quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O boto feiticeiro


O boto feiticeiro

            Haveria festa na vila ribeirinha naquele final de semana. Os homens do lugar cuidavam de todos os preparativos, incluindo a defesa contra os intrusos encantados dos rios, aqueles que costumavam aparecer na força do vento e da correnteza – os perigosos botos, os que carregavam as moças solteiras para o fundo das águas e as devolviam ao mundo com um filho na barriga. De todos os botos que engravidavam as mocinhas sonhadoras daquelas paragens ermas, o que mais despertava apreensão era o boto feiticeiro, aquele que pouco se mostrava no visível da vida, aquele que ainda assim existia enquanto predador de corações femininos.
            Os homens da vila já haviam encarado muitos botos intrusos, transformados em belos rapazes que apareciam nas festas e conquistavam as mulheres mais bonitas do lugar. Desconfiavam daqueles que chegavam bem vestidos, extraídos da escuridão e das águas por alguma força sobrenatural dos rios e das florestas, sobretudo dos que chegavam de terno branco de linho, chapéu na cabeça, cigarro entre os dedos, e dos que dançavam como se fossem bailarinos sedutores, libertinos, vorazes com suas narinas fixadas em cheiro de mulher. Muitos deles vieram e deixaram seus filhos bastardos. Outros foram perseguidos pelas tropas de defesa da vila, que os perseguiam pelas trilhas da mata até a beira dos rios e lagos, pegando-os a tiro de carabina ou a porrete. E os que eram apanhados no meio da fuga ficavam gemendo no chão, até que, ao amanhecer, tomavam a forma de botos. E, então, como se fossem dejetos de guerra, eram retalhados e divididos entre os habitantes, para que todos experimentassem a sua carne tenra e adquirissem suas propriedades afrodisíacas, sua força devastadora de vida. E também lhes arrancavam os dentes com o intuito de fabricar talismãs. Afinal de contas, qual daqueles ribeirinhos não queria usar no pescoço um amuleto feito com um dente de boto para ser também irresistível diante de uma mulher?
            Mas havia um boto de quem muito se falava, que era muito temido, sem que jamais houvesse sido visto, um encantado que, no entanto, aparecia e desaparecia subitamente das festas. Imune às carabinas e aos porretes. Invisível talvez, oculto em seu mistério. Talvez fosse o que mais tivesse deixado para trás não propriamente filhos bastardos, e sim mulheres encandeadas pelo brilho do seu olhar e sortilégio das suas palavras. Desconfiava-se de que fosse outro tipo de encantado, não um boto que se transformasse em rapaz sedutor, mas um homem que se encantasse em boto e que, embora vivesse entre os humanos, sempre se evadia para sua forma substancial, durante as chuvas e as ventanias: o cetáceo sobrenatural dos rios amazônicos. Era o boto feiticeiro. A sua encantaria se dava de forma inversa: estava permanentemente no mundo, de onde, ante a iminência dos perigos, escapava para as funduras das águas, onde recuperava suas profundezas espirituais. O Céu, para ele, era o fundo do rio e do lago.
            Que tipo de feitiço esse homem boto maneja com tanta potência?
            Nenhum homem sabe dizer. Seus inimigos se reúnem em assembleias, preparam suas carabinas e seus terçados, saem à sua caça, em qualquer parte do mundo, no profundo dos rios e das florestas, no interior das vilas ribeirinhas, e nunca o encontram. É que o boto feiticeiro, além do fundo das águas, tem um esconderijo inacessível para seus adversários. Ele se esconde sempre no coração de uma mulher apaixonada, a fortaleza mais inexpugnável que pode haver no mundo. Sua arma? O silêncio suave, em primeiro lugar, com o qual vai se esgueirando por dentro da alma feminina, adivinhando-lhe os desamparos e sustentando-a com a solidez do amor que jamais abandona. Depois, como tão poucos homens sabem fazer, o boto feiticeiro despeja suas palavras em forma de partituras: o seu falar é poesia autêntica. E é essa força poética masculina que se acopla no espírito da mulher. E tudo que é múltiplo e composto adquire uma unicidade que só pode existir e perdurar nas coisas humanas e inefáveis a um só tempo. O boto feiticeiro é um poeta.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Diário de Resistência


1.

      Minha rua se faz silenciosa depois de certa hora. Tarde da noite. De vez em quando, passa alguém vindo sei lá de onde. Às vezes, um homem trôpego e tardio, que fala sozinho, em sua tentativa débil de recuperar o caminho de casa. Outras vezes, sombras, muitas sombras, que podem ser reflexos de gatos e cachorros saltando sobre os muros mal-iluminados pela luz fosca dos postes, ou qualquer coisa semelhante a isso: fantasmas perdidos. A minha insônia absorve todos os ruídos e movimentos da escuridão. Lá fora, os vultos extraviados, o zunido do vento, os miados dos gatos no fundo dos becos, os latidos incessantes dos cachorros, a madrugada; e aqui, dentro de mim, o medo exagerado. Estou assim desde que fiquei doente. Degenero.
      Sinto medo do escuro completo e de nunca mais amanhecer. Venho escurecendo faz tempo. A lucidez cada vez mais desaparece na demência. Às vezes, movo com dificuldade os braços e as pernas, sem mais a vitalidade dos músculos. Meus braços “dançam”, como bailarinos indomáveis numa ópera de guerra: movimentos involuntários, loucos, rápidos, sem eira nem beira, para cima, para baixo, para os lados, tremedeira que me abala os nervos, parece que vou explodir; e aí me olho no espelho, e vejo caretas, muitas caretas, e tiques, muitos tiques. Tento gritar para me livrar da opressão no peito, mas o que sai da boca é um som pastoso, rouco, ininteligível, que nada comunica, exceto o desespero. Sinto irritabilidade, muita irritabilidade, tenho vontade de matar alguém. Quase não consigo me alimentar e beber água, porque me engasgo e me sufoco. Depois de muita confusão, me abandono na letargia, deprimido, apático, impotente, sem mais esperança. Tomo remédios de todas as espécies, para controlar cada um desses distúrbios motores e mentais. Reconheço que se trata de percurso sem volta para dentro da escuridão: doença degenerativa no cérebro não tem cura. Pioro a cada dia. Dependo dos outros para as atividades mais corriqueiras, como beber e comer, ir ao sanitário, tomar banho, me vestir, me pentear, cortar as unhas, ingerir os remédios, medir a temperatura e a pressão arterial, quase tudo. Veridiana, minha mulher, está exausta, não suporta mais a doença, porque sabe que não há cura, não existe antídoto para essa desordem hereditária do sistema nervoso central, esse distúrbio neurovegetativo que mata lentamente. Talvez eu fique anos ainda me transformando em vegetal, morrendo devagar, ela sabe disso e se rebela, porque quer de volta seu marido como era antes, aquele homem vigoroso, bonito, inteligente e cheio de futuro, com quem namorou durante anos e com quem se casou esperando uma vida de bem-aventuranças, uma casa, uma família. Ela se desespera, não sabe mais o que fazer quando, na urgência súbita de aliviar os intestinos, corro para o banheiro e não consigo chegar a tempo, me sujando todo e empesteando o apartamento; nessas horas, minha mulher grita e pede socorro à dona Vilma, que trabalha para nós faz tanto tempo e trata de mim como se eu fosse seu filho, além de cuidar da limpeza da casa, lavar e passar roupa, preparar a comida e até fazer compras no mercadinho do bairro e na quitanda, porque Veridiana, cada dia mais exausta e terrivelmente esgotada, está adoecendo de depressão – sem mais forças para suportar a situação, às vezes ela permanece apática por longo tempo, como se quisesse adoecer e morrer junto comigo.
      Quando dona Vilma escuta esses gritos de Veridiana, “Ele está todo cagado! Ele está todo cagado!”, deixa as panelas na cozinha, vem correndo ao meu encontro, trazendo um balde de água com desinfetante, e me leva para debaixo do chuveiro. Veridiana chora e tenta ajudar de alguma maneira. Sussurra nos meus ouvidos que devo usar fraldas, que eu não fique assustado, que tudo vai melhorar. Mentira, ela sabe que é mentira o que está me dizendo. A cada dia vou sendo sobrepujado pela fraqueza mental, pela tristeza repleta de agressividade, pelos tormentos musculares. Ela vira o olhar para o outro lado quando dona Vilma vai me limpando o corpo esquálido: sou um saco de pele e osso, magro de dar pena, dominado por essas tremedeiras que me roubam as últimas calorias do organismo. Ainda assim, na hora da refeição, minha mulher se senta ao meu lado e, pacientemente, me dá de comer, o que é uma tarefa penosa, desgastante. Já fui tomado por infecções generalizadas na garganta, sofro com engasgos e me sufoco até com sopa de legumes batida no liquidificador. Chega uma hora em que a gente cansa em definitivo e não consegue mais lutar. Não faz mais sentido viver desse jeito. Estou esgotado – forças psíquicas e físicas reduzidas a quase zero. Procuro amparo em Veridiana, que leva a colher de sopa à minha boca. Quando me dou por satisfeito, fica me olhando com seus olhos graúdos. Seu olhar é vasto, triste, enigmático, e geralmente parece estar úmido das lágrimas que chora em segredo. Em que será que ela está pensando?

