terça-feira, 23 de junho de 2015

As lembranças da professora de grego

CRÔNICAS E MEMÓRIAS DA CALÇADA: reminiscências de Rita Codá

            Insurgente contra a mortalidade, mas não a ponto de rebelar-se diante do modo de a vida se pôr e se esvair. Assim é Rita Codá, com suas crônicas e reminiscências, disposta a confrontar-se com o esquecimento, a resistir à fugacidade das coisas, a recriar mundos sumidos no tempo. Nada se perde em sua memória, nada se deixa para trás, nada perde o gosto sutil da saudade. Sua arma de lembrar é simples – a narrativa, com a qual, insistentemente, palavra por palavra, faz sobreviver lembranças, reinstaura realidades perdidas, revigora destinos consumados e clareia as sombras que costumam engolir os mortos. Seu livro, inevitavelmente, nos remete à fala de Édipo diante de Teseu (versos 607-609 de Édipo em Colono), que ela mesma traduziu no seu belo livro de estreia, Epitáfios Gregos: “os deuses são os únicos a quem não ocorre nem a velhice nem a morte, mas o tempo soberano todas as outras coisas aniquila”. E, também, com suas crônicas, numa luta obstinada contra a aniquilação, Rita Codá nos traz a riqueza do folclore brasileiro, relatando as peripécias de fantasmas em lendas que se mesclam com cirandas e cantorias de gente humilde. A cronista louva a vida que antigamente era boa de viver e hoje é boa de lembrar.
            A contemporaneidade tecnológica desorienta o homem, ao automatizar as multidões alvoroçadas e opor-se ao silêncio. Já não se escuta o que vem dos mistérios. Mesmo nas pequenas cidades do interior, o dito progresso levou embora certo modo de viver que priorizava a simplicidade e o humano. Há dissonâncias entre a tecnologia e o poético. Rita Codá, então, se encarrega de conciliar essa desarmonia, ao retomar as vidas e as histórias que parecem só encontrar guarida no imaginário. Fala das almas se redimindo em penitências nos dias seguidos à morte, da luta que travam para sair da escuridão, dos pactos feitos com os vivos em torno de um galo preto e uma botija com dinheiro. Lembra a coragem de José Codá e Maria Rosa no enfrentamento com vândalos revolucionários em 1930, jagunços violentos e armados por latifundiários. Ri e faz rir com as crianças que brincam com ximbras – bolas de gude, como se diz em Pontal da Barra – e meninos que se espantam, debaixo das saias de uma mulher sem calçola, e descobrem que dona Paulina tem “um siri com barba colada” entre as pernas. Conta, feito uma avó em torno da fogueira, os acontecimentos de um casarão mal-assombrado, as crenças nas orações contra as almas errantes. Lamenta, com nostalgia, o desaparecimento de certos lugares em que a vida daquele tempo palpitava e que depois a urbanização tratou de suprimir, como o casarão dos fantasmas que virou primeiramente quartel de Marinha e depois órgão público. Comove-se e faz comover ao relatar as brincadeiras do irmão caçula, Carlos Virgínio, dado a assustar os irmãos se fazendo de assombração à noite. E investiga a origem do nome Codá, com a perspicácia de quem quer reencontrar a força remota das origens da família.
Trata-se de uma tentativa do poético de restaurar o humano no mundo da técnica excessiva. Este é o grande mérito do esforço literário de Rita Codá em Crônicas e Memórias da Calçada. Que cada um de nós se atreva a acompanhá-la nessas veredas da saudade. É preciso coração simples para tanto.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

A insistência em compreender (ou desistência)

