sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Diário de Resistência


1.

      Minha rua se faz silenciosa depois de certa hora. Tarde da noite. De vez em quando, passa alguém vindo sei lá de onde. Às vezes, um homem trôpego e tardio, que fala sozinho, em sua tentativa débil de recuperar o caminho de casa. Outras vezes, sombras, muitas sombras, que podem ser reflexos de gatos e cachorros saltando sobre os muros mal-iluminados pela luz fosca dos postes, ou qualquer coisa semelhante a isso: fantasmas perdidos. A minha insônia absorve todos os ruídos e movimentos da escuridão. Lá fora, os vultos extraviados, o zunido do vento, os miados dos gatos no fundo dos becos, os latidos incessantes dos cachorros, a madrugada; e aqui, dentro de mim, o medo exagerado. Estou assim desde que fiquei doente. Degenero.
      Sinto medo do escuro completo e de nunca mais amanhecer. Venho escurecendo faz tempo. A lucidez cada vez mais desaparece na demência. Às vezes, movo com dificuldade os braços e as pernas, sem mais a vitalidade dos músculos. Meus braços “dançam”, como bailarinos indomáveis numa ópera de guerra: movimentos involuntários, loucos, rápidos, sem eira nem beira, para cima, para baixo, para os lados, tremedeira que me abala os nervos, parece que vou explodir; e aí me olho no espelho, e vejo caretas, muitas caretas, e tiques, muitos tiques. Tento gritar para me livrar da opressão no peito, mas o que sai da boca é um som pastoso, rouco, ininteligível, que nada comunica, exceto o desespero. Sinto irritabilidade, muita irritabilidade, tenho vontade de matar alguém. Quase não consigo me alimentar e beber água, porque me engasgo e me sufoco. Depois de muita confusão, me abandono na letargia, deprimido, apático, impotente, sem mais esperança. Tomo remédios de todas as espécies, para controlar cada um desses distúrbios motores e mentais. Reconheço que se trata de percurso sem volta para dentro da escuridão: doença degenerativa no cérebro não tem cura. Pioro a cada dia. Dependo dos outros para as atividades mais corriqueiras, como beber e comer, ir ao sanitário, tomar banho, me vestir, me pentear, cortar as unhas, ingerir os remédios, medir a temperatura e a pressão arterial, quase tudo. Veridiana, minha mulher, está exausta, não suporta mais a doença, porque sabe que não há cura, não existe antídoto para essa desordem hereditária do sistema nervoso central, esse distúrbio neurovegetativo que mata lentamente. Talvez eu fique anos ainda me transformando em vegetal, morrendo devagar, ela sabe disso e se rebela, porque quer de volta seu marido como era antes, aquele homem vigoroso, bonito, inteligente e cheio de futuro, com quem namorou durante anos e com quem se casou esperando uma vida de bem-aventuranças, uma casa, uma família. Ela se desespera, não sabe mais o que fazer quando, na urgência súbita de aliviar os intestinos, corro para o banheiro e não consigo chegar a tempo, me sujando todo e empesteando o apartamento; nessas horas, minha mulher grita e pede socorro à dona Vilma, que trabalha para nós faz tanto tempo e trata de mim como se eu fosse seu filho, além de cuidar da limpeza da casa, lavar e passar roupa, preparar a comida e até fazer compras no mercadinho do bairro e na quitanda, porque Veridiana, cada dia mais exausta e terrivelmente esgotada, está adoecendo de depressão – sem mais forças para suportar a situação, às vezes ela permanece apática por longo tempo, como se quisesse adoecer e morrer junto comigo.