2. 

      Adoeci logo depois de completar quarenta anos. Os primeiros sintomas: depressão, esquecimentos contínuos, alguns movimentos involuntários e bruscos dos membros, descoordenação motora crescente. Deixava cair tudo à toa, ora os talheres nas refeições, ora os óculos na hora de ler, ora os objetos retirados da geladeira, ora qualquer coisa que tentasse apanhar. Veridiana me levou a um célebre neurologista, o melhor de todos na cidade, com quem gastamos boa parte das nossas economias domésticas. Fui investigado geneticamente, vistoriado de cima a baixo, da esquerda para a direita, por dentro e por fora. Tudo inútil, o doutor nunca soube me dizer que doença maldita é esta. Até consultou seus colegas de medicina, mas ninguém chegou a qualquer conclusão. No entanto, todos foram taxativos num ponto: em reconhecer a letalidade do meu caso. Quanto tempo de vida? Quem pode saber? 
      O médico propôs tratar os sintomas da doença, enquanto se espera que da ciência venha alguma novidade. Apenas isso. Nada mais se pode fazer. A vida tem dessas coisas: fazer pirraça com a gente quando tudo vai tão bem. Por que isso foi acontecer comigo? Por quê? Por quê? No dia em que recebi o diagnóstico lacônico – uma doença sem nome que destrói o cérebro e vai matando gradativamente... –, eu tive vontade de morrer logo, para evitar o padecimento lento, a humilhação de apodrecer em vida. Era uma segunda-feira, às duas horas da tarde. O doutor nos disse que se tratava de uma situação muito difícil, que precisaríamos de muita bravura para passar por tudo o que viria em seguida. Viu que eu estava muito nervoso. Tirou da gaveta uma cartela de calmantes. A secretária dele trouxe um copo de água. Ingeri dois comprimidos. Veridiana se controlou como pôde, não quis tomar remédio, engoliu a vontade de chorar, segurou minhas mãos e me prometeu que jamais me abandonaria. Disse muitas coisas bonitas. Que juntos enfrentaríamos essa dura prova. Que jamais eu duvidasse da palavra dela.   
      Instante de torpor, desamparo. Lágrimas silenciosas: meu rosto úmido, meus olhos assustados. Minha mulher me abraçou e repetiu que, em hipótese alguma, me deixaria sozinho. Situação muito difícil, o doutor voltou a dizer, enquanto nos passava as receitas, com as prescrições de remédios de uso controlado, ansiolíticos, antidepressivos e outras medicações indicadas para o retardamento do processo inexorável da senilidade. Eu estava em silêncio, absorvendo os ecos dos meus pensamentos: por quê? por quê? e agora? O que vou fazer agora? Que vai ser de minha vida? Aquelas circunstâncias me deixavam tenso, muito nervoso. 
      Minha mulher me disse que o calmante logo faria efeito, que eu tivesse calma, que ela estava comigo. A gente se despediu do médico. Eu disse a Veridiana que precisava andar um pouco pela cidade. Ela concordou comigo, faz bem andar a esmo, escutar a barulheira do trânsito, distrair-se na multidão. Veridiana caminhou ao meu lado, sem desgrudar de mim, de mão dada. Vacilante, eu tropeçava nas pedras soltas das calçadas, esbarrava nas pessoas, pedia desculpas. Os outros, muito apressados e concentrados somente em si próprios, nem se davam conta de minha presença. Na rua, era pleno o caos constante do tumulto urbano. No relógio digital da esquina, o mostrador indicava a hora e a temperatura, duas e quarenta e cinco da tarde, trinta e cinco graus centígrados. E ali, no centro da cidade, diante de mim, a multidão impaciente, os carros barulhentos, o excesso de dióxido de carbono, os guardas de trânsito e seus apitos, o congestionamento incorrigível do trânsito, a gritaria dos vendedores ambulantes, o sol forte da tarde, enfim, o mundo que eu começava a perder, a vida.
      Prometi à Veridiana lutar sem esmorecer. Muito bem, ela me disse, e me lembrou do que  havia me prometido, que permaneceria ao meu lado em todas as situações. Que eu contasse com ela, de verdade, e que eu acreditasse firmemente no que me dizia: que nós dois juntos não seríamos vencidos facilmente por qualquer adversidade. Numa parte de mim, agitavam-se os titãs da vida: a luz do sol, os sons da cidade, a voz de Veridiana; noutra, os titãs da morte: os terrores imprecisos, os vazios insondáveis, as sombras infinitas. Senti um pouco de sono. Veridiana disse que o remédio estava dando resultado, que era melhor ir para casa. Eu disse que não. Insisti em andar pela cidade. Ela, então, sugeriu um cinema, relaxar no ar-condicionado, beber Coca-Cola, comer pipoca, assistir a um filme, quem sabe cochilar. Eu disse que sim. Vi os cartazes na frente do cinema e escolhi um filme de guerra. Precisava de estímulos belicosos.
      Entramos no cinema na hora em que as lâmpadas estavam se apagando. Havia pouca gente. Sentamo-nos no fundo da sala. Na tela eu esperava encontrar soldados valentes defendendo trincheiras, atacando seus oponentes, tirando o escalpo dos inimigos. Eu queria aprender com os soldados a enfrentar a doença letal. Minha vida agora era um filme de guerra.
      O remédio fazia efeito: que sono. Não, nada de dormir. Comi pipoca e bebi Coca-Cola. Na tela, o filme de guerra. Tentei me concentrar. Queria vida, vozes, cores, imagens, movimentos, tiros e gritos dos soldados em confronto. Precisava de uma história de guerra em todo seu esplendor catastrófico: azuis contra vermelhos; brancos contra negros; crentes contra hereges; amigos contra inimigos; o bem contra o mal; eu contra aquela doença escrota.
      No filme, os soldados passavam dias inteiros cavando trincheiras. O inimigo nunca chegava. Também comiam e descansavam. E escreviam cartas de amor para suas mulheres distantes. Soldados românticos e amedrontados que só cavam trincheiras, não lutam e escrevem cartas de amor, onde já se viu? Cadê as cargas de baionetas, as bombas jogadas dos aviões, as facas degolando sentinelas, os jorros de sangue, os gritos viris dos vencedores e os balidos dos derrotados? Cadê tudo isso?
      Que filme de guerra nada. Uma farsa.
      Terminei dormindo. Efeito do calmante. Nem vi no filme os aviões bombardearem as trincheiras dos soldados românticos e amedrontados, nem as tropas atacantes finalmente chegarem, nem as investidas de baionetas da infantaria, nem os avanços dos tanques de cavalaria. Dormi o tempo todo. E quando as lâmpadas se acenderam, Veridiana me despertou e me disse que a gente precisava retornar para casa. Que já bastava de passeio.
      A gente saiu do cinema quase às cinco da tarde. Tateamos pela multidão, procurando um táxi. Vimos então, do meio do trânsito engarrafado, uma motocicleta saltar para a calçada. Um sujeito de bermuda e mochila, o carona, pulou da moto e correu na direção de um homem de terno escuro parado na porta do prédio ao lado do cinema, apontando-lhe um revólver. Esvaziou o tambor de seis
balas. O homem de terno rodopiou no ar e caiu pesadamente. O assassino fugiu correndo e subiu na motocicleta, mantida em funcionamento por seu companheiro. Berros histéricos do povo alvoroçado. O corpo ensanguentado na calçada, agonizante e prestes a morrer. Do prédio saiu uma mulher gritando o nome do filho. Ele se agitou por alguns segundos, tentando reagir, puxando o ar que lhe faltava, mas, sufocado por sangue, não resistiu aos ferimentos e morreu. A mãe dele, em estado de choque, se sentou na calçada e, chorando convulsivamente, acomodou em seu colo aquele corpo sem vida, todo vermelho de morte.
      Os ruídos do final da tarde ressoaram tensamente em minha cabeça, especialmente as sirenes da polícia, dos bombeiros e das ambulâncias. Vida anárquica, violência por toda a parte, um gene defeituoso dentro de mim, o tumulto da rua, as buzinas dos carros, os estampidos do revólver, o baque do homem ao tombar sobre a calçada e os gritos de sua mãe repercutiam em todos os órgãos do meu corpo. Olhei o cadáver e disse que, em vez dele, eu é que deveria ter morrido. Melhor morrer nas mãos de um pistoleiro do que acabar inválido e apodrecido por uma reles doença. Que Veridiana, igual àquela mãe, também chorasse por mim e me acomodasse em seu colo. Que confusão se apoderou de mim, desintegrando meus nervos e me jogando numa crise repentina – comecei a tremer descontroladamente, a fazer caretas estúpidas, a babar feito um imbecil. Ninguém prestou atenção em mim. Minha mulher gritou por socorro, mas todos só tinham olhos para o morto e sua mãe. Veridiana desistiu e me puxou pelo braço, me arrastando para longe dali. Cruzamos a rua, arriscando um atropelamento, e finalmente apareceu um táxi. Ela disse, então, puta que o pariu, pare aí, moço, pare a porra desse carro, meu marido está passando mal, tenha compaixão, tire a gente daqui. 

