dizer a verdade e devolver o que se tiver recebido de outrem? Ou que é possível, às vezes, agir com justiça e, às vezes, contra ela? Por exemplo, quando alguém, de um amigo que estivesse em seu juízo perfeito, recebesse armas, se, estando fora de si, ele as pedisse de volta, todo mundo diria que não deve devolver tais armas e que não agiria com justiça quem as devolvesse, nem se quisesse dizer toda a verdade a alguém nesse estado. (A república, I, 331c).

            Já com Polemarco, que se faz porta-voz do poeta Simônides, para quem a justiça seria devolver a cada pessoa o que lhe é devido, Sócrates apresenta sua refutação com o paradigma da techné (técnicas). Sócrates diz que quando o poeta usou a expressão o que lhe é devido, ele pensava que o justo seria dar ao outro o que lhe convinha:

Então, se alguém lhe perguntasse: “Simônides, a quem e o que a arte chamada medicina dá o devido e o conveniente?”, o que pensas que ele nos responderia? Polemarco responde: “Evidentemente que aos corpos dá remédios, alimentos e bebidas”. (A república, I, 332c).

            Ora, Sócrates, para opor-se à pretensão democrática de que cada um pode se exprimir sobre qualquer assunto, apresenta o paradigma da techné, ou seja, o critério técnico que deve ser plenamente seguido por todos. O saber técnico é o exemplo de um saber reservado. Quando se toca um domínio de competência particular, cada um concorda que a palavra deve ser dada ao homem de arte, àquele que mais sabe do assunto. Tem-se aqui a pedra fundamental do socratismo, que torna ilegítimas as pretensões democráticas da multidão, pois, muitas vezes, um só indivíduo pode ter mais razão do que muitos.
            A dialética e a associação com as technai (técnicas) também são usadas por Sócrates para refutar o sofista Trasímaco, que vê a justiça como o interesse do mais forte. Ele demonstra a hierarquia das técnicas, dizendo que as diversas artes não têm por objetivo a sua própria vantagem, pois não necessitam de nada, mas sim a do indivíduo a que se aplicam. As artes governam e dominam o objeto sobre o qual se exercem. A medicina, por exemplo, não visa ao vantajoso para a medicina, mas para o corpo. A equitação, por sua vez, não visa ao vantajoso para a equitação, mas para os cavalos; e assim por diante. Desse modo, Sócrates afirma a Trasímaco que

[...] nenhuma outra pessoa, em nenhum posto de comando, na medida em que é chefe, tem em vista e impõe o útil para si mesmo, mas o útil para o governado e para aquele a quem ele presta serviço e, voltando os olhos para isso e para o que é útil e conveniente para aquele, diz tudo o que diz e faz tudo o que faz. (A república, I, 342e)

            Esse diálogo se aprofunda pela antropologia platônica no livro II de A república, no qual, devido ao impasse sobre a definição de justiça, Platão ampliará seus comentários sobre as technai (artes) e buscará encontrar, pela dialética, uma techné superior, aquela que conterá o logos do ser e na qual se encontra a capacidade dos belos discursos e a arte de governar. Duas argumentações sobre a definição de justiça merecem destaque: a de Glauco, a partir do raciocínio de Trasímaco, e a de Adimanto, em sentido contrário à de Glauco.
São três os pontos argumentativos de Glauco: o primeiro, o que afirma ser a justiça e qual a sua origem: a justiça seria um acordo entre os homens, mediante o qual estes se privam do maior bem, que é cometer a injustiça, em vista de não sofrerem o mal maior, que é ser vítima da injustiça; o segundo, o que afirma que todos os que praticam a justiça o fazem contra a vontade do que realmente gostariam de fazer, ou seja, todos gostariam de praticar a injustiça, em decorrência da predominância do desejo ilimitado sobre a lei (primazia da epythimia em cada homem, isto é, do desejo sensível); ora, ao se conceder ao justo e ao injusto a possibilidade de fazerem o que bem quiserem, sem coerção, logo se apanhará o justo em flagrante a cometer injustiça, ou seja, buscando o mesmo objeto buscado pelo injusto, em razão da sanha, hybris; o que se busca como bem (quando invisível, como no mito do anel de Giges) é o bem sensível; a justiça, por conseguinte, é vista como uma repressão do desejo; e o terceiro, o que afirma que a vida do injusto é muito melhor do que a do justo, uma opinião não compartilhada por Glauco, embora este se sinta embaraçado por ouvir como válidos os argumentos de Trasímaco e outros sofistas, que dão a esses discursos dissociados do ser uma aparência de verdade. Quanto a Adimanto, a argumentação sobre a justiça se põe em sentido oposto ao de Glauco. O argumento apresentado é uma tese elogiosa à justiça, mas se percebe que, por trás da aparência de verdade do discurso, o que se assume é a injustiça, o propósito de se desacreditar a justiça.