O passar da vida nos dá a impressão de que, por algum mecanismo não muito claro ainda, todas as coisas vão e retornam sempre; em outras palavras, vê-se o mesmo filme da existência, mesmo que num remake pasteurizado.
É o que tenho constatado nesses dias de outono, ao caminhar tarde da noite pela rua Piabanha, nesta Petrópolis que ora reluz com suas manhãs claras de sol, ora se esconde na vastidão da neblina: a vida de ontem volta permanentemente como vida de hoje. Nem falo das auroras e dos poentes, que sempre estiveram e vão estar lá no horizonte; eu falo da repetição das coisas enquanto a gente corre e se perde em tentativas vãs de tocar esses horizontes que se alargam cada vez mais para tão longe.
Noutra época, depois que a Europa silenciou seus canhões e tratou de cuidar de suas feridas e ruínas, fui menino latino-americano na Guerra Fria; era impossível para a criança compreender aquelas manchetes de jornal dando por certo o holocausto nuclear, pois toda a seriedade infantil se concentrava exclusivamente na magia dos brinquedos e em jogar bola nos terrenos baldios.
E quando me tornei adolescente latino-americano na Guerra Fria, também era impossível compreender as cisões internas do país, a disputa pela primazia da visão de mundo mais correta, a liberdade usada como peça de retórica do totalitarismo multifacetado, o risco da aniquilação nuclear substituído pelos conflitos de baixa intensidade (guerrilhas e contraguerrilhas), as ideologias a levantar muros entre os vizinhos de porta, todas aquelas batalhas que hoje parecem ter sido em vão, sem sentido.
E, mais tarde, adulto latino-americano no pós-Guerra Fria, continuou a ser impossível compreender   o condicionamento da vida pela economia globalizante, que passou até mesmo a criar todas as necessidades humanas, inclusive as que são desnecessárias; vive-se como escravo sob a força motriz do capitalismo - o consumo. Não bastasse isso, quem pode viver com lucidez sob o flagelo do terrorismo e da violência que detona as cidades no mundo inteiro? A guerra agora é o cotidiano trivial, tão perto e tão dentro da gente, neste em vão que se repete indefinidamente,
A vida civilizada é um horizonte muito longínquo. Como homem globalizado, tento compreender os sintomas da contemporaneidade doente, o desespero humano, os artifícios de se viver drogado para suportar a vida destituída da inocência, a vida dos remédios tarja preta, a vida das drogas marginais, a vida de promiscuidade e aberrações, a vida finita de tédio e medo.
Levaria horas tentando compreender o humano, mas hoje novamente a neblina chegou mais cedo na cidade friorenta; preguiça de pensar, fecho então a janela, não deixo o mundo se apossar de mim. O pensamento fica lá fora. Outro dia, então, deixo para outro dia a insistência em compreender...

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Essa coisa de imensidão

Diz-se que o ontem deve ficar para lá e que para cá só tem lugar o hoje; não é bem assim, porque mal começamos a falar do agora ficamos com a impressão de que as palavras se derretem e correm para longe, imitando os rios desassossegados (que são, a um só tempo, água de nascente, água de correr em leito, água de morrer na foz); estamos sempre falando daquilo que nos escapa e talvez seja por isso que, rebeldes contra a vida que jamais fica e que só pode ser vivida enquanto passa, tenhamos criado esse artifício de lembrar, essa mania incorrigível de sentir saudade.
Como ficam dentro de nós o outrora, o hoje, o amanhã, que são no fundo a mesma coisa? Como ser sendo passageiro, impermanente?
...
Talvez ser como o rio, que não distingue dentro de si os diversos tipos de água, pois esse hábito de nomear, classificar, catalogar, valorar, isso vem de uma parte bem específica do homem, aquela que não sabe ser rio.
O rio é coisa muito simples; não é rio principal ou afluente, não está à margem direita ou à esquerda, não contém minerais, hidrogênio, oxigênio, não alimenta povoados e hidrelétricas, não seca nas estiagens prolongadas, não pinga das torneiras e não sacia a sede nem se presta para lavar roupa; o rio é outra coisa... (Que coisa? A vastidão!)
...
Lá do fundo da nascente está vindo a água de brotação; quando brota, ainda que sob o disfarce de outro tipo de água, nunca engana os olhos muito atentos: é a mesma água-bailarina que se dispersa pelos caminhos em sua vontade de provar o gosto das terras e permear os mundos; e é também a mesma água já impotente que, depois de tanto percorrer as ribanceiras e as planícies, se aquieta cheia de reumatismo e se submete ao destino de ser água de foz de rio, aquela que deixa de ser rio porque essa condição de rio não lhe é mais necessária.
Trata-se daquela água que vai para a imensidão do mar, porque de lá talvez ela tenha vindo - sim, a imensidão parece ser o destino da água de nascente, da água-bailarina, da água de foz de rio...
...deve ser assim a coisa que permanece, a única coisa duradoura, suponho que seja assim a vida, essa nossa vastidão possível!
...
Mais tarde, o mar devolve tudo que acolheu em seu imenso, e as águas devolvidas logo se transformam em nuvens e vão chover nas cabeceiras, infiltrando-se na terra e nos montes, com aquela força de aparecer outra vez como água de nascente e se transformar em rio, em vida, em sagrado; tudo é assim, terrivelmente indizível e inocente - uma inocência pirracenta captada apenas pelos espíritos dóceis e avessa à presunção da certeza científica.
...
Estou pensando essas tolices depois de caminhar pelas ruas da cidade e não encontrar mais os que já se foram para além da foz do rio; doeu muito a ausência daqueles a quem não posso mais abraçar; e foi com uma sensação indescritível de pequenez que experimentei, por frações de segundos, essa coisa de imensidão...
...isso me assustou muito, estar diante do enigma indecifrável: o de viver para além da lucidez...
...
...Outro dia, quem sabe, eu me arrisco a pensar sobre a imensidão; talvez nunca isso venha a ocorrer, porque para pensá-la é preciso ser acolhido e transformado por ela em toda a sua pungência, deixar de ser homem porque esta condição não será mais necessária; serei somente vastidão...
...(E vastidão não pensa, não sente, não fala! Ela é todo pensamento, todo sentimento, toda fala! Em si e por si!)  

