sábado, 11 de novembro de 2017

DIA SANTO

                                                      Capítulo 1 


       Nasci e vivi muito tempo na Amazônia. Criança de brincar nos beiradões dos rios lamacentos, de carregar as bacias de roupa de minha avó que labutava sobre balsas de sapopemba, de me esconder do meu pai me chamando para beber purgantes contra todo tipo de verme e cujo gosto intragável fui incapaz de esquecer. Aprendi a nadar nos igarapés, vivi em cortiços em minha primeira infância, ouvi muitas histórias de visagens e presumo ter visto fantasmas confabulando na solidão das calçadas. Eu e uma porção de crianças costumávamos passar as manhãs, enegrecidos pelo sol amazônico, a ver as embarcações passando ao largo, no rio Negro, sem preocupação com a vida ou a morte.
     Lembro-me desse tempo com certa tristeza. Deparo sempre com um menino magro à beira do rio, um espectro que insiste em cruzar os séculos na espera de um milagre. Ele tem uma lágrima permanentemente no rosto. Tem ainda a minha cara e, quando fala, usa também minha voz. Esse menino de olhar opaco vive no arco-íris por onde caminho para reencontrar os meus ancestrais.
     Vivi em remotos lugares onde se delineiam as nossas fronteiras setentrionais, comendo a poeira do seu verão quase eterno ou cheirando a umidade dos ventos quando vinham as chuvas do outro lado do rio. Fui uma criança indefesa e tímida, o próprio desamparo, a figura patética do menino ribeirinho chupando os dedos na beira do rio, a barriga graúda dos vermes, magricela da própria natureza humana, amedrontado diante dos estranhos. Apesar disso, é desse tempo na Amazônia que me vem a lembrança de liberdade, aquela vida de andar nu, vendo o sol nascer, tomando banho de chuva, dormindo com os pássaros. 
     Cresci na Amazônia e vi as suas cidades crescerem, as pessoas vindas de todas as partes chegarem, as florestas se encolherem sobre si próprias, até o seu provincianismo permutar-se por novos hábitos e adquirir todas as semelhanças do mundo além dos rios e da mata. Ainda hoje, muitos meninos amazônidas correm do purgante do pai e amam a procissão dos barcos carregando esperanças rio acima, rio abaixo. Pois lá, na imensidão do remoto, onde não é possível valer-se de mapas e onde tudo parece inexequível, encontra-se a mística vila chamada Maciriguei, cuja gente louva o Deus cristão e as divindades da floresta. Nenhum rosto é desconhecido entre os habitantes nem existem histórias alheias secretas. A história de Maciriguei parece uma fábula. Um dia jurei a mim mesmo que escreveria um livro sobre esse lugar, sua gente, seus amores, seus crimes, sua grandeza e sua miséria. Hoje cumpro a palavra empenhada.

                                                                 *

       Tudo começou faz muito tempo. Assim me disse a vó Paula, com seus olhos pequenos e fulminantes como pirilampos, nas noites em que nos sentávamos na varanda de casa, um para falar, outro para ouvir. Os olhos dela brilhavam na névoa da noite. A nossa conversa abafava o eco das lástimas das almas fora de casa. Sem nunca se cansar, ela me contava as histórias dos seringais onde nascera e crescera. As histórias de vivos e mortos tão impossíveis de esquecer. Eu a ouvia até sentir vontade de dormir. Ela me colocava na rede e cantava nos meus ouvidos uma modinha de criança, imitando um pássaro. Fiquei com essa voz melodiosa na memória. Talvez por isso o meu livro seja um pedaço da vida dessa filha de índios, da luz dos seus olhos dissolvendo a sombra de noites antigas e de sua voz que mais parecia o canto de um pintassilgo no cair da tarde.