Fica bem evidenciado o caráter problemático da tarefa de se definir a natureza e a origem da justiça. Em Glauco, inicialmente, entende-se que a origem e a essência da justiça se encontram no dilema de situar-se entre o maior bem – cometer impunemente a injustiça – e o maior mal, o de sofrê-la quando se é incapaz de confrontar-se o injusto. É por isso que se originaram as leis e as convenções, considerando-se legítimo e justo o que prescreve a legislação. Ora, mas Glauco também se vale do mito do anel de Giges para realçar a epythimia (apetite corporal) como causa da injustiça cometida pelo homem, cuja natureza – sendo justo ou sendo injusto – é deixar-se levar pelas ambições, pelas paixões e pelo desejo de prevalecer sobre os outros. O indivíduo é um problema para a justiça, por isso é fundamental tratar antes o todo, isto é, a cidade. Além disso, Glauco afirma ainda que a vida do injusto é muito melhor do que a do justo. Esta parece não ser a opinião dele, mas é o que costuma ouvir da maioria dos homens que se pronunciam a respeito disso. Ao fazer um juízo da vida do justo e do injusto, Glauco demonstra que os ditos homens justos praticam a justiça apenas para receber honrarias e recompensas e não porque sejam realmente justos. Em outros termos, o injusto se dissimula habilmente quando realiza alguma má-ação e quer ser superior na injustiça. E o justo é aquele que apenas parece ser justo, e por isso é recompensado pelos outros. Assim sendo, as opiniões que situam a injustiça sobre a justiça só comprovam como a vida do injusto parece ser melhor do que a do justo. O injusto governa a cidade graças ao seu aspecto de homem justo, mas, em contrapartida, arranja mulheres onde lhe apraz, constitui associações de prazer e negócios com quem lhe agrada e tira proveito de tudo, porque não tem escrúpulos em ser injusto. Normalmente, ele prevalece sobre os adversários, enriquece ilicitamente, prejudica os inimigos, ajuda os amigos e chega ao cúmulo de obter até mesmo favores dos deuses a quem oferece sacrifícios e oferendas. Todo esse quadro aponta um favorecimento ao injusto, por parte dos deuses e dos homens, o que lhe faz viver melhor do que o justo.
Quando Glauco acaba de falar, é a vez do seu irmão, Adimanto, discursar. E Adimanto apresenta tese contrária à de Glauco – a tese dos que elogiam a justiça, mas assumem a injustiça –, porém com o propósito de também desacreditar a justiça. Afirma que é comum elogiar a justiça não pelo que ela é em si mesma, mas pela reputação que acarreta, ou seja, as pessoas se mostram justas apenas para receberem os benefícios da aparência. Ora, segundo Adimanto, todos celebram como boas a temperança e a justiça, mas as consideram difíceis e penosas; ao contrário, a intemperança e a injustiça lhes parecem agradáveis e de fácil domínio, somente vergonhosas na ótica da opinião pública. Até os deuses reservam, muitas vezes, aos homens virtuosos, o infortúnio e uma vida miserável. O injusto chega a fazer negociatas com os deuses para obter o que deseja e ambiciona. Mostra-se aqui, mais uma vez, a injustiça como o resultado da primazia do desejo corporal (epythimia), que deve ser controlado para o bem da cidade. Afinal, na Atenas daquela época priorizava-se parecer justo ao invés de ser verdadeiramente justo, ou seja, um homem que fosse justo sem o parecer jamais tiraria proveito dessa condição; ao revés, só teria aborrecimentos e prejuízos. Mas se fosse injusto e gozasse da reputação de justo, lhe diriam que levava uma vida divina. Portanto, a aparência surge como distribuidora da verdade e senhora da felicidade. Era com base nisso que os pais e mestres educavam as crianças. Então, por que motivo se deveria preferir a justiça à injustiça?
