quinta-feira, 30 de julho de 2015

O menino ribeirinho do Amazonas

     O menino descia da canoa, exausto de remar, os pés dentro d’água,
sem se preocupar com os detritos ao redor. Ele se misturava com homens e
mulheres que gritavam a valer no Mercado de Manaus. Disputava com outros
meninos de rua o direito de viver e vender mentiras aos forasteiros que
chegavam, inventando-lhes histórias em um dialeto mesclado de palavras
em português, inglês e linguajar indígena. Eu vi esse menino numa manhã
de mormaço, os olhos amendoados, o corpo magrinho, os pés descalços, a
roupa humilde. Dele lembro suas fabulosas alegorias do amor, seus blefes de
criança, seu costume de falar por monossílabos para disfarçar as tristezas
herdadas dos antepassados.
     Usava uma camisa aberta para o sol, andava descalço, pensava na
liberdade sem se dar conta de que ninguém era mais livre do que ele
vivendo na rua, sem preocupação com relógios, o ontem, o hoje, o amanhã.
Queria ser herói de histórias em quadrinhos, passar por todos
os perigos e conquistar uma mulher prodigiosa. Entre acordar e dormir,
andava por becos, subia e descia ladeiras, queria coisas difíceis, tudo o que
lhe fazia falta, o bom amor, a boa roupa, a boa comida, o bom sonho, o bom
viver e o bom morrer. Viver assim era viver um grande poema de poucas
rimas mas muitos adjetivos.
     Passou o tempo. Dizem que o menino cresceu, foi para longe,
conheceu muitos lugares, muita gente. Mas, passados tantos anos, não
conseguiu se livrar de sua própria história, nem perdeu sua fisionomia vaga,
nem deixou de pretender ser um herói, nem abandonou os sonhos de viver
com mulheres prodigiosas.
     Falar dele me faz lembrar o rio Negro, as terras muitas vezes
devastadas por enchentes periódicas, o terror dos ribeirinhos ante os
temporais. Esse menino costumava apanhar a canoa e ir para o meio do rio
enfrentar as tempestades. Gritava para os céus, e ninguém sabia se eram
gritos insolentes ou súplicas desesperadas. Qualquer que fosse a natureza
daquela gritaria, o fato é que tudo se acalmava e ele retornava para casa.
     Afirmavam os mais cultos do lugar, os que pelo menos tinham
aprendido o abecedário, que aquele menino insolente e romântico, meio
sobrenatural por ser filho de uma vidente, era um poeta, um lunático com a
pretensão de querer tocar o Sol com as mãos. Esses eram os rumores sobre
o menino.
     Desconheço o paradeiro desse menino sonhador e com jeito precoce de
homem. Não sei o que a vida fez dele. Sei apenas que, numa certa manhã
de verão, seguiu uma procissão de soldados que passaram por sua vila
vacinando os nativos contra febre amarela. Alguns supõem hoje que, se
fosse possível misturar substâncias imisturáveis, como as essências
antagônicas do poeta e do soldado, ele teria entrado num quartel para
cumprir o sonho de ser herói numa guerra qualquer. Talvez estivesse hoje
atirando de fuzil, marchando na avenida, cruzando pântanos, decepando
inimigos.
     Ignoro se ele está vivo ou não. Se vivo estiver, talvez ainda olhe as
pessoas com seu jeito acanhado de gente tímida, com sua fisionomia
sobressaltada de criança indefesa, ou então com seus olhos insolentes de enfrentar
tempestades. Pode ser que continue andando pelas ruas com a camisa
aberta pro sol e tenha encontrado, num desses acasos da vida, a mulher
prodigiosa com quem sonhou desde que era um simples menino. Se isso
tiver acontecido, terá finalmente tocado o Sol com as mãos de artífice das
palavras e se livrado de seus mais remotos medos, que nada mais eram do
que presságios irreais.
     Esse menino ainda pega a canoa, nos dias de tempestade, e vai gritar
no meio do rio. Esse menino ribeirinho, esse menino poeta sobreviveu nos
meus espelhos.