      Quando dona Vilma escuta esses gritos de Veridiana, “Ele está todo cagado! Ele está todo cagado!”, deixa as panelas na cozinha, vem correndo ao meu encontro, trazendo um balde de água com desinfetante, e me leva para debaixo do chuveiro. Veridiana chora e tenta ajudar de alguma maneira. Sussurra nos meus ouvidos que devo usar fraldas, que eu não fique assustado, que tudo vai melhorar. Mentira, ela sabe que é mentira o que está me dizendo. A cada dia vou sendo sobrepujado pela fraqueza mental, pela tristeza repleta de agressividade, pelos tormentos musculares. Ela vira o olhar para o outro lado quando dona Vilma vai me limpando o corpo esquálido: sou um saco de pele e osso, magro de dar pena, dominado por essas tremedeiras que me roubam as últimas calorias do organismo. Ainda assim, na hora da refeição, minha mulher se senta ao meu lado e, pacientemente, me dá de comer, o que é uma tarefa penosa, desgastante. Já fui tomado por infecções generalizadas na garganta, sofro com engasgos e me sufoco até com sopa de legumes batida no liquidificador. Chega uma hora em que a gente cansa em definitivo e não consegue mais lutar. Não faz mais sentido viver desse jeito. Estou esgotado – forças psíquicas e físicas reduzidas a quase zero. Procuro amparo em Veridiana, que leva a colher de sopa à minha boca. Quando me dou por satisfeito, fica me olhando com seus olhos graúdos. Seu olhar é vasto, triste, enigmático, e geralmente parece estar úmido das lágrimas que chora em segredo. Em que será que ela está pensando?

2. 

      Adoeci logo depois de completar quarenta anos. Os primeiros sintomas: depressão, esquecimentos contínuos, alguns movimentos involuntários e bruscos dos membros, descoordenação motora crescente. Deixava cair tudo à toa, ora os talheres nas refeições, ora os óculos na hora de ler, ora os objetos retirados da geladeira, ora qualquer coisa que tentasse apanhar. Veridiana me levou a um célebre neurologista, o melhor de todos na cidade, com quem gastamos boa parte das nossas economias domésticas. Fui investigado geneticamente, vistoriado de cima a baixo, da esquerda para a direita, por dentro e por fora. Tudo inútil, o doutor nunca soube me dizer que doença maldita é esta. Até consultou seus colegas de medicina, mas ninguém chegou a qualquer conclusão. No entanto, todos foram taxativos num ponto: em reconhecer a letalidade do meu caso. Quanto tempo de vida? Quem pode saber? 
      O médico propôs tratar os sintomas da doença, enquanto se espera que da ciência venha alguma novidade. Apenas isso. Nada mais se pode fazer. A vida tem dessas coisas: fazer pirraça com a gente quando tudo vai tão bem. Por que isso foi acontecer comigo? Por quê? Por quê? No dia em que recebi o diagnóstico lacônico – uma doença sem nome que destrói o cérebro e vai matando gradativamente... –, eu tive vontade de morrer logo, para evitar o padecimento lento, a humilhação de apodrecer em vida. Era uma segunda-feira, às duas horas da tarde. O doutor nos disse que se tratava de uma situação muito difícil, que precisaríamos de muita bravura para passar por tudo o que viria em seguida. Viu que eu estava muito nervoso. Tirou da gaveta uma cartela de calmantes. A secretária dele trouxe um copo de água. Ingeri dois comprimidos. Veridiana se controlou como pôde, não quis tomar remédio, engoliu a vontade de chorar, segurou minhas mãos e me prometeu que jamais me abandonaria. Disse muitas coisas bonitas. Que juntos enfrentaríamos essa dura prova. Que jamais eu duvidasse da palavra dela.   
      Instante de torpor, desamparo. Lágrimas silenciosas: meu rosto úmido, meus olhos assustados. Minha mulher me abraçou e repetiu que, em hipótese alguma, me deixaria sozinho. Situação muito difícil, o doutor voltou a dizer, enquanto nos passava as receitas, com as prescrições de remédios de uso controlado, ansiolíticos, antidepressivos e outras medicações indicadas para o retardamento do processo inexorável da senilidade. Eu estava em silêncio, absorvendo os ecos dos meus pensamentos: por quê? por quê? e agora? O que vou fazer agora? Que vai ser de minha vida? Aquelas circunstâncias me deixavam tenso, muito nervoso. 