                                                                 *

       Era uma vez, faz muito tempo, um espanhol chamado Francisco Orellana, que singrou, com suas caravelas, um grande e desconhecido rio, no século XVI, buscando terras novas para descobrir. Numa noite daquela época, ele ordenou o atracamento dos barcos o mais próximo das margens. Durante a madrugada, os marujos foram atacados por centenas de mulheres guerreiras, que haviam se aproximado, silenciosamente, em suas canoas, aproveitando-se da escuridão. A maior parte dos homens dormia e apenas uma sentinela sonolenta e embriagada se mantinha no seu posto de vigilância. Foi um ataque brutal e sangrento.
     No fim da batalha, Orellana, caído no assoalho da caravela e escondido entre os cadáveres, ainda as viu retornando à floresta. Elas levavam alguns homens vivos como troféus de guerra. Depois de contemplar aquelas guerreiras iluminadas pela lua, Orellana chamou-as de amazonas e deu ordens para que as velas fossem içadas imediatamente. Rezou pelos mortos e foi contar a história da batalha aos seus conterrâneos.

                                                                  *

       Infinidade de anos depois, na metade do século XIX, na mesma época em que a pequena cidade de Barra do Rio Negro mudou de nome para Manaus, concebeu-se no mundo o processo de vulcanização da borracha. Europeus, americanos, nordestinos e nativos, gente de todos os lugares, chegaram aos montes nos seringais e fizeram uma parte da história do Amazonas. Todos queriam enriquecer com a borracha. 
      Esse capítulo histórico do Amazonas durou algumas décadas, o suficiente para produzir cidades com feições europeias e germinar uma raça de índios morenos de olhos verdes e europeus branquelas de olhos amendoados. Nos confins dos seringais, durante a extração da borracha, homens e mulheres, falando entre si nos mais diversos idiomas, ainda arrumavam tempo para o amor e para fazer filhos.
      A tragédia veio em 1866 com a abertura dos portos amazônicos ao mundo. Dez anos depois, setenta mil sementes de seringueiras foram roubadas para o estrangeiro. Trinta anos mais tarde, as árvores asiáticas, das possessões inglesas na Malásia, deram uma seiva mais viscosa e de melhor qualidade do que a amazonense. Houve então uma premonição de que o sonho tinha chegado ao fim.
      Com a depressão de 1913, a quimera amazônica se reduziu a nada. Pareciam sem vida os imponentes prédios erguidos com o dinheiro da borracha. No calor do trópico, movia-se um povo abatido, empurrado para o esquecimento. Tentou-se ainda o desespero, e todos acorreram aos seringais para sugar inutilmente as árvores combalidas. Depois de muitas tentativas e centenas de madrugadas, os soldados da borracha renderam-se ao desastre. Morreu-se inutilmente de pânico e malária. Um lamento de infortúnio se espalhou pela floresta. Os seringueiros abandonavam as tralhas de trabalho e cruzavam a selva pedindo clemência às divindades da natureza. A avó Paula me disse: “Eu nunca esqueci o desespero daqueles homens e a choradeira das mulheres correndo atrás deles...”.
      Por muito tempo, o insignificante Amazonas sobreviveu graças à prática de uma agricultura de sustento. Ali eu estive, testemunhando as amarguras dos amigos e desafetos. Vi a grandeza de homens oferecendo a própria vida pela sobrevivência da família. Vi as disputas a faca entre eles quando queriam a mesma mulher. Vi a paixão e a indecência. Num daqueles dias, deparei com uma menina de dez anos de idade, que tinha por costume se oferecer aos estranhos recém-chegados: “Pelo dinheiro que o senhor puder me dar, posso lhe chupar o pau!”. 
     No relato da avó Paula, essa menina passava o dia inteiro ajoelhada diante dos bêbados. Fatigada, depois de ganhar algumas moedas, ela se levantava depressa e saía correndo no rumo do rio para lavar a boca e livrar-se do pecado. Eu perguntei muitas vezes à minha avó:
- O que aconteceu com ela?
- Parece que virou puta...
      Dessa menina, desses homens e dessas mulheres pertence a história que vou contar. Faço-o com a esperança de que essas peripécias sejam depois narradas, daqui a uma centena de anos, por avôs e avós rodeadas de netos.
     Façamos de conta que é noite e muitas estrelas cadentes riscam o céu. Tragam a cadeira de embalo para a calçada e me escutem. Uma frágil luz de lamparina dissolve a escuridão. Prestem atenção.

(Continuação......)

(Se este texto lhe despertou algum interesse, fica o convite para que conheça o meu romance Dia Santo, premiado pela Academia Brasileira de Letras, e publicado, em quarta edição, pela editora Novo Século.)


Nenhum comentário:

Postar um comentário