domingo, 26 de julho de 2015

Ícaro

Parte I

     Aqui no edifício, tem uma janela discreta. Da rua, até alguns dias
atrás, via-se a luz tênue da lâmpada acesa o tempo inteiro. E, às vezes, no
parapeito, um homem com o olhar perdido, quase uma esfinge. Sol ou
chuva, o homem solitário se fixava no horizonte. Esperando o quê?
     Homem misterioso. De vez em quando, vestia umas roupas escuras e
saía carregando mochila. Cheirava a pólvora. Homem de guerra.
Semana passada, os jornais noticiaram um atentado a bomba num
cinema. No mesmo dia, o homem misterioso se suicidou. Vou contar como
foi.
     Ele imitou os pássaros, voando para a morte no vento do meio-dia.
Calor e tráfego insuportáveis. Acontecimento inesperado. Havia gente e carro
em demasia na rua. De repente, aquele corpo vindo lá de cima. Ele flutuou
primeiro, depois rodopiou de braços abertos, como um helicóptero
desgovernado. Ele quis e não conseguiu suprimir a lei da gravidade. Um
tremendo baque na calçada. Nem houve grito, só aquele espatifar-se rouco.
     Meio-dia, precisamente meio-dia, a hora em que Ícaro se despedaçou.
Veio o rabecão e o levou para o Instituto Médico Legal. O cadáver ficou
em vão à espera de algum parente. Os bombeiros e os vizinhos invadiram o
apartamento dele e encontraram uma carta.
     Ícaro era terrorista. Confesso.

Parte II

     O remorso. O suicídio. Ícaro escreveu que fora ao cinema. Que tinha
andado pelas ruas, seguindo um casal de namorados. A mulher mais linda da
cidade. Acompanhada de outro. Por quê? Por que outro e não ele? Seguiuos,
entrando no cinema. Lá dentro, os namorados se encontraram com
amigos. Tanta gente bonita, tanta gente alegre. Exceto ele, sozinho e triste
como sempre. Terrivelmente só e triste. Mundo injusto.
     Acomodou-se numa poltrona bem à retaguarda. Distraiu-se com as
primeiras imagens na tela. Depois se concentrou nas pessoas. O olhar se
fixou no casal de namorados, na mulher mais linda da cidade. Por que o
outro e não ele?
     A cabeça dele doía. Ele carregava aquela mochila, todo mundo pensava
que ele transportava livros, uma enorme biblioteca. Não, ele carregava outra
coisa. Mais mortífera. Dia mais, dia menos, faria os outros sentirem o gosto
do inferno. Apalpou as bananas de dinamite.
     Os namorados se beijavam, pouco interessados no filme. Ele se irritou.
Demasiada felicidade alheia para ele suportar. Subitamente, fechou os olhos
e sonhou intensamente com aquele beijo. E tão repentinamente quanto,
despertou desse sonho inútil, reabrindo os olhos com uma expressão insana.
O beijo de boca dos namorados fez eclodir nele muita ira.
    Ícaro acendeu o estopim ligado à dinamite e pôs a mochila debaixo da
cadeira da frente. Levantou-se e foi embora. Andando com pressa, contou
mentalmente os quarenta e cinco segundos que levaria para detonar o
explosivo. Saiu do cinema quase correndo.
     Lá fora ouviu o estrondo. Pegou um táxi e fugiu. Deixou para trás o
cinema destruído, a mulher mais linda da cidade, a lembrança daquele beijo
atordoador, o seu próprio inferno.

Parte III

     Mas se enganara. O inferno viera junto com ele. E, ao ler o jornal com
a notícia da bomba no cinema, sentiu que absorvera os infernos de todos os
que haviam sido destroçados pelas bananas de dinamite. Insônia. Perdição.
Visões fantasmagóricas. A pior delas: os namorados continuavam a se beijar
e, mesmo morta, aquela mulher mais linda da cidade continuava a pertencer
a outro homem. Inveja irremissível. Ícaro pirou na batatinha.
     O que se seguiu foi o voo desgovernado de Ícaro. Ao meio-dia,
precisamente ao meio-dia, se espatifou na calçada o terrorista que explodira
um cinema por não ter suportado a intensidade de um beijo de amor. O beijo
que ele tanto quis e nunca teve.