      Minha mulher me disse que o calmante logo faria efeito, que eu tivesse calma, que ela estava comigo. A gente se despediu do médico. Eu disse a Veridiana que precisava andar um pouco pela cidade. Ela concordou comigo, faz bem andar a esmo, escutar a barulheira do trânsito, distrair-se na multidão. Veridiana caminhou ao meu lado, sem desgrudar de mim, de mão dada. Vacilante, eu tropeçava nas pedras soltas das calçadas, esbarrava nas pessoas, pedia desculpas. Os outros, muito apressados e concentrados somente em si próprios, nem se davam conta de minha presença. Na rua, era pleno o caos constante do tumulto urbano. No relógio digital da esquina, o mostrador indicava a hora e a temperatura, duas e quarenta e cinco da tarde, trinta e cinco graus centígrados. E ali, no centro da cidade, diante de mim, a multidão impaciente, os carros barulhentos, o excesso de dióxido de carbono, os guardas de trânsito e seus apitos, o congestionamento incorrigível do trânsito, a gritaria dos vendedores ambulantes, o sol forte da tarde, enfim, o mundo que eu começava a perder, a vida.
      Prometi à Veridiana lutar sem esmorecer. Muito bem, ela me disse, e me lembrou do que  havia me prometido, que permaneceria ao meu lado em todas as situações. Que eu contasse com ela, de verdade, e que eu acreditasse firmemente no que me dizia: que nós dois juntos não seríamos vencidos facilmente por qualquer adversidade. Numa parte de mim, agitavam-se os titãs da vida: a luz do sol, os sons da cidade, a voz de Veridiana; noutra, os titãs da morte: os terrores imprecisos, os vazios insondáveis, as sombras infinitas. Senti um pouco de sono. Veridiana disse que o remédio estava dando resultado, que era melhor ir para casa. Eu disse que não. Insisti em andar pela cidade. Ela, então, sugeriu um cinema, relaxar no ar-condicionado, beber Coca-Cola, comer pipoca, assistir a um filme, quem sabe cochilar. Eu disse que sim. Vi os cartazes na frente do cinema e escolhi um filme de guerra. Precisava de estímulos belicosos.
      Entramos no cinema na hora em que as lâmpadas estavam se apagando. Havia pouca gente. Sentamo-nos no fundo da sala. Na tela eu esperava encontrar soldados valentes defendendo trincheiras, atacando seus oponentes, tirando o escalpo dos inimigos. Eu queria aprender com os soldados a enfrentar a doença letal. Minha vida agora era um filme de guerra.
      O remédio fazia efeito: que sono. Não, nada de dormir. Comi pipoca e bebi Coca-Cola. Na tela, o filme de guerra. Tentei me concentrar. Queria vida, vozes, cores, imagens, movimentos, tiros e gritos dos soldados em confronto. Precisava de uma história de guerra em todo seu esplendor catastrófico: azuis contra vermelhos; brancos contra negros; crentes contra hereges; amigos contra inimigos; o bem contra o mal; eu contra aquela doença escrota.
      No filme, os soldados passavam dias inteiros cavando trincheiras. O inimigo nunca chegava. Também comiam e descansavam. E escreviam cartas de amor para suas mulheres distantes. Soldados românticos e amedrontados que só cavam trincheiras, não lutam e escrevem cartas de amor, onde já se viu? Cadê as cargas de baionetas, as bombas jogadas dos aviões, as facas degolando sentinelas, os jorros de sangue, os gritos viris dos vencedores e os balidos dos derrotados? Cadê tudo isso?
      Que filme de guerra nada. Uma farsa.
      Terminei dormindo. Efeito do calmante. Nem vi no filme os aviões bombardearem as trincheiras dos soldados românticos e amedrontados, nem as tropas atacantes finalmente chegarem, nem as investidas de baionetas da infantaria, nem os avanços dos tanques de cavalaria. Dormi o tempo todo. E quando as lâmpadas se acenderam, Veridiana me despertou e me disse que a gente precisava retornar para casa. Que já bastava de passeio.