Está claro, no exame da argumentação de Glauco e Adimanto, que o problema da injustiça e da decadência dos valores de Atenas é o homem que não exerce o devido controle sobre seus desejos, o que não dá a justa medida à sua epythimia, o que vive predominantemente na esfera da paixão e desconhece outras dimensões da vida, como a vida sob o domínio da razão – este é o injusto que precisa ser educado na dialética socrática. Ora, Sócrates entende que a investigação sobre a justiça não pode se limitar ao indivíduo, mas sim estender-se a toda a cidade. É na cidade que a justiça será mais visível; somente depois é que se deve buscar a justiça no indivíduo, até para que se verifique a semelhança entre a justiça grande e a pequena. É então que Platão retoma a associação das technai ao propor construir a cidade ideal a partir das necessidades dos indivíduos, porque o que causa o nascimento de uma cidade é justamente a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e também a necessidade que sente de ter uma porção de coisas, isto é, bens sensíveis. Contra esse homem injusto, Platão se apresenta em polo oposto, propondo-lhe encontrar, pela dialética, o logos do ser, a verdade situada além dos falsos saberes e do prestígio aparente dos belos discursos sofísticos.
A pedagogia socrática, por meio de Platão, ressoa no livro III de A república, com a retomada das acusações contra os poetas – é preciso livrar as crianças das falsidades dos poetas; é necessário realçar o heroísmo, a figura de Aquiles e não a dos homens fracos e covardes que só sabem se lamentar; é urgente pôr fim às influências negativas dos mitos. Observe-se, desde já, que a divindade em Platão – fundamento para a legislação da colônia de Magnésio, como se poderá constatar em As leis – é completamente oposta à teogonia hesiódica e às sagas de Homero, nas quais o ethos dos deuses é tremendamente flexível e, por vezes, esgarçado pela amoralidade. Os argumentos platônicos conduzem a cidade para um modelo educacional que transporte o homem para além da experiência sensível, livrando-o das sombras e das aparências, e o faça chegar ao conhecimento da razão. Por isso é que Platão deseja eliminar, da educação dos jovens e das crianças, as fábulas dos poetas, que, segundo ele, só contêm falsidades sobre os deuses, descritos na poesia com todos os seus defeitos, e não perfeitos como o são as divindades. Discute-se, desse modo, o que deve ser dito na poesia (conteúdo) e como deve ser dito (forma). Propõe-se que sejam expurgadas das fábulas as asserções que reforcem a epythimia e a autopiedade, consideradas prejudiciais à educação. Diante das referências aos deuses e heróis encontradas em Homero, Sócrates diz que devem ser preservadas as divindades e as figuras heroicas das cenas de fraqueza e lamento; também rejeita o prazer psicológico daqueles que se põem como vítimas e têm sede de lágrimas. São estabelecidos os conteúdos para os mitos, bem como as ações que devem ser imitadas, isto é, a dos homens nobres, pois a imitação se transforma em hábito e natureza para o corpo, a voz e a mente – assim, só se deve imitar o que seja bom para o homem de bem; enaltece-se a educação baseada na música e na ginástica.
É no livro III de A república que Platão retoma a busca dialética pela melhor definição de justiça, a partir das outras virtudes cardeais: a temperança, a coragem e a sabedoria. Definidas essas virtudes, chegar-se-ia, por exclusão, à justiça. No exame do que se entende dessas virtudes, Platão, por meio de Sócrates, leva-nos ao seu modelo de educação baseado na música e na ginástica. Diz que a alma tem dois elementos, a coragem e a sabedoria, que precisam estar perfeitamente equilibrados, e que a coragem está ligada à ginástica, como a sabedoria se liga à música. É preciso haver harmonia entre música e ginástica, porque a música conduz o homem à sabedoria, e a ginástica, à coragem. É a música que permite o contato com a musa, capacitando o homem a servir-se do discurso para persuadir os demais, livrando-os dos grilhões das sensações e tornando-os amigos da razão (apenas o homem educado tem modelos dados pela razão): assim tornar-se-á sábio. Por outro lado, se o homem se entregasse somente à música, entregar-se-ia à moleza e à brandura excessivas, pelo que precisa da rusticidade propiciada pela ginástica: assim tornar-se-á corajoso. Aí já pode se perceber a presença do logos, o que faz o filósofo aparecer como o líder capaz de associar, harmonicamente, a ginástica à música. Tal é o plano geral da educação da cidade, que visa a produzir um homem eminentemente útil a si mesmo e à cidade, o governante idealizado, porque comedido, sensato, racional e com pleno domínio sobre as emoções.
