terça-feira, 16 de julho de 2019

A bela professora ribeirinha



   O povoado exultava quando chegava março. Ainda era época das chuvas. O casario de madeira, com exceção da casa do prefeito, ficava encharcado depois das tempestades. A madeira absorvia muita umidade, as chuvas atravessavam os telhados improvisados de palha ou de telhas precárias produzidas na olaria da vila. Era preciso instalar os mosquiteiros por volta das quatro da tarde, fechar as janelas e as portas, porque os mosquitos vinham com toda a voracidade de algum ponto da floresta. Aproveitava-se a energia elétrica proveniente de um gerador que funcionava das seis da tarde às dez da noite: via-se televisão quando essa moda havia chegado recentemente na vila, escutava-se rádio, bebia-se refresco gelado. A vida era difícil. Mas ninguém era infeliz. Em março, entre os temporais, um raio de sol em forma humana chegava ao lugar. Era a bela professora ribeirinha, trazida de barco desde a capital.
    As crianças amavam aquela professora. Os adultos também. Ela vinha, ficava um tempo, ia embora, porque o ensino na vila era feito por rodízio com outros professores. Seu nome era Maria da Conceição. Ou Maria de Nazaré? Isso pouco importa agora. Ensinava um pouco de tudo para as crianças e os adolescentes: desde a escrever direito, segundo as regras ortográficas e exercitando a caligrafia, para que as palavras ficassem legíveis; até os mistérios da matemática e da física, dizendo coisas que, de início, pareciam difíceis, mas ela dava um jeito de tornar nítido o obscuro. Dava exemplos engraçados; chegava a dizer que a Terra circundava o Sol como se fosse uma borboleta voando quase num círculo, em torno de uma chama de lamparina; e acrescentava conceitos de atrito, velocidade, espaço, tempo, tantas coisas aquela professora ensinava. E, à noite, quando os mais velhos se animavam, ela aproveitava aquele pouco tempo de energia elétrica de gerador para alfabetizar os ribeirinhos que se interessavam em aprender o abecedário e a escrever seu nome. Ela lhes dizia que eles, com as palavras, poderiam colocar no papel tudo que lhes acontecia, como as caçadas e pescarias, as manhãs ensolaradas, as noites enluaradas, tudo que houvesse na memória. E os ribeirinhos de cabelos brancos se atreviam a aprender a colocar no papel a realidade de suas vidas.
   Quando chegava o final de semana, às vezes havia missa. Passava um padre de tempos em tempos; somente quando ela foi embora de vez é que chegaram os evangélicos; todos se juntavam na mesma casa que serviam de escola; a professora gostava de missa, era devota de Nossa Senhora e do Espírito Santo. Costumava dizer que, todas as vezes em que pensamentos ruins vinham à sua cabeça, ela fechava os olhos e rezava uma ave-maria, ou o terço todo, porque Nossa Senhora vinha na claridade do Espírito Santo e a aconchegava na serenidade.
    Outras vezes, ela participava dos mutirões feitos para se recuperar a escola ou a casa de alguém necessitado. Juntava-se naquela tarefa em que cada um fazia um pouco para melhorar a vida. Enquanto o prefeito não cumpria a promessa de construir a casa dos professores, ela dormia de favor na casa de cada um dos habitantes da vila. Era muito simples. Gostava de comer peixe, todo tipo de peixe, e de sobremesa melancia. À noite se contentava com mingau, uma caneca de café com leite, umas bolachas de água e sal. Ela só demonstrava medo quando anoitecia e precisava ir ao banheiro sempre situado no fundo dos quintais; não era da escuridão que tinha medo, mas sim de topar com alguma cobra no meio do caminho; certa vez, houve, sim, uma jiboia grande, ou uma sucuri enorme, hoje a memória já não deixa lembrar direito, que tentou engolir uma criança; a professora pedia que alguém fosse com ela, de lanterna acesa e terçado na mão.
    Certa vez, a professora ribeirinha foi embora e nunca mais retornou. Vieram outras professoras, mas ninguém no mundo se parecia com a devota de Nossa Senhora e do Espírito Santo; ninguém ensinava do jeito que ela o fazia, ninguém falava de borboletas para exemplificar a órbita da Terra em torno do Sol.
   Ninguém dava notícia dela. Ninguém soube mais dela. Dizia-se que havia viajado, porque tinha um espírito de aventura e saíra pelo mundo à busca de um leopardo branco, o amor que ela conheceu numa dessas epifanias de Nossa Senhora em seu coração. Desconfiava-se, no entanto, que talvez ela houvesse desaparecido no naufrágio daqueles barcos que a conduziam à vila. Tanto se esperou a sua volta em vão. Mas a sua ausência nunca se tornou um vazio sem fundo, um oco sem vida; ao contrário, ela ficou vivendo entre os ribeirinhos na forma de presença que jamais se dissipa. Por isso, até hoje, naqueles ermos amazônicos, ninguém se refere a ela por seu nome de batismo, mas sim como a professora Saudade, o sentimento que ela deixou no coração da gente. Tomara que aquela mulher, tão bonita de alma, tão formosa de rosto e corpo, tenha encontrado seu leopardo branco numa órbita de borboletas ao redor do Sol; que ela seja muito feliz é o que a vila ribeirinha lhe deseja.