      A gente saiu do cinema quase às cinco da tarde. Tateamos pela multidão, procurando um táxi. Vimos então, do meio do trânsito engarrafado, uma motocicleta saltar para a calçada. Um sujeito de bermuda e mochila, o carona, pulou da moto e correu na direção de um homem de terno escuro parado na porta do prédio ao lado do cinema, apontando-lhe um revólver. Esvaziou o tambor de seis
balas. O homem de terno rodopiou no ar e caiu pesadamente. O assassino fugiu correndo e subiu na motocicleta, mantida em funcionamento por seu companheiro. Berros histéricos do povo alvoroçado. O corpo ensanguentado na calçada, agonizante e prestes a morrer. Do prédio saiu uma mulher gritando o nome do filho. Ele se agitou por alguns segundos, tentando reagir, puxando o ar que lhe faltava, mas, sufocado por sangue, não resistiu aos ferimentos e morreu. A mãe dele, em estado de choque, se sentou na calçada e, chorando convulsivamente, acomodou em seu colo aquele corpo sem vida, todo vermelho de morte.
      Os ruídos do final da tarde ressoaram tensamente em minha cabeça, especialmente as sirenes da polícia, dos bombeiros e das ambulâncias. Vida anárquica, violência por toda a parte, um gene defeituoso dentro de mim, o tumulto da rua, as buzinas dos carros, os estampidos do revólver, o baque do homem ao tombar sobre a calçada e os gritos de sua mãe repercutiam em todos os órgãos do meu corpo. Olhei o cadáver e disse que, em vez dele, eu é que deveria ter morrido. Melhor morrer nas mãos de um pistoleiro do que acabar inválido e apodrecido por uma reles doença. Que Veridiana, igual àquela mãe, também chorasse por mim e me acomodasse em seu colo. Que confusão se apoderou de mim, desintegrando meus nervos e me jogando numa crise repentina – comecei a tremer descontroladamente, a fazer caretas estúpidas, a babar feito um imbecil. Ninguém prestou atenção em mim. Minha mulher gritou por socorro, mas todos só tinham olhos para o morto e sua mãe. Veridiana desistiu e me puxou pelo braço, me arrastando para longe dali. Cruzamos a rua, arriscando um atropelamento, e finalmente apareceu um táxi. Ela disse, então, puta que o pariu, pare aí, moço, pare a porra desse carro, meu marido está passando mal, tenha compaixão, tire a gente daqui. 

3. 

      Faz três dias. Há precisamente três dias tento absorver o diagnóstico. Hoje é quinta-feira. Já anoiteceu. Acabamos de jantar um bife acebolado, arroz e salada. Ainda posso me alimentar sem a ajuda dos outros. Comemos em silêncio. Veridiana está muito triste. Dona Vilma recolheu os pratos, lavou a louça, perguntou se a gente ainda estava precisando dela. Não, não, dona Vilma, amanhã é seu dia de folga, vou levar a senhora em casa, respondeu-lhe Veridiana. Vou levar a dona Vilma em casa e volto já, me diz Veridiana. 
      Está bem, querida, vá e volte logo, não se preocupe comigo, vou ficar bem. É o que lhe digo sem muita convicção. As duas saem e eu fico sozinho. Dói muito dentro de mim. A vida está secando, virando estiagem. Eu me sinto como um rio que vai perdendo suas águas, em definitivo, para as ribanceiras. Estou me escoando no rumo da vastidão. Resolvo reagir, não me entregar. Vou sair um pouco, caminhar. 
      Ando pelo bairro. Faz uns quinze minutos que caminho. Estou longe de casa apenas alguns quarteirões. Mas parece que caminho faz tempo, que cruzei desertos e cheguei a um lugar muito longínquo. Nem percebo o céu da noite carregado de nuvens pesadas. Vira o tempo depressa, logo cai um aguaceiro incomum. Chuva forte e ventania. Saio correndo pela rua, todo encharcado, e 
entro num botequim. Tremo de frio. Peço rum, quero beber, esquecer o diagnóstico que não sai de minha mente. Não pensar. Alguém me pergunta se está tudo bem. Devo estar mesmo com uma péssima fisionomia. Digo ao cara que me fez a pergunta:
 − Vou morrer.