 No livro IV de A república aprofunda-se a relação entre justiça e felicidade na cidade ideal. Ao oráculo de Delfos é encaminhada a questão religiosa. Outros aspectos da cidade são regulamentados. Agora, fundada a cidade, pode-se tentar novamente encontrar onde se acham precisamente a justiça e a injustiça. Indaga-se, com mais minúcias, sobre a justiça, a partir das virtudes cardeais – sabedoria (sophia), coragem (andreia), temperança (sophrosyne) e justiça (dikaiosyne). Essas virtudes só podem ser adquiridas pelo cidadão se este for educado adequadamente desde criança, e esse raciocínio se manifesta agora com mais clareza. Estabelece-se uma relação entre justiça e felicidade: na cidade bem construída, todos são felizes e não apenas alguns. É preciso haver unidade na polis, o que se consegue quando cada cidadão se ocupa de sua tarefa própria: quem é governante, deve ser apenas governante; quem é guerreiro, deve ser apenas guerreiro; quem é artesão, deve ser apenas artesão.
Da temperança, Platão diz que se trata do domínio sobre certos prazeres e paixões; o homem temperante é senhor de si mesmo, e isso significa que sua parte racional e superior supera sua epythimia; se não fosse assim, seria escravo de si mesmo, isto é, sua parte inferior e emocional tomaria conta dele. A natureza superior, moldada pela educação, deve prevalecer sobre o inferior e impor seus valores. Esta harmonia existente no indivíduo se estende para a cidade, onde também deve haver um acordo harmonioso pelo qual os governados, em maior número, se submetam aos governantes, do mesmo modo que os desejos numerosos se subordinam à razão.
Da sabedoria, Platão diz que se trata da posse de uma epistéme (conhecimento) pela qual se delibera sobre a melhor maneira de a cidade se comportar consigo mesma e perante as outras cidades. Tem por objeto a conservação do Estado e se encontra nos magistrados, que são os guardiões perfeitos; essa epistéme é a filosofia.
Da coragem, Platão afirma que se trata da capacidade (dynamis) e perseverança em conservar, em qualquer circunstância, especialmente nas vicissitudes, a opinião sobre as coisas a temer. Em outras palavras, trata-se daquilo que o legislador designou na educação, uma espécie de salvaguarda, os valores internalizados dos quais resultam uma opinião reta e legítima. Por conseguinte, todos devem dar de si o melhor para a cidade, segundo uma lei maior, que é exatamente a lei internalizada pela educação. Todos se predispõem a obedecer às suas consciências, voltados para o bem comum. É por isso que a cidade bem fundada gera o Estado perfeito, pois ela será sábia, corajosa, ponderada e justa. Assim, a coragem se caracteriza como logos, a vontade de fazer cumprir a lei maior, internalizada em cada homem pela educação.
Da justiça, portanto, após ter examinado as demais virtudes cardeais, Platão pode dizer agora que se trata do princípio de fundação da cidade, pelo qual cada um desempenha a sua função própria, sem interferir no trabalho dos outros. Encontra-se na cidade bem governada, isto é, dirigida pelo governante que possui a epistéme e a dynamis para gerar e preservar as outras virtudes. Justiça, por conseguinte, é o que resulta de dois princípios em confronto no indivíduo: o elemento racional e o elemento irracional, entre os quais um terceiro elemento, o irascível, se põe como auxiliar da razão. Isso se estende às classes da cidade, assim representadas: os governantes como o racional; os artesãos como o irracional; e os guerreiros como o irascível. É da primazia da racionalidade que surge a justiça tanto na alma do homem quanto na cidade bem fundada. Pode-se agora vislumbrar como a coragem – a força que salvaguarda a opinião reta e legítima sobre os valores da educação, internalizados pelo que o legislador previamente estabeleceu – se alia à sabedoria, a epistéme capaz de conservar o Estado. Sendo esta epistéme a filosofia, é necessário que o governante seja filósofo ou no mínimo o rei convertido à filosofia. É o logos – portanto, o rei filósofo – que determinará ao poeta que elabore mitos (fábulas) com função pedagógica, isto é, a poesia necessária ao processo de internalização e hierarquização de valores que levem o cidadão à opinião reta e legítima (coragem).
