segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Resistência poética

   Mesmo em tempos pouco doces e menos literários como são os dias da contemporaneidade, a poesia, como um fenômeno vigoroso da insolência humana, se dá de repente entre nós e recupera a inocência extraviada. É um aparecer súbito de inspiração e resistência que nos devolve à vida, inclusive quando esta tem gosto de perda. Assim é a poesia, tão ainda necessária na aridez da existência tocada pela cibernética.
   Leio os versos do poema O que sobrou (para Antonio Candido), de Cássia Janeiro, e entro num mundo em que a vida toda se veste para uma festa, absorvendo a morte e a ausência. A morte que não é de morrer, nem é de desespero, mas sim outro jeito de viver, entre cheiros e lembranças, na vastidão que acolhe o finito do humano.    
   Graças ao poema, enxergo o homem Candido em seu silêncio de resistir à partida da mulher de uma vida inteira. Outrora, ele sequer se preparara para recebê-la; ela simplesmente chegou. Dividiram o teto, escoaram juntos o tempo de viver; compraram e leram livros, tiraram retratos do cotidiano, construíram um mundo. Ali dentro as crenças, os anseios, os ceticismos, os plenos, os vazios. 
   A ampulheta da mulher se esgotou primeiro. Acabou-se precocemente a areia feminina. Ela se foi. E deixou para trás roupas, livros, retratos, o homem amado agora atravessado pela solidão. 
  O homem sente o fato de estar só, coisa que dói muito; e só não dói mais porque se transfigura em vida - a palavra vem redimir a perda, e então a vida dá um salto adiante, feito uma criança brincalhona, inocente como o amor que perdura para além de qualquer tempo.
   O homem resiste. A mulher agora vive na ampulheta que ficou. A ampulheta de Antonio Candido. 
   Eis o belo poema de Cássia Janeiro que faço questão de transcrever:

O que sobrou de você neste
Apartamento
Foram as suas roupas,
Que logo vão ser dadas,
Os seus livros,
Alguns dos quais serão meus,
Aqueles que compramos juntos,
As lembranças.
O que sobrou foram seus retratos e,
Quando vi uma foto sua, sorridente e saudável,
Lembrei-me de que não me preparei
Para a sua vinda,
Mas pude me preparar para a sua ida.
Mas quando você foi,
Ah, meu Deus!
O que sobrou?
O que sobrou
Fui eu.

    
   

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Deus e Epifanias

Deus e Epifanias

     Desejando o absurdo dos impossíveis – entender a essência de Deus –
me dediquei, por muitos anos, a investigar exaustivamente as cabalas mais
antigas, a magia dos livros mais herméticos, as trajetórias dos planetas e
das estrelas. Viajei por muitos lugares, meditei solitariamente nas
montanhas, jejuei nos dias santos, frequentei catedrais e confessionários,
revelei pecados concretos ou imaginados, sonhei com paraísos, memorizei
salmos, rezei terços, cantei mantras, consultei astrólogos e cartomantes,
concebi destinos dentro de computadores. Percorri muitas livrarias e
bibliotecas, algumas misteriosas e quase sombrias, onde li, com espírito
atento, pergaminhos que talvez tivessem sido escritos metade por santos,
metade por demônios. Fascinei-me ante os livros redigidos em idiomas
ininteligíveis; neles permaneceu secreta a sabedoria que eu não pude
desvendar.
     Certo dia abandonei as cidades e os templos suntuosos, os institutos
de teologia e as academias de filosofia. Perdi a paciência com os sábios, com
os matemáticos, com os religiosos, com os filósofos, com os livros
herméticos, com as montanhas tristes, com as estrelas e os planetas
conforme são vistos pelos astrônomos. Olhei o céu, as cidades, o Sol, as
estrelas, com os olhos do homem simples e mortal. Foi talvez esta a primeira
medida certa que tomei em minha existência. A essência de Deus só era
possível de ser percebida pelos fatigados olhos humanos, e não, como eu
chegara a supor, pelos olhos mágicos de um computador programado para
investigar os confins do Universo.
     Fui a um povoado de poucas casas e escassas ruas, que tinha sido
incendiado em tempos de guerra civil. Afirmavam-me os camponeses que
muitos tinham morrido no meio das ruas barrentas e até dentro da igreja.
Dentre os raros sobreviventes, apenas uma mulher desdentada, escondida
numa vala de esgoto, se atrevera a testemunhar o morticínio. Até hoje não
se sabe bem o que ocorreu no dia do massacre, os tribunais andam dando
conta lentamente dos julgamentos. Mas no vilarejo, ressurgido das cinzas do
casario e das vozes perdidas dos mortos, ninguém se interessava por
códigos jurídicos e livros herméticos. Raros eram os que haviam aprendido a
ler com a fluidez necessária para percorrer um livro do início ao fim.
Privilegiados eram os que conseguiam assinar o nome com letras bem
torneadas, depois de longa prática em cadernos de caligrafia distribuídos na
escola rural.
     Fiz perguntas, nunca me responderam. Indicavam isso ou aquilo,
falavam e riam, às vezes até choravam. Nunca compreenderam por que os
horrores do massacre se haviam estendido ao interior da igreja incendiada –
inacreditável, na visão deles, que os homens, movidos pelo furor do ódio,
tivessem ousado violar um templo sagrado. Tampouco compreendiam a
complacência de Deus diante desse acontecimento absurdo, nauseante.
     De manhã cedo, eu saía com eles para arar o solo áspero, arrancar da
terra alfaces e cenouras, beber no poço aberto da plantação. As horas
passavam regularmente, a gente sabia quando era hora do almoço e da
janta, a hora de conversar e cantar, a hora de dormir. Os camponeses
viviam a vida possível de ser vivida naquelas paragens e dispensavam
sistemas filosóficos, textos religiosos, cabalas enigmáticas. Apesar de
indiferença aos mistérios, rezavam muito, inclusive as rezas ineficazes que
tinham rezado no dia do massacre, impotentes diante dos fuzis dos soldados
e das espingardas dos guerrilheiros.
     Eu me acostumei a conversar com eles, ao redor de fogueiras, bebendo
licor de milho. Éramos parcimoniosos com as palavras, preferíamos escutar a
opinião dos outros – ou então beber exageradamente. Bebíamos até quase
perder a consciência. Olhei tantas vezes o céu como eles o olhavam. Diziam-me,
sob o efeito do licor, que seus antepassados desfilavam na noite,
seguindo a luz das estrelas. Por isso eles eram tão calados, o tempo era
escasso para simultaneamente falar e dar atenção às aparições. Fui
perdendo, no convívio com esses camponeses simplórios, meu espírito
inquisidor, minha curiosidade atrevida, tudo o que suprimira em mim, até
àqueles tempos, a capacidade de contemplar placidamente as estrelas
cadentes – simplesmente apreciá-las, sem nada inquirir, sem arquitetar
códigos cabalísticos em céus estrelados; era disso que eu precisava.
     Numa daquelas cintilantes noites, ao redor dos camponeses e das
fogueiras, esvaziei depressa várias garrafas de licor, bebendo com avidez,
querendo perder os sentidos depressa. Eles me olhavam em silêncio, com
olhos de visagens resignadas. Desfaleci sentindo a brisa morna no rosto.
Dormi ao relento. Quando despertei, no meio da manhã seguinte, o povoado
estava vazio, sem sinal de vida. Andei pelas ruas poeirentas, gritei nomes,
disse que era hora de arar a terra e colher lindas alfaces. Só silêncio. Muito
silêncio.
     Tive, subitamente, esta revelação miraculosa: o silêncio. Essa era a tal
de essência de Deus que se me apresentava inesperadamente. Eu não sabia
até então que as epifanias só se davam em plenos e arrebatadores silêncios.

