sábado, 10 de setembro de 2016

Dona Maria da Guia

    Tive um anjo da guarda que vivia no Irajá. Agora está noutras esferas. Não sei bem onde. Mas se fincou em minhas lembranças. Entrou e se apossou de uma parte da memória do poeta. Nunca mais foi embora. Afinal, como poderiam se desvanecer em mim sua meiguice, seu companheirismo, sua amizade?
     Ela se chamava Maria da Guia. Noutros tempos foi uma benzedeira das crianças pobres do Irajá. E teve com Paulo, o maior amor de sua vida, vários filhos. E ficou ao lado dele até o fim, quando ele já não reconhecia quase ninguém. Gostava de falar dessa época de muita dificuldade, preferindo, no entanto, ressaltar as alegrias insuperáveis e inesquecíveis daquela existência humilde. Havia glamour na pobreza. Lembrava-se da Páscoa em sua casa. Ela mesma preparava os ovos de Páscoa, improvisando elementos de sua cozinha. A filharada se reunia na mesa toda feliz.  
     Dona Maria da Guia vinha sempre a Petrópolis. Eu a conheci em 2006, ano em que perdi o meu vizinho de porta, o primeiro amigo feito ao chegar ao edifício onde vivo. Fui eu quem lhe passou a notícia da morte do Carlos, seu genro. Eu era apenas o vizinho de porta. Mal sabia que, naquela noite de abril, eu ganharia uma espécie de mãe adotiva e anjo da guarda. Começamos assim a amizade; fizemos de uma perda doída o começo de um caminho de muitas luzes, muitas conversas, muitos risos.
    Há duas fotografias, entre os livros, no meu escritório. Costumo dormir tarde. Fico lendo, escrevendo, pensando. Às vezes, quando chega a madrugada, dá uma angústia enorme dentro de mim. Será que está faltando Deus no meu coração para doer tanto assim? Então, quando acontece de ficar triste, volto o meu olhar para os retratos. Ela está sorrindo. E parece me animar, para que eu me contente com os ruídos da madrugada, um carro que passa de vez em quando, os latidos dos cachorros inquietos, o zunido dos ventos que anunciam a chegada de uma frente fria. E assim aquieto meu espírito. 
     Numa das fotografias, estamos nós dois em minha sala de estar; os dois sorrindo; quase dez anos atrás; no outro retrato, mais recente, em seu apartamento no Irajá, novamente estamos juntos; seria o seu antepenúltimo aniversário; no último mês de fevereiro, quando ela fez noventa e dois anos, não tiramos fotos, mas prometemos um ao outro comemorar no ano próximo. Não deu tempo. Agora ela é, como uma santa redentora, a força intensa dessas fotografias. Irradia muitos sonhos para mim. Eu me acalmo e me preparo para dormir.
     É quase domingo de madrugada em Petrópolis. Hoje passei um longo tempo "em conversa" com Nietzsche e Heidegger. A filosofia é também um grande poema. Gosto dos seus versos. Há livros espalhados por toda parte. Dona Maria da Guia sorri nos retratos e parece me dizer que já é tempo de voltar a rir. 
     De minha janela vejo as luzes opacas dos morros à frente. Faz um silêncio imenso. Não dói dentro de mim. Contemplo as fotos do meu anjo da guarda. O sorriso pleno. A mulher bonita com seus brincos e os cabelos tão formosos, tão branquinhos que pareciam feitos de nuvens. E vem até mim a sensação de que ela me diz: "Chegou o tempo de seguir em frente!". 
     Ela se foi no último domingo de maio deste ano. Minha agenda está aberta; duas anotações: a primeira, em 27 de fevereiro: "Aniversário de dona Maria da Guia. Descer a serra. Festa no Irajá"; a segunda, 29 de maio: "Minha amiga foi embora". E ainda vejo a última nota de maio, um rabisco quase indecifrável: "segunda-feira, 30 de maio, às 16 horas, velório e enterro". Nosso último encontro. Nem o seu rosto de morta fez desaparecer sua beleza. Nunca vou me esquecer daquela tarde nublada e calorenta no Irajá. Nunca mais voltei lá. 
     Todo o tempo do depois foi de luto e melancolia. Agora ela é suavidade em minha memória. Transfigurou-se em poesia. "Chegou a hora de seguir em frente!", parece me dizer. O transitório ganhou a força do infinito. Sou capaz de suportar a fugacidade de todas as coisas. Posso lembrar sem doer. Sorrio levemente. Fecho meus olhos num pensamento que bem pode ser uma prece. Brindo por ela como eu gosto de brindar: com vinho e palavras. A vida se firma como uma canção suave. Evoé! Amém! Claridade, muita claridade.