Ora, a cidade ideal de Platão nunca se tornou realidade, o que não invalida seu projeto. Não é tão simples impor à multidão da cidade a autoridade do filósofo, especialmente quando o discurso filosófico passa a enfrentar outras técnicas discursivas, como a retórica, a sofística e a erística. Os sofistas introduzem um discurso utilitarista, que não se preocupa em atingir o ser e se situa na neutralidade da linguagem – o logos deixa de estar ligado ao ser; agora diz tanto uma coisa quanto o seu oposto, não mais diz o ser e as coisas assim como são; são discursos de aparência e contrários à existência dos deuses e à moralidade nestes fundada; descreem da intervenção dos deuses na criação do mundo; refugiam-se no materialismo mais estrito e chegam a derivar a alma dos elementos materiais como o ar, o fogo, a água e a terra. Perde-se, assim, uma linguagem consubstancialmente ligada ao ser; o discurso admite a mentira como premissa do argumento; “o homem é a medida de todas as coisas”, diz Protágoras, e a lei vigente logo se torna a expressão da vontade da classe dominante; em consequência, é preciso agir contra os sofistas, fazendo a cidade reencontrar, para o bem da ordem política, o seu fundamento e a sua legitimidade numa ordem cósmica.
O ateniense de As leis, conhecedor desse projeto irrealizado da cidade ideal e do seu rei filósofo, em meio às influências dos sofistas e dos físicos sobre as opiniões da juventude, vai ao encontro de Clínias e Megilo para contribuir com a elaboração das leis da colônia de Magnésio.  Se em A república, a teoria das ideias e o Bem supremo têm lugar central, deles derivando todas as ações humanas por participação, em As leis se concede maior importância à experiência e ao problema da formação elementar da multidão, partindo-se dessas raízes terrenas para as esferas suprassensíveis, caminho inverso da dialética educacional da cidade ideal. A dialética do Bem, no Estado magnesiano, se dá na multiplicidade das suas manifestações. A ideia do Bem é exigida como conteúdo da cultura do governante. Retoma-se a fundamentação das leis numa ordem cósmica, isto é, na divindade, e se faz necessário, portanto, combater a impiedade com uma educação correta[3]. Afirma Jaeger, a respeito do grande espaço ocupado pelos problemas de educação em As leis, que “A finalidade da obra, no seu conjunto, era edificar um formidável sistema de educação. A sua atitude em face da Paideia aparece exposta com maior clareza de princípio numa passagem do livro X” (2003, p.1299). Ele se refere ao paralelo estabelecido por Platão entre o mau legislador e o médico de escravos, bem como ao paralelo entre o médico que se dedica a tratar cidadãos livres e o filósofo convertido em legislador. É bem conhecida essa passagem:

O ateniense: Deve, então, o preposto que nomeamos para essas leis deixar de fazer uma tal formulação inicial e declarar imediatamente o que tem que ser feito e o que não tem e indicar a punição na qual incorre a desobediência, e assim voltar-se para uma outra lei, sem acrescentar aos seus estatutos uma única palavra de encorajamento e persuasão? Tal como ocorre com os médicos, um nos trata de uma maneira, outro de outra: eles dispõem de dois métodos diferentes dos quais podemos nos lembrar, para que, como crianças que pedem ao médico para que as trate pelo método mais brando, possamos fazer um pedido semelhante ao legislador. E o que queremos dizer com isso/ Há homens que são médicos, segundo dizemos, e outros que são assistentes de médicos, mas chamamos estes últimos também de médicos, não é mesmo?
Clínias: Sem dúvida, nós o fazemos.
O ateniense: Esses, sejam eles livres ou escravos, adquirem sua arte sob a direção de seus mestres por meio da observação e da prática e não pelo estudo da natureza, que é o meio pelo qual os médicos livres eles mesmo aprendem a arte, sendo também este o meio pelo qual instruem seus próprios discípulos. Dirias que temos aqui duas classes do que é chamado de médicos?