 − De quê?
 − Não interessa.
 − Foda-se, então.
     Viro o copo de rum na boca. A garganta arde. E me volto para o sujeito que não estava mais interessado em falar comigo, muito menos em saber do que vou morrer. Ele agora está com os olhos pregados na TV do botequim, atento ao telejornal. Tento prestar atenção no noticiário. Há crises econômicas em várias partes do mundo. Fala-se também de atentados terroristas, de matanças no Oriente Médio, da ocupação militar do Afeganistão e do Iraque, das armas nucleares na Ásia e no Irã, dos assassinatos de imigrantes na Europa, dos homicídios banais em todo o Brasil. O mundo gira em seu show cotidiano de violência e horror. Mesmo assim, eu amo este mundo, eu não quero perdê-lo, e, apesar disso, ele some de mim gradativamente. Esfarela-se, enquanto anuncia a morte. 
      Bebo mais rum. Que desespero. Que frio.
      Espero o aguaceiro amainar. Só então deixo o botequim e tento apanhar um táxi, porque ainda chove fraco e não quero arriscar um resfriado. Sei como estou sem resistência imunológica. Meus glóbulos brancos são peidos inúteis. Não servem para nada. Ultimamente adoeço por qualquer besteira. Na frente do botequim, faço sinal para os taxistas. Ninguém para. Fico pensando nos filmes de Hollywood e nos táxis de Nova York, que sempre aparecem do nada na hora em que se precisa deles. Mas eu não estou dentro de um filme dos gringos, e sim imerso na porra da vida birrenta. Estou me estressando, daqui a pouco vou estar sob a posse das tremedeiras e das caretas, dos malditos espectros da morte. Melhor sair daqui, já, já. Desisto do táxi e vou embora a pé, trôpego como um fantasma melancólico, atormentado.

                                                                  *

      Ao entrar no apartamento, tremo de frio e nervoso. Acendo as lâmpadas todas. Pego uma toalha, me enxugo e troco a roupa. Diante de mim, na estante da sala, uma fotografia de Veridiana em preto e branco, o retrato bonito que ela tirou no dia do nosso casamento. Ligo a TV e sintonizo uma rádio FM, tudo ao mesmo tempo. Aumento o volume ao máximo. Barulho infernal. O interfone toca, deve ser o síndico ou o vizinho reclamando da barulheira. Não atendo. Baixo o volume da TV e do rádio. O interfone deixa de tocar. 
      Volta a chover forte. A chuva bate na vidraça das janelas. Barulho aterrador. Sombras me encurralam. Suicídio – que ideia desesperada é esta? Espectros lamurientos se aproximam de mim, vozes incessantes me dizem “se mata, se mata”. Outra vez quero morrer de um só golpe, como morreu aquele estranho, três dias atrás, com seis balaços disparados por um pistoleiro profissional. 
     Os espectros me dizem para apanhar os remédios. Que remédios, indago às sombras, de que vocês estão falando? Outra vez as vozes ressoam incessantemente: os remédios, os remédios. Desta vez não resisto e vou cambaleando até o armário do banheiro. Apanho várias cartelas de diazepam e antidepressivos. E depois retorno à sala, onde encontro uma garrafa de uísque. Faço uma mistura infernal de ansiolíticos, antidepressivos e álcool. Engulo não sei quantos comprimidos com uísque à moda caubói. Em pouco tempo, tudo gira dentro de minha cabeça – uma queda no abismo, a vertigem do álcool e da medicação. Tento, inutilmente, manter os olhos abertos. Respiro com dificuldade. Quero pensar e não há pensamento. Quero falar e não há palavra. Vou perdendo os sentidos. A vida está indo embora. Tudo escurece.