3. 

      Faz três dias. Há precisamente três dias tento absorver o diagnóstico. Hoje é quinta-feira. Já anoiteceu. Acabamos de jantar um bife acebolado, arroz e salada. Ainda posso me alimentar sem a ajuda dos outros. Comemos em silêncio. Veridiana está muito triste. Dona Vilma recolheu os pratos, lavou a louça, perguntou se a gente ainda estava precisando dela. Não, não, dona Vilma, amanhã é seu dia de folga, vou levar a senhora em casa, respondeu-lhe Veridiana. Vou levar a dona Vilma em casa e volto já, me diz Veridiana. 
      Está bem, querida, vá e volte logo, não se preocupe comigo, vou ficar bem. É o que lhe digo sem muita convicção. As duas saem e eu fico sozinho. Dói muito dentro de mim. A vida está secando, virando estiagem. Eu me sinto como um rio que vai perdendo suas águas, em definitivo, para as ribanceiras. Estou me escoando no rumo da vastidão. Resolvo reagir, não me entregar. Vou sair um pouco, caminhar. 
      Ando pelo bairro. Faz uns quinze minutos que caminho. Estou longe de casa apenas alguns quarteirões. Mas parece que caminho faz tempo, que cruzei desertos e cheguei a um lugar muito longínquo. Nem percebo o céu da noite carregado de nuvens pesadas. Vira o tempo depressa, logo cai um aguaceiro incomum. Chuva forte e ventania. Saio correndo pela rua, todo encharcado, e 
entro num botequim. Tremo de frio. Peço rum, quero beber, esquecer o diagnóstico que não sai de minha mente. Não pensar. Alguém me pergunta se está tudo bem. Devo estar mesmo com uma péssima fisionomia. Digo ao cara que me fez a pergunta:
 − Vou morrer.
 − De quê?
 − Não interessa.
 − Foda-se, então.
     Viro o copo de rum na boca. A garganta arde. E me volto para o sujeito que não estava mais interessado em falar comigo, muito menos em saber do que vou morrer. Ele agora está com os olhos pregados na TV do botequim, atento ao telejornal. Tento prestar atenção no noticiário. Há crises econômicas em várias partes do mundo. Fala-se também de atentados terroristas, de matanças no Oriente Médio, da ocupação militar do Afeganistão e do Iraque, das armas nucleares na Ásia e no Irã, dos assassinatos de imigrantes na Europa, dos homicídios banais em todo o Brasil. O mundo gira em seu show cotidiano de violência e horror. Mesmo assim, eu amo este mundo, eu não quero perdê-lo, e, apesar disso, ele some de mim gradativamente. Esfarela-se, enquanto anuncia a morte. 
      Bebo mais rum. Que desespero. Que frio.
      Espero o aguaceiro amainar. Só então deixo o botequim e tento apanhar um táxi, porque ainda chove fraco e não quero arriscar um resfriado. Sei como estou sem resistência imunológica. Meus glóbulos brancos são peidos inúteis. Não servem para nada. Ultimamente adoeço por qualquer besteira. Na frente do botequim, faço sinal para os taxistas. Ninguém para. Fico pensando nos filmes de Hollywood e nos táxis de Nova York, que sempre aparecem do nada na hora em que se precisa deles. Mas eu não estou dentro de um filme dos gringos, e sim imerso na porra da vida birrenta. Estou me estressando, daqui a pouco vou estar sob a posse das tremedeiras e das caretas, dos malditos espectros da morte. Melhor sair daqui, já, já. Desisto do táxi e vou embora a pé, trôpego como um fantasma melancólico, atormentado.