Clínias: Certamente.
O ateniense: Estás também ciente de que como as pessoas enfermas nas cidades são constituídas tanto por escravos quanto por cidadãos livres, os escravos são geralmente tratados pelos escravos, em suas rondas pela cidade ou aguardado nos dispensários; e nenhum desses médicos dá ou recebe quaisquer explicações sobre as várias doenças dos diversos servos que tratam, limitando-se a prescrever para cada um deles o que julga certo com base na experiência, como se detivesse conhecimento exato, e com a autossuficiência de um monarca despótico; em seguida passa de um átimo muito rapidamente para um outro servo enfermo, poupando assim seu mestre do atendimento dos doentes. Mas o médico nascido livre se ocupa principalmente em visitar e tratar das enfermidades das pessoas livres e o faz investigando-as desde o começo e conforme o curso natural; conversa com o próprio paciente e com seus amigos, podendo assim tanto obter conhecimento a partir daquele que padece da doença [e seus amigos] como transmitir a estes as devidas impressões na medida do possível. Ademais, ele não prescreve nada ao paciente enquanto não conquistar o consentimento deste, para só quando consegui-lo então, mantendo a docilidade do paciente por meio da persuasão, realmente tentar completar a tarefa de devolver-lhe a saúde. (As leis, IV, 720a-e).
  
Esse processo educacional fundamentado na moralidade do cosmos divino está bem claro no livro X de As leis, em cujo prólogo Platão, por meio do ateniense, comenta sobre os ilícitos mais graves cometidos pela juventude, destacando os que atingem as coisas públicas e sagradas e atribuindo como causa de todas essas ofensas a impiedade que é propagada pelos sofistas e físicos. Sob esse ponto de vista, os males humanos vêm todos da descrença nos deuses e em sua moralidade cósmica, sendo os materialistas os verdadeiros responsáveis por isso, porque propagam discursos mentirosos e utilitários que tomam o homem como a medida de todas as coisas. O ateniense enuncia três tipos de impiedade: primeiro, a descrença nos deuses; segundo, a crença nos deuses, mas não que estes se importem com os seres humanos; e terceiro, a crença em que os deuses são fáceis de serem conquistados quando subornados por oferendas e orações. Para cada tipo de impiedade, resultam duas formas derivadas de impiedade.
Do primeiro tipo de impiedade, por exemplo, – a descrença nos deuses – há dois subtipos de impiedade: há o ultraje cometido pelos ímpios de caráter justo e que repudiam a injustiça; e há o ultraje dos ímpios que, além da descrença na existência dos deuses, fraquejam ante seus prazeres e sofrimentos, isto é, são dominados por sua epythimia, embora sejam dotados de memória e possuam inteligência aguda. “De maneira similar, a crença de que os deuses são omissos gera dois outros tipos de impiedade, e a crença de que sejam subornáveis, outras duas” (As leis, X, 908e). Todos os ímpios, inclusive os justos, serão aprisionados.
Ora, ao se referir ao aprisionamento que será aplicado a todos os casos de impiedade, Platão, por meio do ateniense, comenta sobre os três tipos de prisões no Estado, para as quais serão encaminhados os diversos tipos de ímpios, incluindo os justos:

uma prisão pública perto da ágora para a maioria dos casos, mantendo a segurança das pessoas em relação aos criminosos médios; uma segunda prisão situada próximo da sala de reuniões dos oficiais que realizam reuniões noturnas (chamada de reformatório); e uma terceira no centro do território, no sítio mais selvagem e ermo possível, e que detém um nome que evoca a ideia de um lugar de castigo; e visto que as pessoas se envolvem na impiedade pelas três causas que descrevemos, resultando de cada uma dessas causas duas formas de impiedade, consequentemente aqueles que transgridem contra a religião caem em seis categorias que precisam ser distinguidas, já que requerem penas que são tanto diferentes quanto dessemelhantes. (As leis, X, 908a).

