segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Batalhas que matam crianças precocemente

Batalhas que matam crianças precocemente

1.

         Perderam o rumo prematuramente. Amargos e brutalizados. Correm de um lado para o outro nas calçadas. Desnorteados. Sem qualquer pensamento. Talvez igualmente sem sentimentos. Suas palavras possíveis: grunhidos, berros, rugidos. Gritam entre si, como se estivessem brincando de ser criança. Brincadeiras sem candura. Incomodam os passantes amedrontados. Meninos de rua. Deles se costuma dizer que são irrecuperáveis. Espectros do abandono, da desconfiança e do desprezo. Que perambulam pelas sombras como fantasmas encurralados, mendigando e assaltando, matando e morrendo por motivos triviais, dormindo e fazendo sexo, multiplicando-se em exércitos destinados à autodestruição, como se fossem metástases inevitáveis de um terrível infortúnio.   
         Acabo de abrir a janela. O sol costuma bater a manhã toda na parte dianteira do edifício. Mais um dia na semana. Hoje é segunda-feira. São quase onze horas, as calçadas já se encheram de gente, as pessoas entram e saem das lojas, os ônibus se deslocam por suas faixas privativas, os demais carros vão sendo retidos na lentidão do trânsito engarrafado. De longe, eu vejo os meninos perto da lanchonete, seus farrapos, seus canivetes e cacos de vidro, seus desamparos mesclados com ódio. Alvoroçados, berram num dialeto que mal consigo decifrar. Todos vão até a lanchonete, conseguem um pouco de café e pão com manteiga e prometem não incomodar os clientes, que se esquivam deles com movimentos bruscos e receosos; e, em troca do lanche, os meninos garantem que vão bagunçar bem longe. Alimentam-se feito bicho esfomeado. Depois, saciados, se afastam da lanchonete e vão se sentar sobre os papelões e jornais, debaixo da marquise onde costumam dormir. Assim começa efetivamente o dia deles. Que fazer, perguntam-se. Mendigar, assaltar, matar, morrer. Conseguir dinheiro pra comprar droga. Ficar bem doido, injetar adrenalina no cérebro e na alma, tomar coragem para enfrentar seus desatinos. Desonra. Perspectiva zero de felicidade.   

2.

Quem dorme em calçada só pode fazê-lo com muito cuidado, jamais com os olhos plenamente fechados, mas sim entreabertos e vigilantes, atentos como os olhos de um felino. O sentido da audição funciona como um radar permanente, detectando os ruídos estranhos, e tudo isso perturba bastante o sono que costuma ser curto. Sono pouco reparador. O cansaço, muito cansaço, que nunca se esgota. Noite após noite, esse modo de dormir equivale a uma brotação incessante de ódio. Assim dormem esses meninos perdidos e, talvez por esse motivo, é que eles se levantam apoderados por uma indescritível avidez de sangue e morte. E assim acontece a vida inteira, que é tão breve para eles.
Os meninos de rua parecem deliberar entre si e se levantam subitamente. Alvoroço na calçada: misturam-se entre as pessoas temerosas e apressadas, abrem uma trilha na multidão, divertem-se com o medo alheio, correm em pequenos grupos ruidosos, como se fossem tanques de guerra em blitzkrieg. Eles vão geralmente para a porta da igreja, sabendo da vulnerabilidade dos velhos e das beatas bem vestidas, gente que, embora viciada em sacristia e missa, vacila na fé, tem cagaço exagerado. Gente fraca que reza demais e nunca vence o medo insuperável dos demônios. Que não resiste a uma noite sequer debaixo da marquise ou da chuva. Que morre de medo tanto dos perigos reais quanto dos imaginários. Que acha que é tarefa de Deus consertar o mundo desmantelado.
Quando começa a fazer mais calor, no auge da manhã, as pequenas criaturas atravessam a rua defronte à igreja e cruzam a praça até o chafariz. Jogam-se na água fria. Brincam de infância. Alguns até tiram o calção. Ninguém se importa com meninos nus e brincalhões. Eles brincam até se entediarem. E o tédio os reconduz às ruas confusas, onde, com a raiva dos demônios, arrancam cordões de ouro e relógios chiques dos transeuntes, e onde pintam o sete, como se fossem os donos do mundo. Os guardas municipais chegam para restabelecer a ordem. Os meninos irados zombam das autoridades e fogem pelo meio do trânsito, e os guardas os perseguem, e logo se dá uma guerra de cassetetes contra canivetes amolados. Escuta-se a sirene da polícia. Chegam os reforços policiais, e os meninos se metem por entre os carros; alguns são atropelados nas faixas privativas dos ônibus, outros escapam através do engarrafamento.     
            
             Um desses meninos comanda este exército dizimado, todos os dias, 
em batalhas que matam crianças precocemente. Impôs-se diante dos outros 
graças à sua astúcia e porque parece dispor do talento de mandar e ser 
obedecido. Ignora-se se ele se chama João ou Francisco, Jesus ou Belzebu; 
sabe-se apenas seu apelido de guerra – Fúria. Um combatente que jamais morre, mesmo quando é alvejado em público, mesmo quando seu sangue se mistura com o asfalto, mesmo quando o levam como indigente para o cemitério. Três dias depois da morte, glorificado nos pântanos por um Espírito protetor que jamais o abandona, retorna do escuro e rebrota nos esgotos que correm a céu aberto. 
. (Continua...)

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