                                                                  *

      Ao entrar no apartamento, tremo de frio e nervoso. Acendo as lâmpadas todas. Pego uma toalha, me enxugo e troco a roupa. Diante de mim, na estante da sala, uma fotografia de Veridiana em preto e branco, o retrato bonito que ela tirou no dia do nosso casamento. Ligo a TV e sintonizo uma rádio FM, tudo ao mesmo tempo. Aumento o volume ao máximo. Barulho infernal. O interfone toca, deve ser o síndico ou o vizinho reclamando da barulheira. Não atendo. Baixo o volume da TV e do rádio. O interfone deixa de tocar. 
      Volta a chover forte. A chuva bate na vidraça das janelas. Barulho aterrador. Sombras me encurralam. Suicídio – que ideia desesperada é esta? Espectros lamurientos se aproximam de mim, vozes incessantes me dizem “se mata, se mata”. Outra vez quero morrer de um só golpe, como morreu aquele estranho, três dias atrás, com seis balaços disparados por um pistoleiro profissional. 
     Os espectros me dizem para apanhar os remédios. Que remédios, indago às sombras, de que vocês estão falando? Outra vez as vozes ressoam incessantemente: os remédios, os remédios. Desta vez não resisto e vou cambaleando até o armário do banheiro. Apanho várias cartelas de diazepam e antidepressivos. E depois retorno à sala, onde encontro uma garrafa de uísque. Faço uma mistura infernal de ansiolíticos, antidepressivos e álcool. Engulo não sei quantos comprimidos com uísque à moda caubói. Em pouco tempo, tudo gira dentro de minha cabeça – uma queda no abismo, a vertigem do álcool e da medicação. Tento, inutilmente, manter os olhos abertos. Respiro com dificuldade. Quero pensar e não há pensamento. Quero falar e não há palavra. Vou perdendo os sentidos. A vida está indo embora. Tudo escurece.
      Subitamente, daquela foto de Veridiana em preto e branco, vejo-a saltar em minha direção, desencobrindo claridades inacessíveis. Grita comigo: “Está fazendo o quê? Está fazendo o quê?”. Respondo: “Vou morrer”. E ela me aponta o dedo na cara e me diz que não vou morrer porra nenhuma. Que eu tivesse vergonha na cara. Que fosse vomitar aquela porcaria toda. Obedeço. Corro para o tanque da área, enfio o dedo na garganta, bem fundo, e trago para fora o vômito, o uísque, o diazepam, a fluoxetina, os pensamentos escuros, quase as minhas vísceras. Tremo todo. Suor frio e mal-estar. Respiração arquejante. A morte me dá um tempo e se afasta de mim.
      Retorno para a sala e me jogo no sofá. Tento dormir. Exausto. Cochilo apenas. Perturbado, desperto pouco tempo depois. Cadê a Veridiana, me indago. Noite longa, barulho da chuva nas vidraças das janelas, sinto medo. Fecho os olhos, tapo os ouvidos, mas aquelas vozes insistem em me assediar. Os fantasmas me ordenam que eu vá até a cozinha. Digo que não e não. E eles: “Vai logo, porra, que estamos mandando, seu puto”. E eu olho a fotografia de Veridiana, vem me socorrer, Veridiana, vem me socorrer. Desta vez, ela não salta do retrato em preto e branco.
      Obedeço aos espectros encolerizados, como um soldado submisso, um homem frouxo. Entro na cozinha e fecho as portas com trapos de limpar chão. Enfio pedaços de sabão em pedra nos orifícios das fechaduras. Tudo vedado. Abro, então, o interruptor do gás. Aí, me ajoelho diante do forno e meto a cabeça bem lá dentro. Vou perdendo a consciência. A morte me abraça novamente.
      Outra vez, então, escuto a voz de Veridiana. Novamente ela salta da fotografia, agora mais enfurecida do que na primeira vez, e me pergunta se eu não acredito em palavra de mulher e no que ela me disse três dias atrás, que jamais me deixaria sozinho, jamais, jamais, e dizendo isso puxa minha cabeça para fora do forno. Ela dança diante dos fantasmas, debochando da morte. Quanto mais a morte me agarra, mais Veridiana se enfurece com as sombras, se atraca com elas e depois me abraça com vigor. Então, de repente, tomo consciência do que está acontecendo, e grito que eu quero viver, que jamais vou morrer covardemente daquele jeito; e me lanço para trás, tossindo e vomitando. Arrasto-me pela cozinha e vou retirando os trapos de debaixo das portas. Quero respirar, quero respirar. Meto a chave nas fechaduras, desobstruindo-as do sabão em pedra, abro os basculantes, fecho o interruptor de gás e persigo a vida. Tiro da geladeira uma caixa de leite e bebo tudo de uma só vez. Bebo e vomito. O leite misturado de vômito escorre de minha boca, encharca o chão, respinga nas paredes. Cambaleio e abro caminho na direção da sala, vou atrás da claridade de Veridiana na foto em preto e branco – mais uma vez, minha mulher me salvou.
      Mantenho os olhos abertos, sentado no sofá. Evito dormir para não escutar os espectros que me falam durante o sono. Sinto náusea. Tenho um gosto horrível na boca: mistura de rum, uísque, butano, diazepam, fluoxetina, leite, vômito. Tudo em minha volta está um nojo. O apartamento se transformou numa pocilga. 
      Aos poucos o cansaço me vence. Durmo contra a vontade. E os espectros suicidas reaparecem em forma de pesadelos, querendo me levar na marra. Brutais, me dão um revólver cheio de balas. Gritam: “Dê um tiro na cabeça! Dê um tiro na cabeça!”. Tento despertar, não consigo. Eles empurram o revólver contra minha têmpora direita. Repentinamente, um estampido das trevas, e a bala me rasga da direita para a esquerda, os olhos saltam no vazio, e eu morro cego, no escuro. Felizmente, trata-se somente de um pesadelo, uma brincadeira de mau-gosto dos fantasmas.
      Se eu fosse um conceito metafísico, a morte jamais improvisaria comigo. Mas sou apenas um homem ao deus-dará. Por isso, a morte brinca comigo de cabra-cega. Não consigo enxergar. A cegueira irremediável. Acabo de descobrir que o sobrenatural é incolor. A coisa mais insípida que pode haver. Mas o que as sombras não sabem é que conto com Veridiana, que cumpre a promessa de jamais faltar comigo, nunca me deixar sozinho, nunca, jamais. Mais uma vez ela salta da fotografia em preto e branco, juntando-se a mim nesta guerra de resistência. Ao lado dela reúno forças para enfrentar os fantasmas. Levanto-me do sofá, cambaleio pela sala, tropeço nos móveis e escorrego no vômito. Grito para os espectros: “Cadê os meus olhos, seus malditos?”. Eles silenciam. Xô, vozes malignas! 
      Cadê a Veridiana? Cadê a Veridiana? Por que demora tanto? Dona Vilma mora longe, sei disso, mas ela já deveria ter chegado. Talvez esteja presa no trânsito por causa da tempestade. Será que vai demorar? Vou até a varanda. Começa a parar de chover, venta muito agora, faz frio. Respiro o ar gelado. Pela primeira vez eu rezo, porque só os deuses e Veridiana sabem lidar com demônios tão ardilosos. Os fantasmas ficam putos da vida e investem contra mim pela última vez. Incitam-me a saltar da varanda, a voar de ponta-cabeça e a me espatifar no asfalto. Salta, seu bosta, salta, seu bosta. Agora, não, malditos! Nem agora, nem nunca. Vão todos vocês para o caralho. Finalmente eles desistem e são arrastados pelo zunido do vento.
      Respiro, aliviado. Olho o longe, o vasto. Imagino as estrelas estalando no fundo do abismo, como átomos irados clareando o escuro, um bigue-bangue de poesia sobrepondo-se ao caos. Agora, sou eu e minha coragem. Estou pronto para cavar trincheiras e enfrentar o inimigo. Que venha a porra dessa doença. Que venha a morte quando ela bem quiser. Vou dar conta delas.
      É quando o carro de Veridiana desponta na esquina. Ainda bem que retornou. Ela é a fonte de minha coragem. O esteio que me resta na escuridão. O resguardo que me ampara no vale de lágrimas e que me impele a furar o bloqueio quase invencível das sombras. O manancial da vida em todo seu esplendor. A expressão intensamente humana de força e vulnerabilidade, a mulher para além das metáforas e abstrações, minha companheira desde sempre.

4. 

      Tempos depois.
      A doença avança. Agonia profunda. 
      Ainda assim, resistimos nas trincheiras. A resistência vai durar até que não seja mais possível conter o inexorável. Veridiana está comigo. Jamais se entrega. Todos os dias ela faz questão de conceber um cotidiano em que a vida se mostre com um grau possível de decência. Que não envergonhe a gente. Que não nos faça chorar à toa. Que não nos desespere. De manhã, Veridiana me ajuda a escovar os dentes e me faz a barba. Penteia os meus cabelos e diz invariavelmente que nunca me viu tão bem, mesmo sabendo do exagero das suas palavras. Às colheradas, me serve café com leite, com pedaços bem pequenos de pão francês com manteiga, e depois me limpa os lábios com um guardanapo bordado por ela mesma. Em seguida, ela me leva ao banheiro e espera pacientemente que eu lhe diga, como se fosse criança, que acabei de fazer cocô. Então me leva para o chuveiro e depois me seca com extremo cuidado, passando, em seguida, pomada nas assaduras e espalhando talco nas dobras de pele onde concentra umidade. Feito tudo isso, me veste com roupas bem cheirosas e me conduz até a varanda, onde eu pego um pouco do sol da manhã, enquanto ela lê para mim trechos de um romance ou algumas notícias do jornal. Cada dia é um dia. Passo a passo, assim segue a vida. Que seria de mim, sem esta mulher que não me falta jamais.

