Prólogo
Por que escrever
Tomé Mayruna?
Fiz
do meu particular universo mítico um poético e abstrato refúgio chamado Literatura. Nessa espécie de lugar
sagrado, convergem para um ponto impreciso de mim sonhos e memórias, que
somente subsistem graças à arte das palavras -
uns poucos substantivos, alguns sóbrios adjetivos e dois verbos prediletos, desejar e lembrar, que eu conjugo como quem decifra a metáfora do tempo e a
substância da vida: nunca estou em lugar algum, vivo no fluxo apressado dos
acontecimentos.
Dependo de reminiscências ou da
imaginação para viver. Em outras palavras, só enxergo manhãs clareadas quando
já vi e memorizei o sol. Escrevo textos aturdidos e urgentes, imitações do
canto das cigarras de minha rua, que cantam com frenesi porque pressentem a
perturbadora transitoriedade das coisas -
cantam para a vida e secam para a morte. Todos somos simulacros de cigarras,
chegamos e vamos embora na vertigem do tempo, aparecemos com o sol e sumimos na
escuridão, brotamos na saudade alheia e murchamos no esquecimento do mundo.
Existir e perecer formam a mesma metáfora das horas perdidas e dos milagres ansiados.
Algumas vezes, risco traços alegres ou
não às variadas lembranças de minha existência e construo memórias fingidas
dentro de memórias verídicas -
mergulho, por assim dizer, em um labirinto de reminiscências superpostas. Esse
é um privilégio dos poetas e dos loucos, dispor do atributo de lembrar o fato
que existiu e o fato ainda por inventar -
afinal, toda literatura tem um resíduo indelével da loucura criativa e da
fecunda fragilidade humana. Escrever Tomé
Mayruna resulta desse incompreensível fato: se não o escrevo, me transformo
em cigarra com morte anunciada. Trata-se
de uma tentativa de testemunho romanceado de muitos dramas individuais e
coletivos que presenciei e/ou vivi na Amazônia brasileira. Perdoem-me por meus
exageros, por algumas inverossimilhanças e pela tendência de enxergar o
sobrenatural onde só há coisas simplesmente humanas.
Humberto B. Leal
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PARTE I
A MEMÓRIA
(Os
pensamentos e as falas derradeiras de Tomé Mayruna, na iminência da morte,
conforme este romancista as captou e as reproduziu numa possível transliteração
do indizível em palavras, sem chegar ao fundo de sua crueza inimaginável –
traslado meramente literário daquilo que não se pode, com facilidade, traduzir
em narrativa.)
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Capítulo
1
Madrugada. Tomé Mayruna, sozinho numa cela fétida da
delegacia de Marupiara, uma remota vila na Amazônia brasileira, olha o céu e o
casario através das grades. A solidão e a iminência da morte fazem-no pensar e
lembrar.
“Daqui a pouco vai
amanhecer. Sou testemunha solitária de tudo que acontece nesta hora que
antecede o clarear do dia de meu santo guerreiro, São Jorge destemido, que
matou muitos dragões e, dizem, vive mesmo na Lua Cheia. Segundo os índios
mapanas, esse santo católico, a quem eles conhecem como Sawara Suçuarana, até
hoje continua vivendo nos terreiros das malocas e nos oratórios das casas das
benzedeiras. Apesar da minha fé nesse santo de guerra, sei que ele não vai
aparecer, derrubando tudo com seu cavalo, dizimando os meus inimigos. O meu
santo predileto está longe, brigando em outra parte desse céu grande de Deus, e
é por isso que me sinto completamente abandonado. Nem os santos da igreja, nem
os deuses da mata, nem os amigos do mundo, ninguém pode fazer nada por mim.
Estou vendo o relógio de parede da
delegacia, o guarda Silvério dormindo, uma luzinha de sol querendo aparecer
entre nuvens escuras. Há tanto silêncio em Marupiara, uma espécie de sossego
misterioso, um silêncio avassalador de Deus, que me assusto quando um galo
canta, em algum quintal, um canto de presságio ruim. Nem os bichos experimentam
paz nesta madrugada.
Está mesmo amanhecendo e hoje vai ser um
dia para ninguém esquecer, porque está marcada a morte de um homem na forca e
faz mais de cem anos que aconteceu de
alguém morrer assim em Marupiara. Esse acontecimento estremeceu a vila: entre
gente eufórica e gente pesarosa, houve quem chegou a encomendar terno de linho,
vestido de seda, perfume estrangeiro, roupa de luto e velas roxas, para ver
suspenso, no ar da manhã, aquele a quem todos acusam de ser o Mapinguari, o
maldito que come carne humana, este humilde servo de Deus que vos fala.
É assim, pertinho de clarear, que me
desamparo com premonições e temores. O sol está para nascer sobre a mata, sobre
a vila e sobre este rio de águas escuras que dá de beber ao povo, o rio Mutum.
Os galos de Marupiara, pressentindo o que está para acontecer, se alvoroçam nos
quintais, enquanto as mulheres se levantam, praguejando, para requentar o café.
As crianças pulam da rede e procuram no guarda-roupa o traje de festa. Os
homens, vestindo paletó de linho branco, preparam as garrafas de champanhe
distribuídas ao povo por Virgílio Maroaga. O pastor Genevaldo, inimigo
declarado do padre, juntou todos os pentecostais da vila e também se prepara
para discursar. O padre João Pedro, me disse o delegado Mendes, virá para me
confessar, um Santo Sacramento que dispenso sem o mínimo de arrependimento,
porque estou desapontado com todos os santos.