            Ora, Platão pune os ímpios justos com advertência e prisão, sem considerar que, embora descreiam nos deuses, amam a justiça, odeiam instintivamente o mal e repudiam as ações injustas. Quer dizer, amam a justiça em si mesma, sem necessitarem dos fundamentos da moralidade dos deuses. Todavia, por isso mesmo, segundo Platão, amparam-se em discursos humanos dissociados do ser e da verdade – o logos, neste caso, dá lugar às exigências de uma moral apoiada sobre a lei positiva. Quanto aos ímpios injustos, dominados por sua epythimia, empenhados em transmitir sua perversão aos demais habitantes da cidade, a pena é o reformatório, onde são persuadidos por aqueles que participam da assembleia noturna, durante um período não inferior a cinco anos, em completo isolamento em relação aos demais, a salvarem suas almas; caso eles se recuperem, passarão a morar com aqueles que foram recuperados; em caso negativo, poderão ser sentenciados à morte. E quanto aos que afirmam serem os deuses negligentes ou subornáveis, a corte os aprisionará na prisão situada no meio do território, impedindo que deles se aproxime qualquer pessoa e que recebam suas rações de alimentos segundo o fixado pelos guardiões das leis. Como apenas o legislador não será culpado pelo deus, por já ter estabelecido a lei, verifica-se que se incide na definição de justiça como a expressão arbitrária da classe mais forte, não obstante a fundamentação metafísica da legislação. Trata-se aparentemente de uma antinomia a aplicação de uma lei baseada na moralidade do cosmos divino e pela qual se deseja evitar o voluntarismo dos mais fortes e dos injustos, pois tanto se pune o ímpio que ama a justiça – embora descreia dos deuses – quanto se mata o outro homem em nome dos deuses que, por serem perfeitos, não precisam absolutamente de ser defendidos pelo legislador.
            Tem-se pela frente um problema representado por essa antinomia. E agora, na terceira parte deste ensaio, tenta-se esboçar uma compreensão da necessidade do fundamento metafísico para a legislação humana, representado pela crença nos deuses e em sua moralidade.
            É bem provável que Platão esteja tentando retomar a ideia arcaica do divino como princípio de unidade-totalidade, como força motriz primordial, como espírito formador do mundo. No tempo das musas, todos se colocavam sob a autoridade dos deuses, e a linguagem servia para dizer o ser e as coisas – o logos estava plenamente na juntura com o ser, dizia o ser, refletia o cosmos, era moralidade no grau mais elevado. Quando os ímpios começaram a propagar um discurso de desvio e aviltamento do logos, pondo em xeque as virtudes norteadoras do bem agir, tornou-se necessário estabelecer como fiel da balança da justiça algo que transcendesse os limites do humano dissimulador e aviltado. Retomar a junção entre a natureza e a lei, ainda que fosse preciso punir eventualmente um justo ímpio ou mesmo matar em nome dos deuses perfeitos, tornou-se um imperativo na Grécia socrática, uma necessidade de desautorizar o preceito de Protágoras que tomava o homem como a medida de todas as coisas. Era preciso, por conseguinte, após as devidas correções das impropriedades cometidas pelos poetas quanto à natureza e ao comportamento das divindades, recuperar a ideia de Deus como medida de todas as coisas, o Deus que se revela e age no cosmos do Estado assim como costuma agir na natureza. Assim, a obediência à lei é, ao fim e ao cabo, obediência à divindade, que tem consigo o princípio, o meio e o fim de todas as coisas. Tudo deve se subordinar a esse Bem supremo e à sua harmonia, pois o homem dominado por sua epythimia encontra muitas dificuldades para apreciar a ordem política e suas leis por si mesmas. Esse é o ideal socrático assumido por Platão no esforço contrário aos sofistas, que iniciaram a oposição entre natureza e lei. Esta é uma tarefa à que se entrega visando a uma ordem política fundamentada e legitimada numa ordem cósmica, da qual ela é somente o reflexo analógico. Não há, portanto, ambiguidade na formulação das leis do Estado magnesiano quando são confrontadas e penalizadas todas as formas de impiedade, incluindo a do ímpio justo, pois este caso pode, no máximo, configurar um mal menor diante de um mal maior que seria o de prejudicar toda a ordem política da cidade. Tampouco se pode dizer propriamente que o legislador sai em defesa dos deuses perfeitos, que dele não necessitam para ser a harmonia e a perfeição do cosmos. Na verdade, o que se manifesta no legislador é sua compreensão da necessidade do logos divino, fruto de sua educação adequada para o governante; ele sabe, por possuir a intimidade com o logos, o que é necessário para que a cidade seja feliz e justa, por participação na ordem cósmica da natureza.