terça-feira, 16 de julho de 2019

A bela professora ribeirinha



   O povoado exultava quando chegava março. Ainda era época das chuvas. O casario de madeira, com exceção da casa do prefeito, ficava encharcado depois das tempestades. A madeira absorvia muita umidade, as chuvas atravessavam os telhados improvisados de palha ou de telhas precárias produzidas na olaria da vila. Era preciso instalar os mosquiteiros por volta das quatro da tarde, fechar as janelas e as portas, porque os mosquitos vinham com toda a voracidade de algum ponto da floresta. Aproveitava-se a energia elétrica proveniente de um gerador que funcionava das seis da tarde às dez da noite: via-se televisão quando essa moda havia chegado recentemente na vila, escutava-se rádio, bebia-se refresco gelado. A vida era difícil. Mas ninguém era infeliz. Em março, entre os temporais, um raio de sol em forma humana chegava ao lugar. Era a bela professora ribeirinha, trazida de barco desde a capital.
    As crianças amavam aquela professora. Os adultos também. Ela vinha, ficava um tempo, ia embora, porque o ensino na vila era feito por rodízio com outros professores. Seu nome era Maria da Conceição. Ou Maria de Nazaré? Isso pouco importa agora. Ensinava um pouco de tudo para as crianças e os adolescentes: desde a escrever direito, segundo as regras ortográficas e exercitando a caligrafia, para que as palavras ficassem legíveis; até os mistérios da matemática e da física, dizendo coisas que, de início, pareciam difíceis, mas ela dava um jeito de tornar nítido o obscuro. Dava exemplos engraçados; chegava a dizer que a Terra circundava o Sol como se fosse uma borboleta voando quase num círculo, em torno de uma chama de lamparina; e acrescentava conceitos de atrito, velocidade, espaço, tempo, tantas coisas aquela professora ensinava. E, à noite, quando os mais velhos se animavam, ela aproveitava aquele pouco tempo de energia elétrica de gerador para alfabetizar os ribeirinhos que se interessavam em aprender o abecedário e a escrever seu nome. Ela lhes dizia que eles, com as palavras, poderiam colocar no papel tudo que lhes acontecia, como as caçadas e pescarias, as manhãs ensolaradas, as noites enluaradas, tudo que houvesse na memória. E os ribeirinhos de cabelos brancos se atreviam a aprender a colocar no papel a realidade de suas vidas.
   Quando chegava o final de semana, às vezes havia missa. Passava um padre de tempos em tempos; somente quando ela foi embora de vez é que chegaram os evangélicos; todos se juntavam na mesma casa que serviam de escola; a professora gostava de missa, era devota de Nossa Senhora e do Espírito Santo. Costumava dizer que, todas as vezes em que pensamentos ruins vinham à sua cabeça, ela fechava os olhos e rezava uma ave-maria, ou o terço todo, porque Nossa Senhora vinha na claridade do Espírito Santo e a aconchegava na serenidade.
    Outras vezes, ela participava dos mutirões feitos para se recuperar a escola ou a casa de alguém necessitado. Juntava-se naquela tarefa em que cada um fazia um pouco para melhorar a vida. Enquanto o prefeito não cumpria a promessa de construir a casa dos professores, ela dormia de favor na casa de cada um dos habitantes da vila. Era muito simples. Gostava de comer peixe, todo tipo de peixe, e de sobremesa melancia. À noite se contentava com mingau, uma caneca de café com leite, umas bolachas de água e sal. Ela só demonstrava medo quando anoitecia e precisava ir ao banheiro sempre situado no fundo dos quintais; não era da escuridão que tinha medo, mas sim de topar com alguma cobra no meio do caminho; certa vez, houve, sim, uma jiboia grande, ou uma sucuri enorme, hoje a memória já não deixa lembrar direito, que tentou engolir uma criança; a professora pedia que alguém fosse com ela, de lanterna acesa e terçado na mão.
    Certa vez, a professora ribeirinha foi embora e nunca mais retornou. Vieram outras professoras, mas ninguém no mundo se parecia com a devota de Nossa Senhora e do Espírito Santo; ninguém ensinava do jeito que ela o fazia, ninguém falava de borboletas para exemplificar a órbita da Terra em torno do Sol.
   Ninguém dava notícia dela. Ninguém soube mais dela. Dizia-se que havia viajado, porque tinha um espírito de aventura e saíra pelo mundo à busca de um leopardo branco, o amor que ela conheceu numa dessas epifanias de Nossa Senhora em seu coração. Desconfiava-se, no entanto, que talvez ela houvesse desaparecido no naufrágio daqueles barcos que a conduziam à vila. Tanto se esperou a sua volta em vão. Mas a sua ausência nunca se tornou um vazio sem fundo, um oco sem vida; ao contrário, ela ficou vivendo entre os ribeirinhos na forma de presença que jamais se dissipa. Por isso, até hoje, naqueles ermos amazônicos, ninguém se refere a ela por seu nome de batismo, mas sim como a professora Saudade, o sentimento que ela deixou no coração da gente. Tomara que aquela mulher, tão bonita de alma, tão formosa de rosto e corpo, tenha encontrado seu leopardo branco numa órbita de borboletas ao redor do Sol; que ela seja muito feliz é o que a vila ribeirinha lhe deseja. 

quinta-feira, 27 de junho de 2019

A menina da Escandinávia


     Todas as manhãs, quando era dezembro e as crianças não precisavam mais ir às aulas, graças ao início das férias escolares, o menino descia a escadaria de madeira limosa do cortiço e se dirigia ao encontro da sua avó que lavava roupa na beira do rio Negro. Magrinho, pés descalços, andava cuidadosamente por entre os detritos e se sentava sobre a balsa de sapopemba da avó. Não se falavam, não era preciso, bastava um olhar bem dentro dos olhos do outro e esboçar um sorriso. Ele se sentia acolhido por aquela mulher acostumada a trabalhar desde o romper do dia. E ela, por sua vez, dividia sua solidão com seu neto. De vez em quando, dizia a ele pra não ficar tanto tempo debaixo daquele sol, e se lembrava do avô dele, um italiano branquelo. "Tu nasceu com a cor da pele daquele homem!", sussurrava a avó. Mas o menino, quando a quentura começava a tomar conta do seu corpo, se jogava no rio e se misturava com a natureza. Não havia mais menino, não havia mais avó, não havia mais rio, não havia mais cortiço, não havia mais floresta. Tudo que havia era somente vida, presença de vida, naquelas manhãs claras e calorosas, embora fosse dezembro, o mês em que começavam a cair as chuvas torrenciais sobre a Amazônia.
     "Vem pra cá, menino!", chamava a avó, quando deixava de esfregar a roupa suja e descansava um pouco. Era a hora da passagem do garapeiro. Como era mesmo o nome do garapeiro? Que importa lembrar isso agora? Vinha lá de longe o homem da canoa que transportava garapa e bolos de vários sabores - milho, mandioca, coco. O menino subia na balsa, sentava-se ao lado da avó, recebia a garapa servida num copo improvisado de papelão e o pedaço de bolo. O garapeiro gostava de conversar. Falava das coisas que aconteciam do outro lado do rio. Às vezes, reclamava dos grandes navios que singravam o rio Negro, cortando o horizonte. Que máquinas possantes eram aquelas? De onde vinham e para onde iam?
     Certa vez, o garapeiro, que conhecia muitas palavras, não apenas do português brasileiro, mas também dos muitos vocabulários indígenas e até dos idiomas europeus, se atreveu a dizer para a avó analfabeta do menino: "Aquele lá, grandão, cheio de gente que fica olhando pra cá, veio da Escandinávia!". A avó gargalhou, zombeteira, que palavra horrível era aquela? Escandinávia? Mas o menino não riu. E fixou o olhar no horizonte, no imenso navio, cujo comandante se aproximara além da conta, chegando mais perto das margens, provocando o alvoroço das águas, o banzeiro forte que até parecia uma onda de mar.
     O menino se levantou e acenou. A avó o olhou e julgou que ele estivesse endoidecendo. Bem que ela receava alguma estranheza naquela criança, coisas de estar ora aqui neste mundo, ora do outro lado, no meio do invisível. Ou então do gosto que ele tinha pelas palavras. Ou o medo que dava nela quando ele parecia cair num abismo de silêncio, como se não fosse mais menino e houvesse se transformado em pensamento. "Tu está olhando o quê?"
     "Uma menina da Escandinávia!", respondeu o menino.
     O garapeiro riu da imaginação infantil. A avó aprofundou o seu medo de que a loucura viesse pegar seu neto. Que o invisível o levasse para longe dela. Nem o garapeiro, nem a avó, nenhum dos dois conseguiria entender o enigmático espírito daquele menino capaz de enxergar uma menina no convés do enorme e possante navio no horizonte. Havia, sim, para ele, bem dentro da sua imaginação poética, uma menina que o olhava desde o navio. Uma menina que, em instantes, iria embora para longe dele. Qual seria o seu nome? Qual seria a cor dos seus olhos? Quais seriam os seus gostos? Será que ela gostava de filmes de faroeste? Será que escutava os boleros que o pai dele gostava de ouvir na boemia? Que tipo de amor fertilizava o coração daquela menina que lhe respondeu o aceno? Talvez ela quisesse vir para a beira do rio, ficar perto dele, beber um copo de garapa e comer um pedaço de bolo de mandioca. Talvez ela quisesse brincar de mergulhar e nadar no rio de águas escuras. Talvez até ela tomasse coragem de pôr os pés na miséria em que ele vivia.
     O navio se foi e levou a menina da Escandinávia para muito longe. Deu vontade nele de ser um pássaro para voar atrás daquela máquina que singrava os rios e os mares. Que levava um amor que só poderia ser factível num poema. Ele fechou os olhos e se despediu da menina da Escandinávia. Deu um salto para dentro d'água e ficou brincando com os encantados do fundo do rio.
     Quando voltou à tona, sua avó trabalhava arduamente debaixo do sol causticante, o garapeiro havia seguido seu destino.
    Ele se lembrou da menina da Escandinávia, olhou o horizonte e disse que, em alguma época, no visível ou no invisível, ele a encontraria dentro de um aceno de mãos. Não mais um aceno de despedida, e sim um gesto de quem chega para ficar e nunca mais ir embora. Intuiu que aquela menina muito provavelmente não gostava dos filmes de faroeste, nem de boleros melodramáticos, nem de frivolidades, nem de coisas que não tivessem o sabor de poesia. Disse a si mesmo que outro seria o lugar de encontro com aquela bela menina que ele conservou na memória. Talvez nos Noturnos de Chopin, talvez nos Allegros de Vivaldi, talvez nas Danças Húngaras de Brahms, talvez numa taça de vinho suave, talvez num almoço preparado e servido por ela em louças finas, talvez nos muitos poemas que foram escritos para que o amor não fosse um sem-lugar no mundo.
     A menina da Escandinávia é um poema do menino ribeirinho! Nada se parece tanto com a liberdade quanto esse escrito feito de garapa e de ventos, de sonhos e de águas, de visível com transcendência. Todos os dias, lá vem o navio, de muito longe, trazendo uma mulher que já foi menina encantada por um menino ribeirinho. Ele a espera. Todos os dias. Embalado por Chopin, Vivaldi e Brahms.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