      Subitamente, daquela foto de Veridiana em preto e branco, vejo-a saltar em minha direção, desencobrindo claridades inacessíveis. Grita comigo: “Está fazendo o quê? Está fazendo o quê?”. Respondo: “Vou morrer”. E ela me aponta o dedo na cara e me diz que não vou morrer porra nenhuma. Que eu tivesse vergonha na cara. Que fosse vomitar aquela porcaria toda. Obedeço. Corro para o tanque da área, enfio o dedo na garganta, bem fundo, e trago para fora o vômito, o uísque, o diazepam, a fluoxetina, os pensamentos escuros, quase as minhas vísceras. Tremo todo. Suor frio e mal-estar. Respiração arquejante. A morte me dá um tempo e se afasta de mim.
      Retorno para a sala e me jogo no sofá. Tento dormir. Exausto. Cochilo apenas. Perturbado, desperto pouco tempo depois. Cadê a Veridiana, me indago. Noite longa, barulho da chuva nas vidraças das janelas, sinto medo. Fecho os olhos, tapo os ouvidos, mas aquelas vozes insistem em me assediar. Os fantasmas me ordenam que eu vá até a cozinha. Digo que não e não. E eles: “Vai logo, porra, que estamos mandando, seu puto”. E eu olho a fotografia de Veridiana, vem me socorrer, Veridiana, vem me socorrer. Desta vez, ela não salta do retrato em preto e branco.
      Obedeço aos espectros encolerizados, como um soldado submisso, um homem frouxo. Entro na cozinha e fecho as portas com trapos de limpar chão. Enfio pedaços de sabão em pedra nos orifícios das fechaduras. Tudo vedado. Abro, então, o interruptor do gás. Aí, me ajoelho diante do forno e meto a cabeça bem lá dentro. Vou perdendo a consciência. A morte me abraça novamente.
      Outra vez, então, escuto a voz de Veridiana. Novamente ela salta da fotografia, agora mais enfurecida do que na primeira vez, e me pergunta se eu não acredito em palavra de mulher e no que ela me disse três dias atrás, que jamais me deixaria sozinho, jamais, jamais, e dizendo isso puxa minha cabeça para fora do forno. Ela dança diante dos fantasmas, debochando da morte. Quanto mais a morte me agarra, mais Veridiana se enfurece com as sombras, se atraca com elas e depois me abraça com vigor. Então, de repente, tomo consciência do que está acontecendo, e grito que eu quero viver, que jamais vou morrer covardemente daquele jeito; e me lanço para trás, tossindo e vomitando. Arrasto-me pela cozinha e vou retirando os trapos de debaixo das portas. Quero respirar, quero respirar. Meto a chave nas fechaduras, desobstruindo-as do sabão em pedra, abro os basculantes, fecho o interruptor de gás e persigo a vida. Tiro da geladeira uma caixa de leite e bebo tudo de uma só vez. Bebo e vomito. O leite misturado de vômito escorre de minha boca, encharca o chão, respinga nas paredes. Cambaleio e abro caminho na direção da sala, vou atrás da claridade de Veridiana na foto em preto e branco – mais uma vez, minha mulher me salvou.
      Mantenho os olhos abertos, sentado no sofá. Evito dormir para não escutar os espectros que me falam durante o sono. Sinto náusea. Tenho um gosto horrível na boca: mistura de rum, uísque, butano, diazepam, fluoxetina, leite, vômito. Tudo em minha volta está um nojo. O apartamento se transformou numa pocilga. 
      Aos poucos o cansaço me vence. Durmo contra a vontade. E os espectros suicidas reaparecem em forma de pesadelos, querendo me levar na marra. Brutais, me dão um revólver cheio de balas. Gritam: “Dê um tiro na cabeça! Dê um tiro na cabeça!”. Tento despertar, não consigo. Eles empurram o revólver contra minha têmpora direita. Repentinamente, um estampido das trevas, e a bala me rasga da direita para a esquerda, os olhos saltam no vazio, e eu morro cego, no escuro. Felizmente, trata-se somente de um pesadelo, uma brincadeira de mau-gosto dos fantasmas.
