domingo, 28 de maio de 2017

O homem ao deus-dará I

     Escreveu Primo Levi, em É isto um homem?, sobre sua experiência em Auschwitz. Em toda a sua narrativa sobre a vida e a morte nos campos de extermínio nazistas, o que subjaz em seu dizer e mostrar o horror é a transformação da essência humana em nada. O escritor italiano nos leva àquele lugar em cuja entrada se lia a frase sombria ARBEIT MACHT FREI - o trabalho liberta -, a expressão da linguagem que norteava, de maneira distorcida e perversa, a eliminação dos inimigos do sistema totalitário. Traz-nos à reflexão o Mal e o desamparo do homem sem Deus. Precisamos pensar com Primo Levi sobre nossa condição humana, agora que o ódio também conquistou a primazia em muitos corações brasileiros aturdidos pelos movimentos da política interna. Os ódios de hoje se parecem muito com os ódios de outrora.
     Os habitantes de Auschwitz perdiam sua condição humana sob a racionalidade exterminadora dos nazistas e experimentavam a impossibilidade de vislumbrar, minimamente, o próprio destino; literalmente, encontravam-se no fundo do abismo, atordoados com a incerteza do futuro imediato: se comeriam hoje, se faria sol ou se nevaria, se tudo estava perdido ou se ainda poderia haver salvação. Eram animais atocaiados pelo homem-monstro, o mensageiro da morte, a suástica impiedosa. Não se sentiam mais gente, eram apenas molambos, homens vedados a sonhar com o retorno aos seus lares, às suas famílias, às suas pátrias.
     Ao lembrar-se que já fora um homem livre, Primo Levi assim se descreveu:
     "Aqui estou, então: no fundo do poço. Quando a necessidade aperta, aprende-se em breve a apagar da nossa mente o passado e o futuro. Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos. Aprendi a não deixar que me roubem; aliás, se vejo por aí uma colher, um barbante, um botão dos quais consiga tomar posse sem risco de punição, embolso-os, considero-os meus, de pleno direito. Já apareceram, no peito de meus pés, as torpes chagas que nunca irão sarar. Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; mesmo o meu corpo já não é meu; meu ventre está inchado, meus membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro dias, custamos a reconhecer-nos." (Em É isto um homem?, p.35).
     O homem ao deus-dará.
     O então Papa Bento XVI, em sua viagem apostólica à Polônia, visitou os campos de concentração de Auschwitz e Birkenau, no domingo de 28 de maio de 2006. Naquela ocasião, fez um discurso polêmico. Primeiramente, atribuiu aos dirigentes nazistas a responsabilidade exclusiva por aquela obra do ódio e do Mal, desconsiderando o suporte do povo alemão ao genocídio comandado por Hitler. Em seguida, talvez como manobra de retórica, introduziu Deus em sua argumentação, ao indagar sobre a ausência e o silêncio divinos em face da aniquilação de tantos inocentes sob as garras do nazismo:
     "Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do Mal?"
      Por que Deus nada fez e tudo permitiu?
      Aliás, nós, homens, temos o direito de fazer esta pergunta?
      Que Deus tem a ver com a responsabilidade dos homens pelos seus próprios atos?
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(continuação na próxima semana: O homem ao deus-dará II, Soljenitsin e os gulags soviéticos.

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