A Onça Pintada


     Eu me encontrava numa rede instalada num tapiri. Próximo a mim, o Seu Chiquinho, um mateiro que me ensinou muitas coisas da vida na floresta, também se embalava noutra rede. Havia escurecido cedo. A gente havia feito fogo para espantar os bichos de hábitos noturnos e para aquecer a carne seca misturada com farinha. Havia chovido a tarde inteira. Sentimos o frio precoce da umidade da selva, que esfria de outro jeito, primeiro como gota de suor do calor, depois como água de neblina que vai nos invadindo paulatinamente. Quando chega a madrugada, então, sobe a friagem da terra e trinca os ossos. Estávamos no Tapiri do Km 14 da Estrada do Puraquequara, uma vicinal de piçarra, perpendicular à rodovia que leva de Manaus a Itacoatiara e que, depois de uns quarenta quilômetros, termina no Lago Puraquequara, próximo ao rio Amazonas.
     Deitamos cedo. Cada um teve seu turno de manter o fogo aceso. Dormir era cochilar. A floresta fala durante a noite suas palavras de perigo. Não é como durante o dia, quando dá para ouvir a revoada de pássaros, e tudo parece ter a nitidez de exuberância exótica. Ao anoitecer, os bichos e os encantados se misturam com fantasmas. Seu Chiquinho segurava sua espingarda; eu, a pistola. Naquela noite prolongada escutamos aquele urro inconfundível. Um urro fugaz que logo se deixa tomar pelo silêncio. A fala da onça-pintada. O jaguar da Amazônia. Que sobe em árvores atrás da sua presa e pega jacaré na beira do lago. O felino mais belo que pode existir.
     O tempo passou. Ela não nos atacou. Talvez o fogo a tivesse afugentado, talvez porque não fosse do destino de ninguém morrer naquela noite, talvez por qualquer outro motivo que não interessa saber. Mas a onça se aproximou, sim, furtiva, esfomeada. Ela deve ter recuado e descido o socavão mais próximo, porque havia caça perto do buritizal e do igarapé onde muito bicho ia beber água.
     No dia seguinte, bem cedo, Seu Chiquinho e eu preparamos o café quase em silêncio, lembrando a onça. Cada um foi mais macho do que o outro e não revelou que havia sentido o medo que faz a gente tremer e mijar de pavor. Saímos pela estrada e vimos as pegadas da onça-pintada, nítidas ainda no barro umedecido, ora rastros de aproximação, ora de afastamento. Seu Chiquinho apontou o chão e nada disse. Segui ao lado dele, entramos na floresta, tínhamos coisa para fazer. Percorremos a trilha por quase uma hora. Seu Chiquinho, de tantos anos de caminhar na floresta e de perceber suas estranhezas, me disse que estávamos sendo seguidos. Olhamos pro alto do socavão e a vimos: lá em cima, majestosa, a onça-pintada; e cá embaixo, no fundo da grota, dois homens silenciados pela força mística daquele jaguar brasileiro. Ela fixou o olhar em nós, insinuou um urro e se afastou, desaparecendo por entre as galharias e a vegetação densa. Soube ali que talvez uma onça-pintada fosse a evolução da espécie humana: sua "racionalidade" era só instinto; se estivesse com fome, nos atacaria; mas, plenamente saciada, por que se lançaria ao ataque? Por que matar apenas pelo gosto de matar? Essa selvageria pertence ao humano tresloucado, não faz parte da alma da onça-pintada.

                                                                     *

     Muitos anos depois, quando meus cabelos já haviam embranquecidos e eu perdera o hábito de frequentar a selva, conheci, numa cidade da Amazônia, a mais bela cunhã-poranga que já vi, que já não era mais mocinha no seu desabrochar de mulher, mas, não obstante, chegando aos quarenta anos, apareceu, diante de mim, como a mais formosa amazônida que eu já vira. Ela olhava o rio, como se tivesse precisão de trazer para si as luzes do horizonte. Cheguei perto dela como se movido por um desses encantamentos que abalam os adolescentes. Nada falei. Mas ela me deu bom dia e me perguntou o nome, e me indagou ainda se eu estava visitando a cidade e se eu gostava da vista das águas, porque, em sua lógica, se ela amava tudo aquilo, como um forasteiro não poderia amar também?
    Eu disse o meu nome e acrescentei que também era amazônida, ela não estava vendo minha cara? "Só se for índio europeu, tua pele é branquinha demais". Rimos. "E seu nome?", indaguei. Ela me disse: Nari Kaikusi. E riu muito de mim quando eu falei que aquilo não era nome de gente. Mas ela insistiu em afirmar que este era seu nome verdadeiro, o nome da sua alma, e que Nari, na língua macuxi, quer dizer perigo, e que Kakusi, no mesmo idioma, significa onça. Ela me fez lembrar a noite em que uma onça-pintada esteve tão perto de mim e do Seu Chiquinho. "Te dou medo?", ela quis saber. Eu disse que não, e acrescentei que conhecia bem as onças-pintadas.
     Ela me disse, então, que na cidade usava outro nome, que não era tão exótica como queria parecer. Seus pais haviam escolhido para ela um dos nomes de Nossa Senhora: a do Perpétuo Socorro. Poderia ter sido qualquer outro nome, desde que fosse uma homenagem à Nossa Senhora, porque ela nascera em um dia em que a cidade inteira vibrava numa procissão em louvor à mãe do Cristo de Deus. Soube, pela sua mãe, quando já era menina, que naquele dia em que nasceu havia um pássaro ferido numa árvore da rua por onde passava a procissão. E que esse pássaro, até então incapaz de alçar voo, tão logo a enxergou no colo da mãe, em seu retorno da maternidade, deu um salto para o espaço e reconquistou sua liberdade de percorrer a vastidão do mundo. Os peregrinos cantavam: "Ave! Ave! Ave Maria! Ave! Ave! Ave Maria!". E sua mãe lhe dissera que ela se chamaria Maria do Perpétuo Socorro, e que proporcionaria bem-aventuranças para os desprivilegiados na pobreza, e que correria o mundo em peripécias de mulher valente feito onça-pintada, e que sua vida seria uma boa aventura no rumo da claridade do Espírito Santo. A sua mãe lhe pôs esse apelido de criança: onça-pintada.
     Eu lhe disse muitas coisas. Ela escutou com atenção minha história de sobressaltos. E gostou quando eu lhe declamei poemas, exaltando aquela pele morena, os cabelos negros, o rosto belo, os olhos alegres, o corpo de mulher mais lindo da Amazônia, os seios, a nudez, o modo de andar, o jeito decidido de ser; e também seu espírito livre, tão forte e ao mesmo tempo tão doce; e tudo nela que não se podia expressar em palavras, tudo mesmo, até o seu invisível, sua alma. Andamos de mãos dadas pela cidade, fomos a tantos lugares, e ela, mesmo sem ser uma beata porque em seu corpo pulsava o gosto pelo amor humano, fez questão de me levar a uma igreja de onde, segundo me disse, extraía toda sua força de viver feliz, apesar de tantos sonhos não efetivados: a Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Também afirmou que, além daquela igreja, só encontrava ânimo no Sagrado da floresta que se divisava ao longe, cada vez mais distante, porque a cidade se ampliava todos os dias na forma de uma clareira mais e mais expandida, levando para tão longe tudo o que sempre estivera tão perto. Aproximou-se de mim e me deu um beijo na boca, dizendo, em tom de brincadeira: "Onça-pintada ama o Poeta!". Retruquei que não era poeta, que eu já havia me esquecido de todas as regras da poética, mas ela insistiu em que, durante toda sua vida, jamais homem algum lhe dissera coisas tão bonitas e tão meigas, como se as palavras, na boca de um macho, fossem bailarinas a dançar um Noturno de Chopin.