domingo, 19 de julho de 2015

A última criança camponesa tem um amor no coração

   Crianças. Não sei quantas. O avô está sentado na varanda. Cadeira de embalo, o homem fala coisas aos pequenos para encher-lhes a imaginação de luzes fantásticas. O céu profundamente estrelado. A noite é mais escura no campo. Não há prédios, janelas e ruas iluminadas. Apenas um escuro que, paradoxalmente, reluz no céu. Que brilha mais. Que clareia mais. Que invade a alma das crianças.
   Crianças camponesas. Meninos e meninas. Todos acostumados aos pernilongos e bem atentos ao coaxar das rãs que moram nos alagados. Andam descalços e, vez por outra, precisam arrancar de entre os dedos as larvas que fazem coçar demais - bichos de pé não lhes metem medo. Movimentam-se o dia inteiro pelas plantações. Entram no curral e metem os pés na bosta de vaca. Bebem leite fresquinho quando o dia ainda não despontou. Correm quando surpreendidas por abelhas enfurecidas. Livram-se dos carrapatos, tomam banho de rio, trocam de roupa, comem arroz e feijão, aipim e torresmo, sossegam para escutar as fábulas do avô. E também da avó quando esta chega trazendo um pouco de café e se senta na varanda da casa.
   Lâmpadas incandescentes, fraquinhas, foscas, alimentadas por um gerador. De repente, a escuridão total, alguma coisa aconteceu na casa do dínamo. O avô para de contar estórias de fantasmas e diz às crianças que resolvam o problema. Elas sabem o que fazer. Basta corrigir o curso de água e fazê-lo correr na direção certa. Rio desobediente: no meio da noite, resolve fluir pelo meio das pedras, mudar o rumo da correnteza. Que rio nada, apenas um córrego bravo que vem lá do alto da montanha. As crianças então se assustam. "Mas, vô, tá tudo escuro!". E o avô se abre numa gargalhada com o medo que as crianças sentem dos fantasmas à espreita nas trilhas. "Vão andando! Vão andando!". E as crianças driblam o terror e inventam travessuras para enganar as almas penadas. Sapecas, atravessam a escuridão, endireitam o rego feito de pedaços de telhas e pedras. Subitamente, a luz outra vez nas lâmpadas embaciadas, o gerador voltou a funcionar. As crianças retornam quase correndo e dão o pronto pro avô. A avó lhes dá café e um pouco de mingau.
   Assim era. Até que, por causa de outro tipo de rio desobediente, tudo foi se apagando. O vovô foi embora, a vovó foi embora, todos os mais velhos foram embora. Levados para repousar no cemitério do povoado. Apagaram-se e não foi possível às crianças sapecas reverter a escuridão. Neste caso, o rio deixara de correr dentro da casa do dínamo.
   Até as crianças foram embora também. Ficaram adultas. Quando a fazenda começou a ficar em ruínas e se precisou construir a vida noutro lugar, todos migraram para a cidade. Exilaram-se no mundo de concreto. E as crianças camponesas, precisando acompanhar os pais, se tornaram urbanas quase arbitrariamente. Muitas, então, deixaram de gostar do campo depois que conheceram o conforto da cidade. Outras, todavia, ainda voltam lá até hoje, mesmo que doa olhar e sentir a decadência. A estranheza: tudo diferente. O povoado cresceu e foi tomando conta de tudo. Ninguém mais quer ser camponês. Até as revoluções românticas se transferiram para os grandes centros urbanos, para suas passeatas, para suas ruas tumultuadas.
    Não sei aonde as crianças foram. As cidades as engoliram.
    Mas sei que uma delas ainda se lembra da casa do dínamo. Ela jamais abandonou sua gênese. Vive na cidade, mas gosta de voltar às cachoeiras, às serras, às trilhas poeirentas no verão, às veredas transformadas em lamaçais quando chegam as chuvas torrenciais. Abre suas janelas quando vem a noite e suas estrelas; escuta os sinos da catedral e se transporta para o outrora que sobrevive em seu espírito.
    A última criança camponesa tem um amor no coração - o sentimento pelo lugar em que tudo principiou, o seu onde de brotação.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Dia Santo - 1ª parte - Gênese - Capítulo 1...