      Se eu fosse um conceito metafísico, a morte jamais improvisaria comigo. Mas sou apenas um homem ao deus-dará. Por isso, a morte brinca comigo de cabra-cega. Não consigo enxergar. A cegueira irremediável. Acabo de descobrir que o sobrenatural é incolor. A coisa mais insípida que pode haver. Mas o que as sombras não sabem é que conto com Veridiana, que cumpre a promessa de jamais faltar comigo, nunca me deixar sozinho, nunca, jamais. Mais uma vez ela salta da fotografia em preto e branco, juntando-se a mim nesta guerra de resistência. Ao lado dela reúno forças para enfrentar os fantasmas. Levanto-me do sofá, cambaleio pela sala, tropeço nos móveis e escorrego no vômito. Grito para os espectros: “Cadê os meus olhos, seus malditos?”. Eles silenciam. Xô, vozes malignas! 
      Cadê a Veridiana? Cadê a Veridiana? Por que demora tanto? Dona Vilma mora longe, sei disso, mas ela já deveria ter chegado. Talvez esteja presa no trânsito por causa da tempestade. Será que vai demorar? Vou até a varanda. Começa a parar de chover, venta muito agora, faz frio. Respiro o ar gelado. Pela primeira vez eu rezo, porque só os deuses e Veridiana sabem lidar com demônios tão ardilosos. Os fantasmas ficam putos da vida e investem contra mim pela última vez. Incitam-me a saltar da varanda, a voar de ponta-cabeça e a me espatifar no asfalto. Salta, seu bosta, salta, seu bosta. Agora, não, malditos! Nem agora, nem nunca. Vão todos vocês para o caralho. Finalmente eles desistem e são arrastados pelo zunido do vento.
      Respiro, aliviado. Olho o longe, o vasto. Imagino as estrelas estalando no fundo do abismo, como átomos irados clareando o escuro, um bigue-bangue de poesia sobrepondo-se ao caos. Agora, sou eu e minha coragem. Estou pronto para cavar trincheiras e enfrentar o inimigo. Que venha a porra dessa doença. Que venha a morte quando ela bem quiser. Vou dar conta delas.
      É quando o carro de Veridiana desponta na esquina. Ainda bem que retornou. Ela é a fonte de minha coragem. O esteio que me resta na escuridão. O resguardo que me ampara no vale de lágrimas e que me impele a furar o bloqueio quase invencível das sombras. O manancial da vida em todo seu esplendor. A expressão intensamente humana de força e vulnerabilidade, a mulher para além das metáforas e abstrações, minha companheira desde sempre.

4. 

      Tempos depois.
      A doença avança. Agonia profunda. 
      Ainda assim, resistimos nas trincheiras. A resistência vai durar até que não seja mais possível conter o inexorável. Veridiana está comigo. Jamais se entrega. Todos os dias ela faz questão de conceber um cotidiano em que a vida se mostre com um grau possível de decência. Que não envergonhe a gente. Que não nos faça chorar à toa. Que não nos desespere. De manhã, Veridiana me ajuda a escovar os dentes e me faz a barba. Penteia os meus cabelos e diz invariavelmente que nunca me viu tão bem, mesmo sabendo do exagero das suas palavras. Às colheradas, me serve café com leite, com pedaços bem pequenos de pão francês com manteiga, e depois me limpa os lábios com um guardanapo bordado por ela mesma. Em seguida, ela me leva ao banheiro e espera pacientemente que eu lhe diga, como se fosse criança, que acabei de fazer cocô. Então me leva para o chuveiro e depois me seca com extremo cuidado, passando, em seguida, pomada nas assaduras e espalhando talco nas dobras de pele onde concentra umidade. Feito tudo isso, me veste com roupas bem cheirosas e me conduz até a varanda, onde eu pego um pouco do sol da manhã, enquanto ela lê para mim trechos de um romance ou algumas notícias do jornal. Cada dia é um dia. Passo a passo, assim segue a vida. Que seria de mim, sem esta mulher que não me falta jamais.