                                                                              *

     Nunca mais vi o Seu Chiquinho. Quando eu o conheci e era seu discípulo na floresta, era um jovenzinho entusiasmado; e ele já era um senhor magrinho, de uns cinquenta e tantos anos na época; e, embora fosse resistente de andar dias na selva sem dar mostras de cansaço, talvez não fosse de durar para sempre na cidade, onde esses espíritos da mata perecem depressa com as doenças urbanas e a velhice precoce.
     Todas as vezes que vou à Amazônia, procuro o Seu Chiquinho.
     Silêncio. Talvez ele tenha ido embora viver na mata ou nos rios. Talvez seja só vento. Talvez seja a terra de onde a friagem sobe, de madrugada, para trincar os ossos dos vivos. Talvez tudo isso e, para além dessas possibilidades, seja ele um desses encantados que fertilizam minha memória.

                                                                             *

     Hoje me lembro de Nari Kaikusi. Maria do Perpétuo Socorro. A onça-pintada. A mulher mais bela que vi na Amazônia. Aquela que, repleta da força de Nossa Senhora - Ave, Maria! - e do Sagrado que se encontra por toda parte da floresta, libertou um pássaro ferido, que era, ao fim e ao cabo, um homem desamparado entre suas angústias. O Poeta voltou a sorrir. O Sol retomou o seu brilho de outrora. Ainda há uma história inconclusa que precisa seguir adiante. Um destino que falta ser consumado.
     Quando eu fecho os olhos e me transporto para aqueles rios e para aquelas florestas, penso com amor na Onça-Pintada. Em meus sonhos, ela urra de saudade e ganas de viver, a sua fala de mulher valente; eu me aconchego dentro dela, me abraço com ela como se a vida fosse terminar no instante seguinte e ela me sentisse como o poema de amor que mais ama escutar.
     Ah, minha onça-pintada, que saudade! 
 

quinta-feira, 23 de maio de 2019

A vida sempre se justifica por si mesma

    Muitas vezes me indaguei se haveria um instante em que a vida perderia todo o seu sentido de ser. Deparei com o primeiro problema para responder a essa pergunta: saber qual o sentido da vida. Tanto já se falou disso e tão pouco se pode dizer a esse respeito. De certo modo sabemos o sentido da vida, porém ignoramos como expressá-lo. Até porque quem sabe deveras essa resposta é a própria Vida, que se plasma em todos os viventes de qualquer natureza.
   Assim sendo, entre o nascer e o morrer, o sentido da vida se dá em nós quando simplesmente vivemos na liberdade de fazer aquilo com que estamos mais afinados. É uma forma autêntica de deixar a vida nos levar: que saibamos aproveitar a liberdade que ela nos concede para que liberemos uma identidade plena. Isso não significa viver ao deus-dará, como joguete ao vento, água de esgoto. Mas enquanto humano em plena liberdade, dono das próprias ventas, das próprias escolhas. Decidido.
Com efeito, cada um de nós pode ser um grande escritor, um grande astronauta, um grande algo qualquer. E essa grandeza pode estar nas coisas mais singelas, que menos chamam a atenção. A grandeza da simplicidade. A grandeza da inocência. A grandeza do inexprimível.
   Portanto, em sendo esse o sentido da vida, vivido e inexpressável, pude me voltar à questão anterior: se haveria um instante em que a vida perderia todo o seu sentido de ser. Aquele instante em que a gente diz, em desalento, que melhor mesmo é morrer. Que não vale a pena continuar, resistir, se encher de remédio, ser furado nas veias e drogado de tal modo que a vida seja retida.
   Haverá esse instante?
   Agora que estamos mais longevos, que até nos mantemos mais joviais e pujantes graças à indústria dos remédios, que chegamos a sonhar com a imortalidade se a ciência der um golpe de mestre na tal de morte, como dizer que há um instante em que a vida não se justifica mais? Todos queremos viver mais um instante, mesmo que seja na forma de cadáver ambulante. Ninguém quer lembrar sequer que todos os princípios tendem aos crepúsculos. Que não há como fugir daquilo que é por natureza. Que a morte é um mero completar de um destino. Que sempre foi assim e sempre vai ser. Que ontem foi o vizinho, que hoje foi um amigo ou um estranho, que amanhã será cada um de nós.
   Viver mais longamente nos dá a experiência de sentir a falência dos órgãos. Aquela mente brilhante de repente começa a se esquecer de tudo, a virar sombra. Aquele ente tão alegre, tão pleno, dançante feito bailarino, se torna triste, passivo, ausente. Aquele apetite e aquela sede mirram diante de um bom prato de comida e de um copo de água. Tudo passa. Tudo acaba. Menos nossa falta de resignação com o inexorável. Dói tudo no humano. Dói muito. A gente chora e imagina que a dor vai embora, que a existência será consubstanciada com o Eterno, a gente esperneia. Mas nada há o que fazer. A ciência não tem essa carta de baralho para vencer o perecível.
   Tempos atrás, numa emergência de hospital, uma amiga de andanças pelo mundo, em estado grave, segurou as minhas mãos e, retirando por segundos o tubo de respiração artificial, me suplicou, como se eu fosse um pequeno deus: "Humberto, eu não quero morrer! Eu não quero morrer!". Tão senil, idade tão avançada, o corpo todo comprometido, que eu poderia fazer naquela hora, se até mesmo o rezar com devoção hoje não produz mais qualquer tipo de milagre bíblico?
   Segurei suas mãos em silêncio. Meu abraço de solidariedade. Se for pra ir, que vá em paz. Se for pra ficar, que fique na serenidade. Que olhe tudo como se até a maior desventura fosse uma grande brincadeira. Deus não fala nessas horas.
   Deve haver algo além da imanência. Que valha a pena passar por isso aqui e ser recompensado depois. Ou talvez nada haja fora do imanente e todo o transcendente possível esteja aqui mesmo em nossos raros atos amorosos, gentis. Em qualquer dos casos, a vida sempre se justifica por si mesma. É uma impressão que sinto e que deve valer para alguma coisa. No mínimo para me sentir grato por estar vivo nas boas e nas más circunstâncias. Evoé!