Talvez venham as mapanas, guiadas por
Mayruna e pelo menino peludo chamado Catrimani Lobisomem. Talvez cantem aquela
cantiga agoniada dos funerais da tribo. Talvez me auxiliem com encantamentos
que desfaçam este imenso pesadelo em que me encontro.
Com o sol da manhã, vai chegar o
delegado Mendes, primando pela pontualidade, andando igual tartaruga devido à
barriga avantajada, os olhos faiscando de ruindade, trajando a roupa
domingueira, o crucifixo de ouro saindo da camisa. O gordo desgraçado talvez me
olhe e me diga: ‘Tomé Mayruna, amaldiçoado Mapinguari, que cometeu o crime de
raptar moça de família e pegar em armas contra gente de bem, chegou a tua
hora!’
Ah, meu Deus do céu, me console: estou
com medo de morrer, e isto digo porque sinto dor de barriga, vontade de
defecar, um enorme pavor. Mas defecar o quê se faz quase três dias que estou em
jejum, recusando a comida malcheirosa que o delegado Mendes manda me servir?
Isso é pressentimento de morte. Sinto
aperreio só de pensar que, daqui a pouco, vou ser enforcado. E eu nem sei o que
vão fazer comigo depois de morto, porque ouvi Silvério cochichando que o
delegado quer retalhar tudo, salgar e mandar jogar nas encruzilhadas, como um
favor prestado a Virgílio Maroaga.
É a morte se anunciando. Como dizia o
meu pai, Ticá, quando a gente tem um pesadelo de que está morrendo, é porque
vai morrer mesmo, e é preciso se acostumar depressa com a fatalidade.
Mesmo tremendo todo, afirmo que nunca
fui homem de sentir medo e fraquejar. Enfrentei e venci todos os perigos:
atocaiei os meus inimigos onde e quando menos esperavam; peguei onça-pintada na
ponta do terçado; me criei na mata e nas montanhas caçando, pescando e subindo
em árvore; aprendi a urrar igual aos macacos guaribas, esse urro amedrontador
que vem do fundo da floresta como fúria que vibra; e, finalmente, afrontei Virgílio
Maroaga, o homem mais rico de todas estas terras que meus olhos conseguem
enxergar, unicamente por um amor de perdição pela filha dele, Letícia, moça
corajosa que abandonou uma vida de bem-aventuranças e comigo fugiu contrariando
a vontade do pai.
Daqui a pouco vou me encontrar com
Letícia em alguma vereda do céu ou da terra. Enquanto isso, nesta circunstância
aflitiva, fico me lembrando daqueles dias em que atravessamos a floresta,
perseguidos por homens e cachorros sanguinários, sonhando com uma casinha na
beira do rio e uma porção de filhos. Essa moça, dona dos meus mais sublimes
sentimentos, eu a vi morrer de uma doença misteriosa sem nome.
Eu me lembro bem daquela tarde na mata.
Letícia reclamava de umas dores no estômago, delirava de febre. Me sentei com
ela na beira do igarapé, rezando, atribulado. Meus olhos se enchem de lágrimas
só de me lembrar. Eu rezava com extremo fervor, mas a reza era absorvida pela
floresta e não cruzava o topo das árvores, não buscava o céu. Ah, que
desespero: não muito longe, vinham os pistoleiros e os cachorros em nosso
encalço. O tempo de fugir diminuía, estávamos acuados. E tudo piorou quando
caiu a tempestade, enchendo a selva de brumas e melancolia. Letícia, com os
olhos opacos, bem abraçada comigo, foi ficando molinha, desfalecendo devagar,
sem mais me reconhecer. Eu lhe disse: ‘Sou eu, Tomé. Está me escutando? Diga
que está me ouvindo’. Nada me respondeu. Imersos na cerração, ficamos entregues
à vontade absoluta de Deus, à inconstância do destino, ao acaso das coisas.
Depressa escureceu e depressa perdi, definitivamente, minha maior claridade da
vida: foi-se Letícia, tão amolecida nos meus braços, mais parecendo estar
dormindo. Olhei para cima, vi um pedacinho de céu da noite precoce através da
mata, rezei fervorosamente, mas faltou Deus aparecer. Chorei lastimosamente:
‘Letícia, meu bem, aonde você foi? Tão apressada, nem me esperou. Que vazio vai
deixar dentro de mim’.
Quando estava para amanhecer, tive
pensamentos ruins de morte. Ficar ali para sempre, ir ao encontro do meu amor.
Mas, por cima das águas do igarapé, na cerração da manhã por nascer, o vulto de
Letícia surgiu, subitamente, me sorrindo e me convencendo a viver. Aturdido,
meio dormindo, meio acordado, gritei o nome dela. A aparição se desfez e me
deixou amortecido, quase sem força para me levantar. Abri os olhos de vez,
criei coragem e me levantei para enterrá-la. Meti o terçado na terra fofa e
cavei. Falando deveras: chorei, em cima daquele túmulo improvisado, todas as
lágrimas que um homem pode chorar quando perde a mulher do coração.”
=============== Continuação..............................................
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