Capítulo 1

     Nasci e vivi muito tempo na Amazônia. Criança de brincar nos
beiradões dos rios lamacentos, de carregar as bacias de roupa de minha
avó que labutava sobre balsas de sapopemba, de me esconder do meu
pai me chamando para beber purgantes contra todo tipo de verme e
cujo gosto intragável fui incapaz de esquecer. Aprendi a nadar nos
igarapés, vivi em cortiços em minha primeira infância, ouvi muitas
histórias de visagens e presumo ter visto fantasmas confabulando na
solidão das calçadas. Eu e uma porção de crianças costumávamos
passar as manhãs, enegrecidos pelo sol amazônico, a ver as
embarcações passando ao largo, no rio Negro, sem preocupação com a
vida ou a morte.
     Lembro-me desse tempo com certa tristeza. Deparo sempre com
um menino magro à beira do rio, um espectro que insiste em cruzar os
séculos na espera de um milagre. Ele tem uma lágrima
permanentemente no rosto. Tem ainda a minha cara e, quando fala, usa
também minha voz. Esse menino de olhar opaco vive no arco-íris por
onde caminho para reencontrar os meus ancestrais.
     Vivi em remotos lugares onde se delineiam as nossas fronteiras
setentrionais, comendo a poeira do seu verão quase eterno ou cheirando
a umidade dos ventos quando vinham as chuvas do outro lado do rio.
Fui uma criança indefesa e tímida, o próprio desamparo, a figura
patética do menino ribeirinho chupando os dedos na beira do rio, a
barriga graúda dos vermes, magricela da própria natureza humana,
amedrontado diante dos estranhos. Apesar disso, é desse tempo na
Amazônia que me vem a lembrança de liberdade, aquela vida de andar
nu, vendo o sol nascer, tomando banho de chuva, dormindo com os
pássaros.
     Cresci na Amazônia e vi as suas cidades crescerem, as pessoas
vindas de todas as partes chegarem, as florestas se encolherem sobre si
próprias, até o seu provincianismo permutar-se por novos hábitos e
adquirir todas as semelhanças do mundo além dos rios e da mata. Ainda
hoje, muitos meninos amazônidas correm do purgante do pai e amam a
procissão dos barcos carregando esperanças rio acima, rio abaixo. Pois
lá, na imensidão do remoto, onde não é possível valer-se de mapas e
onde tudo parece inexequível, encontra-se a mística vila chamada
Maciriguei, cuja gente louva o Deus cristão e as divindades da floresta.
Nenhum rosto é desconhecido entre os habitantes nem existem histórias
alheias secretas. A história de Maciriguei parece uma fábula. Um dia
jurei a mim mesmo que escreveria um livro sobre esse lugar, sua gente,
seus amores, seus crimes, sua grandeza e sua miséria. Hoje cumpro a
palavra empenhada.

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quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ana Agar - prólogo

