Batalhas que matam crianças precocemente
1.
Perderam o rumo prematuramente. Amargos
e brutalizados. Correm de um lado para o outro nas calçadas. Desnorteados. Sem
qualquer pensamento. Talvez igualmente sem sentimentos. Suas palavras possíveis:
grunhidos, berros, rugidos. Gritam entre si, como se estivessem brincando de
ser criança. Brincadeiras sem candura. Incomodam os passantes amedrontados. Meninos
de rua. Deles se costuma dizer que são irrecuperáveis. Espectros do abandono,
da desconfiança e do desprezo. Que perambulam pelas sombras como fantasmas
encurralados, mendigando e assaltando, matando e morrendo por motivos triviais,
dormindo e fazendo sexo, multiplicando-se em exércitos destinados à
autodestruição, como se fossem metástases inevitáveis de um terrível infortúnio.
Acabo de abrir a janela. O sol costuma
bater a manhã toda na parte dianteira do edifício. Mais um dia na semana. Hoje
é segunda-feira. São quase onze horas, as calçadas já se encheram de gente, as pessoas
entram e saem das lojas, os ônibus se deslocam por suas faixas privativas, os demais
carros vão sendo retidos na lentidão do trânsito engarrafado. De longe, eu vejo
os meninos perto da lanchonete, seus farrapos, seus canivetes e cacos de vidro,
seus desamparos mesclados com ódio. Alvoroçados, berram num dialeto que mal
consigo decifrar. Todos vão até a lanchonete, conseguem um pouco de café e pão
com manteiga e prometem não incomodar os clientes, que se esquivam deles com
movimentos bruscos e receosos; e, em troca do lanche, os meninos garantem que
vão bagunçar bem longe. Alimentam-se feito bicho esfomeado. Depois, saciados,
se afastam da lanchonete e vão se sentar sobre os papelões e jornais, debaixo
da marquise onde costumam dormir. Assim começa efetivamente o dia deles. Que
fazer, perguntam-se. Mendigar, assaltar, matar, morrer. Conseguir dinheiro pra comprar
droga. Ficar bem doido, injetar adrenalina no cérebro e na alma, tomar coragem
para enfrentar seus desatinos. Desonra. Perspectiva zero de felicidade.
2.
Quem
dorme em calçada só pode fazê-lo com muito cuidado, jamais com os olhos plenamente
fechados, mas sim entreabertos e vigilantes, atentos como os olhos de um felino.
O sentido da audição funciona como um radar permanente, detectando os ruídos
estranhos, e tudo isso perturba bastante o sono que costuma ser curto. Sono
pouco reparador. O cansaço, muito cansaço, que nunca se esgota. Noite após
noite, esse modo de dormir equivale a uma brotação incessante de ódio. Assim
dormem esses meninos perdidos e, talvez por esse motivo, é que eles se levantam
apoderados por uma indescritível avidez de sangue e morte. E assim acontece a
vida inteira, que é tão breve para eles.
Os
meninos de rua parecem deliberar entre si e se levantam subitamente. Alvoroço
na calçada: misturam-se entre as pessoas temerosas e apressadas, abrem uma
trilha na multidão, divertem-se com o medo alheio, correm em pequenos grupos
ruidosos, como se fossem tanques de guerra em blitzkrieg. Eles vão geralmente para a porta da igreja, sabendo da
vulnerabilidade dos velhos e das beatas bem vestidas, gente que, embora viciada
em sacristia e missa, vacila na fé, tem cagaço exagerado. Gente fraca que reza
demais e nunca vence o medo insuperável dos demônios. Que não resiste a uma
noite sequer debaixo da marquise ou da chuva. Que morre de medo tanto dos
perigos reais quanto dos imaginários. Que acha que é tarefa de Deus consertar o
mundo desmantelado.
Quando
começa a fazer mais calor, no auge da manhã, as pequenas criaturas atravessam a
rua defronte à igreja e cruzam a praça até o chafariz. Jogam-se na água fria.
Brincam de infância. Alguns até tiram o calção. Ninguém se importa com meninos
nus e brincalhões. Eles brincam até se entediarem. E o tédio os reconduz às
ruas confusas, onde, com a raiva dos demônios, arrancam cordões de ouro e
relógios chiques dos transeuntes, e onde pintam o sete, como se fossem os donos
do mundo. Os guardas municipais chegam para restabelecer a ordem. Os meninos irados
zombam das autoridades e fogem pelo meio do trânsito, e os guardas os
perseguem, e logo se dá uma guerra de cassetetes contra canivetes amolados.
Escuta-se a sirene da polícia. Chegam os reforços policiais, e os meninos se metem
por entre os carros; alguns são atropelados nas faixas privativas dos ônibus, outros
escapam através do engarrafamento.
Um desses meninos comanda este exército dizimado, todos os dias,
em batalhas que matam crianças precocemente. Impôs-se diante dos outros
graças à sua astúcia e porque parece dispor do talento de mandar e ser
obedecido. Ignora-se se ele se chama João ou Francisco, Jesus ou Belzebu;
sabe-se apenas seu apelido de guerra – Fúria. Um combatente que jamais morre, mesmo quando é alvejado em público, mesmo quando seu sangue se mistura com o asfalto, mesmo quando o levam como indigente para o cemitério. Três dias depois da morte, glorificado nos pântanos por um Espírito protetor que jamais o abandona, retorna do escuro e rebrota nos esgotos que correm a céu aberto.
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