3. Conclusão
            Este breve ensaio tratou sucintamente do conceito de justiça e da elaboração de leis fundamentadas metafisicamente por Platão. Estabeleceu-se a leitura do livro X de As leis, bem como outras partes dessa obra, em contato com os quatro primeiros livros de A república, de modo a compreender-se a definição de justiça em conformidade com as outras virtudes cardeais – a sabedoria, a coragem e a temperança. E, com isso, entender o propósito pedagógico de As leis, delineado como um projeto de oposição aos discursos de aparência dos ímpios, que negavam a existência dos deuses e os consideravam negligentes ou subornáveis.
            Identificou-se uma possível ambiguidade na aplicação das leis aos diversos tipos de impiedade, pois se configurou uma aparente contradição tanto na punição do ímpio justo – aquele que, embora descrente dos deuses, ama a justiça e repudia os injustos – quanto no estabelecimento das penas severas da morte e da negação de sepultamento aos que consideravam as divindades negligentes ou subornáveis. Afinal, como pode haver justiça quando se pune o justo apenas por ser ímpio? E como pode se fundamentar a legislação humana na perfeição e na harmonia do cosmos divino, se a sua obediência exige a aplicação de sanções extremas como o exílio e a morte?
            Só se pode compreender isso dentro do projeto educacional estabelecido por Platão primeiramente em A república e, posteriormente, em As leis. Trata-se de estabelecer um sistema de educação que, contrariamente ao propagado pelos sofistas e físicos, contemple a intervenção dos deuses perfeitos e incorruptíveis na criação do mundo e nos assuntos humanos, trazendo ao homem a possibilidade de viver em consonância com sua razão e pleno domínio sobre os apetites corporais nele enraizados. A ordem política capaz de trazer felicidade à existência humana precisa fundamentar-se e legitimar-se numa ordem cósmica da natureza, o que torna um imperativo categórico o combate a todo tipo de impiedade. Somente assim podem ser transpostos os desejos desmedidos do homem, permitindo-lhe o domínio de si, sem que precise dominar os outros despoticamente. Essa é a via pela qual o logos divino pode descer até os recantos mais ínfimos da vida humana e se transformar em ordem política racional e justa.

Referências bibliográficas
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 1413p.

PLATÃO. As leis. Trad. Edson Bini. 2.ed. Bauru: EDIPRO, 2010, 543p.
______. A república. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 419p.

ROGUE, Christopher. Compreender Platão. Trad. Jaime A. Clasen. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2005, 207p.





[1] Cf. Livro II, 653 a-c a fala do ateniense: “O que afirmo é o seguinte: que quando criança as primeiras sensações pueris a serem experimentadas são o prazer e a dor, e que é sob essa forma que a virtude e o vício surgem primeiramente na alma; mas no que diz respeito à sabedoria e às opiniões verdadeiras estabelecidas, um ser humano será feliz se estas o alcançarem mesmo na velhice, e aquele que é detentor dessas bênçãos, e de tudo que abarcam, é de fato um homem perfeito. Entendo assim por educação a primeira aquisição que a criança fez da virtude. Quando o prazer, o amor, a dor e o ódio nascem com justeza nas almas antes do despertar da razão, e uma vez a razão desperta, os sentimentos se harmonizam com ela no reconhecimento de que foram bem treinados pelas práticas adequadas correspondentes, e essa harmonização, vista como um todo, constitui a virtude; mas a parte dela que é corretamente treinada quanto aos prazeres e os sofrimentos, de modo a odiar o que deve ser odiado desde o início até o fim, e amar o que deve ser amado, esta é aquela que a razão isolará para denominá-la educação, o que é, a meu ver, denominá-la corretamente” (grifo nosso).
[2] Um inofensivo pastor da Lídia é capaz de tornar-se um monstro após encontrar um anel que o torna invisível e lhe assegura uma impunidade total.
[3] Reler a nota de rodapé nº 3 deste ensaio, a que trata sobre educação (Leis, II, 653a-c).