Prólogo
           
Ao escrever as primeiras palavras deste romance, pensei parodiar Machado de Assis, em seu fenomenal Memórias Póstumas de Brás Cubas. Menos difícil seria esta autopsicografia, eu diria simplesmente: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. Mas desisti das fórmulas de plágio e dos contatos sobrenaturais e, deste modo, me aventuro mais uma vez na inaudita experiência de escrever por minha própria conta. Antes de tudo, entretanto, quero dedicar estas memórias a Ana Agar, heroína dos desertos, feiticeira das encruzilhadas, santa dos primórdios, que me deu, numa noite de outono medieval, a honra de uma dança ao som de harpa e um amor sem fim. Ainda hoje, cumprindo a palavra empenhada, nós dois preservamos o pacto contra o esquecimento e conservamos, intacta em nossas lembranças, uma aquarela onde se veem dois amantes clareados pela Lua e animados pela paixão.
            Neste lugar onde não há tempo e tudo é eterno, me foi dado o direito de viver numa modesta casa situada sobre um morro de vegetação rala, desde que deixei de existir entre os homens. Daqui diviso uma estrada de pedregulhos que conduz invariavelmente ao Norte e ao Sul. Ao Norte, pode-se avistar no horizonte o contorno das cidades humanas, de onde me vêm os rumores de intensas, efêmeras e irremediáveis paixões. Lá eu já estive, embora não lembre quando. Ao Sul, região de clima frio e pouca claridade, todos os caminhos terminam inevitavelmente num rio de águas muito geladas, em cujas margens geralmente o terrível Cérbero, guardião do reino de Hades, monta guarda. Ele, numa gôndola veneziana, cruza essas águas escuras, transportando as agoniadas almas fadadas às sombras. Quase nunca o sol aparece por lá, como é de se supor. Faz constantemente frio e costuma nevar muito. Não é que lá haja inverno, é que as sombras estranhamente produzem essa aparente estação de ano justamente onde não existe tempo, fazendo cair uma neve não em forma de flocos, mas de pensamentos sombrios e enregelados. Ruídos de todos os tipos se fazem escutar, desde uivos de lobos a gritos humanos, desde estrondos de avalanches a sons de tempestades, desde toda e qualquer gritaria até a última sonoridade do terror, que é o silêncio da escuridão.
            Aqui, todavia, em meu recanto, o céu é estrelado. Pontilhado de infinitas constelações. Tantas que deus algum poderia contá-las com precisão. Eu tenho os meus olhos permanentemente fixados numa delas, a que cintila mais que todas as outras. No meio dessas estrelas vive a mulher que um dia há de voltar para os meus braços. Talvez seja esta a razão de eu escrever tantos poemas sobre estrelas cadentes. Na realidade, os meus versos celebram não a resplandecência das estrelas, mas sim o brilho altivo dos olhos de Ana Agar, a maneira como me fitava quando fazíamos amor em noites de lua cheia.
            Este livro resultou de uma epopeia de amor que vivi com Hécate, primitiva deusa de um mundo muito antigo. Foi ela quem, disfarçada de escrava, dormiu com Abraão durante a esterilidade de Sara, nos primórdios dos tempos santos. Conhecida por sua magia e por seus aparecimentos inesperados na claridade do luar, ela participou de muitos conflitos na Antiguidade. Entre os romanos, no papel de Diana, ela inspirou governantes e comandou centuriões antes de Roma ser chamada por João, na ilha de Patmos, de a Grande Besta. A mim ela se apresentou, primeiramente, como Maria da Terra, uma rainha das encruzilhadas brasileiras. Vivemos uma linda história de amor que eu, recolhido à visceral solidão desta existência abstrata, recordo em meio aos meus alvoroços de homem apaixonado.
            Longe dela, sou um homem de vento, que já não reflete nos espelhos. Tenho a chave dos mistérios e dos medos, não me preocupando mais com essas questões simplórias que tanto afligem as pessoas: coisas como a morte, a finitude, a eternidade, o que existiu antes, o que virá depois. Nada disso tem importância diante do fato de que somos, a um só tempo, perecíveis e eternos. Viver e morrer são apenas dois verbos, do mesmo modo que vida e morte são dois substantivos. Que significam verbos ou substantivos para quem se situa hoje além das gramáticas?
Houve época, contudo, quando eu ainda perdia tempo com verbos e substantivos, que um espanto se apossava de mim diante da simples ideia da morte e do que poderia acontecer comigo. Agora eu me assombro com esta perpetuidade quase insuportável, sem contornos como o vácuo, esta condição de alma sem mais carne, sem mais ossos, sem mais sangue, sem mais cheiros, sem mais sabores. Impossível decifrar o inefável.
            Encontro-me, agora, debruçado sobre planícies, rios, montanhas, oceanos, uma infinidade de lugares. Tenho à vista muitos pássaros inquietos, multidões aflitas na solidão das metrópoles, povoados que crescem e cidades que se extinguem. Só posso contemplar o que não me é mais possível tocar. Neste lugar sem tempo, capenguei tanto entre os pensamentos, desnorteado pelo silêncio, transformado numa coisa condenada a incessantemente pensar e lembrar. Cheguei a esta fase em que nos convertemos não em anjos ou demônios, mas primeiro em reminiscência e depois em esquecimento.
            Esquecido das vozes de todos os personagens longínquos de minha história desfeita, eu demorei em entender que a morte não passa de um eterno fluxo de lembranças em redemoinho. Estar morto é um complexo estado de espírito, que ainda não consigo simplificar e expor claramente com palavras. Quando eu souber dizer o que isto significa, talvez se complete em mim o sentido dos meus enigmas que não logrei interpretar.
            Demorei muito em me acostumar a este voo de sentido circular, tardei demais para aprender a flutuar entre o ponto zero da vida e o infinito das ideias. O azimute dos círculos me conduziu a um mundo onde os espíritos continuam a viver. É com eles que divido o privilégio de fazer versos e inventar destinos. Fascina-me este relato póstumo com que tento ser lembrado, porque, no final das contas, a única imortalidade servível é a que fica na memória dos outros, e a única morte irreversível é a que acontece no esquecimento alheio.  
            Neste livro há vestígios de remotas conversas travadas nos céus, nos desertos, nas encruzilhadas, nos prostíbulos, nas igrejas, nos botequins e nos esconderijos, desde os tempos em que os imperadores se encontravam para celebrar conquistas e tramar ardis, e os pobres se rebelavam nas tabernas, e os revolucionários morriam na ponta das baionetas, e os poetas blefavam para mulheres sonhadoras.
            Heróis, reis e plebeus que viraram primeiramente lendas e depois deuses, chegaram à Terra, segundo as narrativas dos povos tanto do Ocidente quanto do Oriente, e desmancharam a escuridão original, entre esperanças e controvérsias, para criar um tipo de vida e história marcados pela dialética e pela barbárie. Semearam os campos, levantaram castelos e igrejas, constituíram exércitos e hostes sacerdotais, dançaram à luz do Sol e da Lua, amaram-se profundamente para reproduzir uma prole mais abundante que as estrelas do céu e se dilaceraram uns aos outros com guerras intermináveis e estúpidas. É justamente dessas épocas que vêm estas histórias que agora descrevo.