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O sol das Agulhas Negras


Dia friorento. A cidade dentro da neblina. Desde ontem à tarde. Que tarde chuvosa, que domingo sem sol. Choveu demasiadamente à noite. Pelo menos em minha rua. Os gatos se recolheram. Idem os cachorros. Não houve latidos durante a madrugada. Nem presumi haver escutado o caminhar dos felinos por sobre o telhado. Fez bastante silêncio.
E apesar dos carros que, desde bem cedo, costumam formar fileiras na rua em dias de chuva, apesar deles e de tantas outras coisas, ainda continuou a fazer silêncio na manhã. Isso não me deixa triste. Talvez introspectivo, sim; triste, não; a melancolia é somente um instante prolongado de sombra em meio aos outros instantes de esplendor na vida. Como negar que também gosto de Petrópolis em seu modo de ser típico de cidade na montanha? Chuvas contínuas, zunidos de vento, neblinas espessas, paralelepípedos úmidos. Lá dentro há um sol, sempre há um sol, que às vezes desponta e nos dá dias claros, reluzentes. Este mesmo sol, outras vezes, permanece escondido e só reaparece quando a memória desembaça seus olhos.
É o sol de que me lembro agora. Não o sol que ainda vai despontar em Petrópolis talvez amanhã. Mas o sol de outrora, de quando eu era pouco mais que um menino vindo de longe. Era sábado. Havia chovido a semana inteira em Resende. Mas o sol reaparecera no sábado. Eu estava no meio de um pátio, entre os meus colegas, todos esperando o café da manhã. Cercados por um prédio imponente e sua imensa história. De repente, fomos surpreendidos pelo horizonte. Olhamos todos ao longe. O clarão imenso sobre o pico das Agulhas Negras. Jamais vou esquecer aquelas montanhas. Nem os sonhos brotados dentro de mim naquela hora. Eu era apenas pouco mais que um menino vindo de longe, acostumado com planícies, florestas, rios imensos. Eu não conhecia as montanhas e seus contornos enigmáticos. Depois é que fui me tornar íntimo delas. Da Serra do Lenheiro em São João del Rey e da Cordilheira dos Andes no Chile. Vim então envelhecer na Serra do Mar nesta cidade onde há uma catedral gótica, de cujos sinos se expande o sagrado.
Faz frio hoje, densa é a neblina, mas aquele sol das Agulhas Negras me joga no mundo e me desafia a decifrar os enigmas. Pode ser que, depois da morte, não haja nem claridade nem treva, nem lugar algum; pode ser assim e pode ser o contrário. Que importa isso? Durar ou dissipar. Isso é o de menos. O sol das Agulhas Negras é para sempre enquanto for lembrado. Quem há de morrer no vigor da memória resistente?