terça-feira, 23 de abril de 2019

ROSALVO ACIOLI E CARLOS MOLITERNO: DOIS POETAS A CAMINHO DA PIÉRIA SOB O OLHAR GREGO DE RITA CODÁ



     Andamos robotizados no âmbito de um mundo tecnológico em que todas as coisas parecem haver se transformado em utensílios e no qual o próprio sentimento humano se molda sob a força dos algoritmos. A cada dia os nossos cálculos presunçosos buscam, de forma obstinada, medir e determinar a vida segundo uma subjetividade pragmática, lógica, científica e neurótica, numa tentativa de retirar da existência sua peculiaridade do imprevisível, do desamparo, da euforia, do medo, da própria mortalidade. Há um risco de que, em meio às turbulências contemporâneas, já não sejamos efetivamente humanos, não mais plasmados de carne e ossos, vísceras e espírito, porém anjos decaídos formatados por rebeldia, uniformidade e confusas fórmulas matemáticas. Vivemos sob a ameaça silenciosa e traiçoeira da aniquilação da nossa humanidade, o bem maior com que, desde sempre, nos movemos debaixo do Sol.
      Eis que, no entanto, em sentido redentor, manifesta-se um modo de ser oposto à automatização do homem e à deformidade de sua vida causada pelo excesso de técnica. Que não nega a força dos algoritmos. Que não desdenha da cibernética. Que não despreza a necessidade dos cálculos, prognósticos e previsões para o cotidiano. Que não desconsidera o valor dos utensílios. Que não rechaça o pragmático, o lógico, a tecnologia e sua matemática. Ao contrário: um modo de ser que, sem perder de vista a praticidade necessária à vida corriqueira, almeja devolver à existência algo esquecido no instante em que perdemos a possibilidade de sonhar: o arcaico milagroso, a época em que o caos originário adquiriu as formas e os nomes das coisas que vieram das sombras para o intenso da claridade do seu aparecer. Aquilo que, sob a força da gênese do Verbo, apareceu para existir em sua beleza e mortalidade, a existência finita dos homens e das coisas perecíveis, a transfiguração primordial do caos em linguagem poética, a vida precária e provisória consubstanciada com a imortalidade. Assim aprendemos a vencer a Morte: no dizer poético das Musas e nas suas peripécias contra o Esquecimento, quando, num enigmático, duplo e simultâneo acontecimento de apropriação, elas se apoderam do ente humano porque têm uma necessidade de se expressarem e porque, no mesmo instante, o homem precisa dessa expressão poética para suportar e reverenciar a precariedade e a finitude de sua própria vida. Em outras palavras, o fazer poético nos aparece como se fosse vereda a cruzar os sertões do mundo, no encalço da imortalidade, triunfando com as palavras sobre o Esquecimento. Afinal, o que é a Morte ante a Linguagem originária, senão o culminar histórico da vida do poeta que soube usar autenticamente sua liberdade criadora para configurar uma realidade imperecível?
   Assim nos diz Rita Codá, essa intérprete brilhante da Poesia, em sua perspectiva originariamente grega – ela, uma brasileira, nordestina, companheira inseparável de Hesíodo e Homero – ao recordar-nos, em seu livro Rosalvo Acioli e Carlos Moliterno: dois poetas a caminho da Piéria, que “mesmo na morada de Hades, aqueles que cultivam a poesia escaparão do anonimato e do esquecimento, ou seja, da lei da morte”. Sem dúvida alguma, o grande mérito da interpretação feita por Rita Codá se encontra na perspectiva da interpretação originária dos poemas de Inventário de cinzas e A ilha, livros que se fizeram escrever por intermédio desses dois grandes servos das Musas, aedos alagoanos, respectivamente, Rosalvo Acioli e Carlos Moliterno. Não é que a ensaísta desconsidere as teorias literárias e desconheça os rumos tomados pela poesia contemporânea. Mas sua ênfase não está na aplicação das teorias sobre os poemas, como se estes fossem meros objetos de um sujeito que os analisa friamente de acordo com essa ou aquela doutrina literária. Definitivamente, Rita Codá, com sua alma grega, lê e pensa os poemas com o olhar e o pensamento que enxergam o instante em que eles vieram do fundo do abismo e se desvelaram ao mundo como o mais originário que poderia emergir das entranhas das Musas. Ela fala desde o lugar do Originário, definido por Heidegger, no primeiro parágrafo de sua obra A origem da obra de arte: “aquilo a partir de onde e através do que algo é o que ele é e como ele é; a isto o que algo é, como ele é, chamamos sua essência”. Portanto, a proveniência da essência dos poemas de Rosalvo e Moliterno pode ser enxergada e experimentada na interpretação primorosa de Rita Codá. E nós, seus leitores, com o suporte dessa grande Mestra que emprega a linguagem não como mera comunicação, mas sim como o dizer do essencial, recebemos a dádiva de viver as circunstâncias em que se deu a gênese da notável poesia desses dois poetas alagoanos.
   Vontade sinto de falar dos poemas de Rosalvo Acioli e Carlos Moliterno. São grandiosos, magníficos. Mas essa tarefa, neste caso, coube à pena de Rita Codá: bravo, Mestra, bravo! Somos todos imortais, nós, os que fazemos e os que amamos a Poesia. Não morremos. As Musas nos poupam da Aniquilação. As palavras prevalecem enquanto vida.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Dona Ana sempre amada

Dona Ana sempre amada

     Ainda faltavam seis dias para que ela completasse dezessete anos. Pois no sábado, dez de agosto de 1957, ela sentiu as dores do parto logo depois do almoço. Foi levada às pressas para a Santa Casa de Misericórdia. Ali, faltando quinze minutos para as cinco da tarde, deu à luz seu primeiro filho, o primogênito dos nove que viriam mais tarde. Não sei como os astros se posicionavam no céu da Amazônia naquele instante. Tampouco se uma onça ou o Mapinguari urraram no fundo da floresta. Ou se os ventos moveram com mais força as águas do rio Negro. Até hoje ignoro se as grandiosidades e as pequenezes do nosso destino já se encontram presentes nessa primeira lufada de ar que penetra com força nos pulmões das crianças e delas arranca um choro de espanto. Eu era apenas um menino muito branquinho que havia brotado no meio da oca.
     Deixo a memória correr no rumo daquela época. A gente morava no final da Avenida Sete de Setembro, numa estância (nosso modo de dizer a palavra cortiço) que começava numa calçada esburacada e terminava numa escada de madeira encardida com vista para o rio Negro. Morava-se em quartos e porões em condições precárias. Havia um corredor úmido, de paredes verdes de musgo, que nos conduzia para o barranco do rio, depois de passar pelo pátio das latrinas coletivas.
     Desde pequena, minha mãe era trabalhadeira. Junto com a tia Rosa, sua irmã mais velha, ajudava a vovó Paula na lavagem de roupa pra fora. A vovó se sentava na balsa de sapopemba, debaixo de sol forte, e lavava a roupa das famílias de posse daquela provinciana Manaus. Mamãe e a tia Rosa cuidavam dos varais e quaravam os lençóis brancos. Daquele pedacinho de terra, entre o rio e o cortiço, cuidado por aquelas mulheres fortes e imbatíveis, vinha o pão de cada dia. Elas, mais tarde, passariam aquela roupa toda a ferro de carvão. E aos sábados, mamãe botava o tabuleiro de roupa na cabeça e ia embora para entregar às madames a roupa cheirosa da semana. E para trazer as trouxas de roupa suja.
     Certo dia chegaram ao cortiço uns soldados do quartel do Exército da ilha de São Vicente. Entre eles vinha um cabo de nome Humberto e que era conhecido como Ticá, porque gostava muito de beber um guaraná com esse nome. Era um moço humilde, gentil, galanteador. Conquistou a mamãe, que ainda pouco mais que uma criança foi dividir a vida com ele. Ela ignorava que ele também gostava muitíssimo de beber cerveja e arrastar os pés no Cabaré do Chinelo. Deu a ele muitos filhos e o perdoou incontáveis vezes por tantos desatinos. Cuidou dele até o fim.
     Hoje a mamãe enfrenta a ameaça do escuro do Alzheimer. Às vezes, ela se perde nas deslembranças, nos pesadelos, nos delírios, nas incertezas. Mas se reencontra com a lucidez quando suas crianças de antigamente, agora todas transformadas em gente madura, chegam à sua casa com os netos e bisnetos. Ela pede música e alegria, que já está exausta da melancolia e da solidão. Quando se perde a memória e o rumo das ventas, mergulha-se inevitavelmente num abismo desprovido de cantorias. Este é o caso dela. Ah se Deus pudesse quarar minha mãe num varal estendido às margens do rio Negro, ah quem dera ela pudesse receber tanto sol divino que desmanchasse a escuridão do Alzheimer e o esquecimento de si mesma. Mas as águas do rio Negro não são as águas de Betesda, e é preciso a gente se conformar com o desamparo debaixo dos céus.
     Que amanhã, segunda-feira,  faça um dia muito radiante em Manaus. Que a família se reúna em algum instante do dia. Que corra uma brisa fresca durante a tarde. Que à noite faça lua cheia exuberante sobre o rio Negro. Eu não vou estar presente. Ainda tenho coisas para fazer longe de lá, eu que me tornei estrangeiro dentro do meu próprio país e fui viver noutras terras. Mas sei que vou retornar para as grotas e os igarapés das minhas florestas. Vai chegar o dia em que meu exílio já não fará mais sentido. Então poderei me juntar, em definitivo, aos meus antepassados, aos meus mortos, aos meus vivos. Enquanto isso, brava dona Ana, mulher a quem devo a vida, por favor, venha um pouquinho para fora das sombras. De longe fico amando a senhora com todas as minhas forças, com toda minha virilidade, com toda minha inocência. Lá no fundo de mim existe um menino branquinho, meio espantado com a vida, que até hoje se lembra, com saudade, do seu aconchego.