            Apaixonei-me pela política, pelas guerras, pelo romance, pela pompa, pelas intrigas das cortes, pelas revoluções, pelos motins, pelas utopias. De todos esses episódios, resultou uma história de amor prodigiosa, a recordação dos acordes de uma harpa, a fábula de Ana Agar.

sábado, 4 de julho de 2015

Ayeorun


     Eu me chamo Ayeorun, sou o último sacerdote de uma dinastia que há
governado por séculos estas terras remotas e esta civilização que
desaparecerá nos próximos dias. Desde tempos imemoriais, todos os
governantes de minha linhagem, ao prepararem seus sucessores,
preocuparam-se em ensinar que a essência de todo nosso poder reside na
credulidade dos governados e em nosso conhecimento hermético sobre
sistemas de irrigação, agricultura e metafísica. Muitos tiranos terríveis
valeram-se disso para passarem por mensageiros de Deus. Eu me recuso a
endossar esta farsa.
     Esta é a história do estertor de um soberano. Vou falar um pouco de
mim e do que sinto ao destruir o meu próprio império. Não sinto pesar, sei
que dessas cinzas vai emergir a liberdade. A claridade predominará sobre as
trevas. Assim será.
     Quando completei quatorze anos, meu pai previu a própria morte ao
concluir que a dor de que padecia nas articulações era mais que um
inofensivo reumatismo. Quis me preparar para o exercício do poder e me
levou até o templo central, onde me ensinou teologia, poética, astronomia,
arte da guerra, técnicas agrícolas, filosofia primeira, magia branca, bruxaria
e o alfabeto sagrado. Diante de tantos segredos desvelados, perguntei a ele
por que se escondia tudo aquilo dos governados e por que ele, sabendo
tanto, sucumbia à doença que o matava. Morreu sem nunca me responder
convincentemente.
    Aos meus dezoito anos, eu acompanhei os funerais do meu pai e fui
declarado rei depois que o fogo consumiu-lhe o corpo e as cinzas foram
guardadas no templo central. Levantou-se, em memória dele, uma pirâmide
com o ápice voltado para certas constelações que nunca são vistas a olho nu.
   Desde então venho usando minha perspicácia para destruir o império que
meus ancestrais construíram em cima da farsa. Persisto neste propósito,
porque prefiro a iluminação do espírito à suntuosidade hipócrita dos reis e
das cortes.
   Decidi que todos os meus feitos devem permanecer anônimos, estando
os cronistas do reino proibidos de registrar as minhas obras. Nada mais se
escreve nos monumentos construídos durante meu governo, nenhuma
referência às batalhas que venci, nenhuma palavra sobre as secas que
assolam os povoados. Nenhum artesão tem mais permissão de cunhar nas
pedras símbolos cabalísticos mentirosos. Eu, Ayeorun, sou o rei do
esquecimento. Por isso tenho este nome: Aye, o que vem do mundo visível,
tangível; Orun, o que vem do cosmo, dos espíritos – em mim esta
convergência se chama liberdade, eu quero o meu povo indo embora dessas
terras inóspitas, para se multiplicar em outras partes e ampliar a civilização
humana. Quero-os livres, mesmo que isto me custe o império.
   Esta, portanto, é minha obra principal: pôr fim à onipotência dos
tiranos, que seriam menos onipotentes se os governados fossem menos
ignorantes e menos crédulos. A ruína é só aparente, o que eu produzo é a
iluminação.
   Eu ordenei aos astrônomos que ensinassem o povo a entender melhor
a influência dos astros na agricultura. Todos sabem agora quando devem
plantar e colher, não precisam mais recorrer aos sacerdotes. Determinei
também aos funcionários do governo que não mais cobrassem tributos
extorsivos de irrigação e que instruíssem os camponeses a utilizar moinhos
de vento e esterco nas terras ásperas. Instruí os monges para que
abandonassem a vida de contemplação nos templos e fossem comer com os
pobres. Abri as portas do palácio para que o povo viesse ao meu encontro e
