domingo, 21 de maio de 2017

O curumim exilado

     Em tempos de muito ódio no país, até da parte dos que se dizem tolerantes e defendem a diversidade das opiniões, prefiro o silêncio da meditação, que é um pensar de reminiscência. Não se trata de escapismo e de um simples recolhimento à solidão. Tampouco um recurso à fantasia. Mas sim de um ardil com que se pode penetrar noutras dimensões da existência e encontrar algum sentido para existir fora dos horizontes áridos da estupidez vigente. Pois é preciso ser muito, muito ardiloso para conseguir escapar dessas asperezas cotidianas e ficar além das banalidades.
     Longe de mim fechar os olhos e repetir mantras, como se assim fosse possível modificar a vida. Não, eu gosto da vida do jeito que ela é, mesmo quando incompreensível, mesmo quando dolorosa, mesmo quando bruta. Nada espero, mas faço tudo o que deve necessariamente ser feito. Portanto, o silêncio dessa meditação se dá mesmo no meio dos tumultos e dos desapontamentos. E dentro dessa quietude a gente pode ser como o dia que nasce e a noite que chega. Trata-se de um lugar quieto e de um tempo quieto bem no coração do mundo.
     Há uma dimensão em que se pode meditar desse jeito. Falo dessa dimensão mítica com que dizemos as coisas de forma peculiar. Sem precisar de lógica utilitária, conceitos de moralidade, regras de igreja, pruridos de consciência, razões de Estado ou qualquer coisa semelhante para que simplesmente a vida se dê como um acontecimento que a gente acolhe no espírito com infinita gratidão.
      Digo tudo isso, como preâmbulo desnecessário, movido por uma postagem de um amigo no Facebook nesta manhã. Uma mesa posta com pão, manteiga, café, leite, banana frita, cuscuz salgado e cuscuz doce, açaí com farinha de tapioca e...pupunhas!  Quem diria que essa visão de um café da manhã de minha infância pudesse realçar tanto o meu sentimento de estrangeiro dos últimos tempos. Sensação de falta do essencial. Um homem que se sente estrangeiro em qualquer lugar é como um menino perdido no escuro. Tem medo das cores do dia e tem medo dos ruídos da noite. Não reconhece as palavras no meio do vozerio dos estranhos. Não experimenta acolhimento de casas com portas e janelas abertas. Precisa se esquivar das esquinas e evitar ser esfaqueado na mínima distração. Todo lugar mais adiante é sempre uma fronteira que ficou para trás.
     Mas se houver poesia nesse estrangeirismo todo...Ah, quem sabe possa estalar as mãos. Assim era quando pequeno encurralado no escuro. Estalava as mãos, e vinham os pirilampos abrindo caminho entre as sombras e as visagens, como aquela cavalaria dos filmes de faroeste ou como uma mulher com gosto autêntico de estrelas. É que a poesia, no fim das contas, pode ser essa dimensão da reminiscência e da solidão criadora. Aí, finalmente, o estrangeiro vê que não passa de um curumim exilado. E que é preciso brincar, brincar e brincar muito, para afastar os estrangeirismos que machucam desnecessariamente o espírito. Brincar é um verbo que substitui, à perfeição, o verbo odiar, o verbo sofrer, o verbo morrer.

2 comentários:

  1. adoro lembrar os meus tempos de leitura de livros, não tinha televisão e o nosso imaginário vivia as coisas mais doces, hoje temos televisão, celular, tablet. parabens por nos dar lembrança omde era importante uma leitura.

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  2. Que os livros continuem a ser sua abertura para o fantástico, mesmo nestes tempos de predominância da tecnologia.

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