sábado, 29 de agosto de 2020

A última criança camponesa tem um amor no coração

      Crianças. Não sei quantas. O avô está sentado na varanda. Cadeira de embalo, o homem fala coisas aos pequenos para encher-lhes a imaginação de luzes fantásticas. O céu profundamente estrelado. A noite é mais escura no campo. Não há prédios, janelas e ruas iluminadas. Apenas um escuro que, paradoxalmente, reluz no céu. Que brilha mais. Que clareia mais. Que invade a alma das crianças.

     Crianças camponesas. Meninos e meninas. Todos acostumados aos pernilongos e bem atentos ao coaxar das rãs que moram nos alagados. Andam descalços e, vez por outra, precisam arrancar de entre os dedos as larvas que fazem coçar demais – bichos de pé não lhes metem medo. Movimentam-se o dia inteiro pelas plantações. Entram no curral e metem os pés na bosta de vaca. Bebem leite fresquinho quando o dia ainda não despontou. Correm quando surpreendidas por abelhas furiosas. Livram-se dos carrapatos, tomam banho de rio, trocam de roupa, comem arroz e feijão, aipim e torresmo, sossegam para escutar as fábulas do avô. E também da avó quando esta chega trazendo um pouco de café e se senta na varanda da casa.

     Lâmpadas incandescentes, fraquinhas, foscas, alimentadas por um gerador. De repente, a escuridão total, alguma coisa aconteceu na casa do dínamo. O avô cessa de contar estórias de fantasmas e diz às crianças que resolvam o problema. Elas sabem o que fazer. Basta corrigir o curso de água e fazê-lo correr na direção certa. Rio desobediente: no meio da noite, resolve fluir pelo meio das pedras, mudar o rumo da correnteza. Que rio nada, apenas um córrego bravo que vem lá do alto da montanha. As crianças então se assustam. “Mas, vovô, tá tudo escuro!”. E o avô se abre numa gargalhada com o medo que as crianças sentem dos fantasmas à espreita nas trilhas. “Vão andando! Vão andando!”. E as crianças driblam o terror e inventam travessuras para enganar as almas penadas. Sapecas, atravessam a escuridão, endireitam o rego feito de pedaços de telhas e pedras. Subitamente, a luz reaparece nas lâmpadas embaciadas, o gerador voltou a funcionar. As crianças retornam quase correndo e dão o pronto para o avô. A avó lhes dá café e um pouco de mingau.

     Assim era. Até que, por causa de outro tipo de rio desobediente, tudo foi se apagando. O vovô foi embora, a vovó foi embora, todos os mais velhos foram embora. Levados para repousar no cemitério do povoado. Apagaram-se e não foi possível às crianças sapecas reverter a escuridão. Neste caso, o rio deixara de correr dentro da casa do dínamo.

     Até as crianças foram embora também. Ficaram adultas. Quando a fazenda começou a ficar em ruínas e se precisou construir a vida noutro lugar, todos migraram para a cidade. Exilaram-se no mundo de concreto. E as crianças camponesas, precisando acompanhar os pais, se tornaram urbanas quase arbitrariamente. Muitas, então, deixaram de gostar do campo depois que conheceram o conforto da cidade. Outras, todavia, ainda voltam lá até hoje, mesmo que doa olhar e sentir a decadência. A estranheza: tudo diferente. O povoado cresceu e foi tomando conta de tudo. Ninguém mais quer ser camponês. Até as revoluções românticas por reforma agrária se transferiram para os grandes centros urbanos, para suas passeatas, para suas ruas tumultuadas.

     Não sei aonde as crianças foram. As cidades as engoliram.

     Mas sei que uma delas ainda se lembra da casa do dínamo. Ela jamais abandonou sua gênese. Vive na cidade, mas gosta de voltar às cachoeiras, às serras, às trilhas poeirentas no verão, às veredas transformadas em lamaçais sob as chuvas impetuosas. Abre suas janelas quando vem a noite e suas estrelas; escuta os sinos da catedral e se transporta para o outrora que sobrevive em seu espírito.


LEAL, Humberto B. A última criança camponesa tem um amor no coração. In: _______. Águas mornas. São Paulo: Novo Século, 2016, p.13-14

sábado, 22 de agosto de 2020

O EXILADO

     O Estado exila seus oponentes quando distorce a divergência política, tornando-a crime institucional, e transforma o divergente em inimigo interno. E os manda para longe, onde os sabiás gorjeiam roucamente em suas palmeiras, tão diferentemente dos cantos melodiosos dos pássaros da Pátria deixada para trás. Lá, para além dos horizontes, noutros lugares em que serão estrangeiros saudosos da terra natal, os exilados protestam contra seus governos autoritários e sonham em retornar. 

     Há outro tipo de exilado. O que escolhe se autoexilar, por conta própria e por antecipação, às vezes até para adquirir visibilidade política, quando se sente incompatibilizado com um governo específico que chega ao poder. É um exílio com gosto de viagem de turismo, nem por isso menos sofrido quando verdadeira a incompatibilidade com os governantes de turno, porém hipócrita quando a motivação da ausência permanece implícita, encoberta, dissimulada. 

     Talvez o tipo mais doloroso de exílio seja o da estranheza em relação à vida e ao mundo. Porque não adianta correr para cá e para lá quando se perde a condição de ser-no-mundo e já não se vislumbra o sentido da existência. Não há mais mundo e não há mais porquês. Tudo é um niilismo insuperável. Faça sol ou faça chuva, o que perdura no espírito é a sensação dolorosa de vazio existencial. Dói tanto que é preciso chorar para se tornar essa dor possível de ser absorvida. Hora terrível essa em que o desalento se apropria de tudo que é nosso. Somem de vista as linhas de fuga, as vias de escape, os lugares clareados pelo Sol, a terra fertilizada pelas chuvas. Resta-nos somente a aspereza. Este é o exílio experimentado nos labirintos das perdas, dos lutos, da melancolia, do absurdo.

     A Vida chama de volta o exilado: vem para cá; abandona os vales da morte; espia o mundo do alto das montanhas; retorna à fonte originária dos seus rios, no fundo da grota, dentro da floresta; foge dessas cidades hostis; vem, Exilado, vem para a Pátria reencontrar os sabiás e os pintassilgos, novamente andar por ruas familiares e escutar palavras inteligíveis; vem, Exilado, trazendo toda a sua humanidade, para, enfim, descobrir o que há por trás do absurdo, do sem sentido das coisas, da densidade da melancolia, do pensamento obscuro. A Vida chama: vem ao meu encontro, Exilado!

     O Exilado se entrega ao apelo da Vida. Já não tenta decifrar enigmas. Desiste das suas utopias: sabe ele, o Exilado, que, enquanto homem, nada mais é do que um pássaro de passagem pelo mundo, e o que lhe importa essencialmente é sua ação de voar, nada mais que isso. 

     O Exilado voa no seu retorno à Pátria. Uma águia pensante é o homem. Mortal, precário, finito, voa e contempla a ampulheta. Transcende nesse tempo que se dilui nos dias clareados ou chuvosos. Em certo instante, toda a transcendência se dissipa, e o Exilado, agora como reminiscência, se mantém vivo na substância da memória dos amigos, dos vizinhos, dos amores. O enigma de viver se desvela em todo o seu Mistério: toda a inquietação da vida era simplesmente a saudade de uma gênese que a gente não sabe bem o que é e nunca vai saber. 

     Cessou o fluxo de areia na ampulheta. Tudo silenciou. Eis o reencontro com a Pátria. Agora tudo faz sentido.