comprovasse que sou feito da mesma substância imperfeita de que eles são
compostos.
   Admito que estas medidas drásticas desorganizaram mentalmente os
meus sacerdotes, os meus funcionários, os meus soldados, os meus
governados. Todos me tomam por insano e iconoclasta. Houve tentativas de
sedição, todas fracassadas por razões nem sempre muito claras. Mais de
uma vez escapei da morte, apelando para súditos fiéis que morreram no meu
lugar quando as portas dos meus aposentos foram arrombadas por
revolucionários enlouquecidos. Com imensa tristeza soube que vários dos
meus familiares foram assassinados à luz do dia, por vingança dos nobres e
dos sacerdotes. Ainda assim, me mantive no meu propósito de semear
iluminação e liberdade neste império que só conheceu tirania e misticismo.
   Meu último ato de governante foi o de proibir os sacrifícios de sangue
em favor dos deuses, coisas que o povo faz em troca de boas colheitas.
Disse aos sacerdotes e aos governados, na praça dos rituais, as mesmas
palavras: “É uma estupidez crer que oferecer aos deuses o coração das
virgens e dos imberbes possa criar algum tipo de boa sorte”.
   Retirei-me então do templo principal e me sentei no topo da pirâmide
que construíram em memória do meu pai. Olhei a constelação que ninguém
vê a olho nu e decidi concluir meu trabalho mais depressa, antes que uma
revolução ponha tudo a perder. Aqui me encontro há muito tempo,
completamente imóvel, com o olhar estendido sobre todo o império, sem me
alimentar, sem me proteger das intempéries. Sou uma esfinge à vista de
todos. Os sacerdotes e nobres me encaram com ódio, mas não se
aproximam de mim. Confabulam clandestinamente, estão convencidos de
que serei consumido pelo longo tempo exposto ao sol, às chuvas, ao calor,
ao frio. Mas se desorientam quando veem, em torno de mim, certa aura
azulada, que me protege contra os rigores da natureza. O povo, por sua vez,
atônito, me vê como um rei emudecido, um deus morto – que deve ser
lembrado, jamais louvado.
   Percebo que a fome grassa no reino. Há uma terrível estiagem. Meus
súditos estão desorientados. Por algum motivo o povo não sabe o que fazer
quando não tem um rei que o conduza, um governo que o intimide, um deus
que o assuste. Os sistemas de irrigação se arruinaram: sem as taxas antes
cobradas, faltam fundos para a manutenção das engrenagens. Os sacerdotes
e os nobres morrem de fome, porque já não contam com as porções de
comida que as pessoas lhes traziam em troca de favores políticos e
conselhos divinos. Embora eles saibam ler e escrever, desconhecem técnicas
agrícolas, artifícios de caça e pesca. São todos inúteis, para nada lhes serve
tanta erudição e tanto conhecimento de magia.
   Um dos meus teólogos afirmou, numa última e desesperada tentativa
revolucionária de reverter a situação, que era preciso restabelecer o medo
nos súditos, ou do contrário estes jamais retornariam com suas oferendas.
Mas os governados, tendo compreendido finalmente que os sacerdotes não
passavam de embusteiros, fizeram pouco caso deles. Agora, com esta
terrível seca, o que vejo são enormes procissões de migrantes, gente que vai
embora para onde houver vida, terras férteis. Sinto que meus sonhos
começam a virar realidade.
   Eu, Ayeorun, de nada me arrependo, nenhum pesar sinto. Meu povo foi
para longe e conseguirá sobreviver. Falta pouco para eu cumprir meu
destino. Ainda estou no alto da pirâmide da antiga praça dos rituais de
sangue, sou uma esfinge que se desfaz pela ação dos ventos e das
tormentas, pouco a pouco, sem que eu sinta nenhuma dor, sem que o
mundo perceba o que está acontecendo. Daqui a algum tempo não serei
sequer tênue recordação. Estas são minhas últimas palavras, já não existe
nenhum oráculo hermético, tudo é claro, tudo é nítido, tudo é visível.
   Construí a liberdade, destruí a ignorância, posso morrer em paz.