terça-feira, 23 de julho de 2013

SÃO JOÃO DEL REY

São João del Rei

     Quando a vi pela primeira vez, garoava e fazia frio. Uma luz tênue de
lamparinas antigas iluminava as suas ruas de paralelepípedos. Torres de
igrejas, uma infinidade delas, contrastavam com o contorno escurecido das
montanhas no horizonte. Havia um silêncio tão expressivo naquela
madrugada, uma solidão de centenas de anos, que julguei ter visto um
desfile de fantasmas na penumbra das ruelas. Só hoje consigo associar
aquela noite silente à história de suas almas que ainda se recordavam do
ciclo do ouro.
     Amei o seu silêncio, as suas igrejas, as suas beatas, os seus sinos, as
suas chuvas, o seu amanhecer, o seu crepúsculo. Amei essa cidade como se
ama uma mulher: São João del Rei!
     Eu gostava daquele lugar de velhas igrejas e incríveis histórias
sobrenaturais, das ruelas e ladeiras com seixos e casas seculares. E também
me escondia lá em cima da serra cinzenta que dominava a cidade. No meio
daquelas rochas, nos tempos da Conjuração Mineira, os poetas e os rebeldes
tinham também se refugiado. Eu me sentia um conspirador.
Andei muito pelas trilhas que circundam São João del Rei, onde ainda
hoje estão fincadas cruzes pelos mortos dos séculos passados, heróis sem
nome, humildes desaparecidos. Quando chegava o outono, eu seguia as
procissões que subiam a serra, onde, entre os rochedos, os peregrinos
acendiam fogueiras sob as estrelas. Os devotos recordavam as façanhas e
desventuras dos antepassados, cantando ladainhas, como se certas cantigas
religiosas pudessem reanimar almas devastadas. Lembravam-se dos amigos
mortos, com lágrimas e música de violão entrando pela madrugada. Eles
conversavam de rebeliões e paixões amorosas, e eu os escutava com os
olhos a cintilar.
     Aquelas conversas de roça eram falas de gente que vive como quem
desenrola um carretel de linha. A vida dura até acabar a linha, e a morte é o
carretel vazio. Às vezes acontece de a linha se romper antes do tempo, e aí
vem todo tipo de morte inesperada, morte do coração, morte de paixão não
correspondida, morte de fatalidade, morte indesejada, morte repentina.
     Eu amava também as conversas com os veteranos de guerra, os
pracinhas da Força Expedicionária Brasileira, que, entre uma cerveja e outra,
discorriam sobre os combates nos campos de batalha europeus. Eu lhes dava
atenção quando me falavam de táticas, tiros de metralhadora, vitórias
heroicas. Bebia com eles para arrancar-lhes segredos de guerra: quando
bêbados, livres de todo e qualquer bom senso, passavam as mãos pelos
cabelos brancos e esqueciam a brava conquista de Montese para descrever a
suavidade da pele das italianas e a maneira atormentada como elas faziam
amor nas tréguas dos combates.
     Um dia eu tive de deixar São João del Rei, percorrer outras estradas:
adeus, meu amor de cidade, adeus, torres, sinos, procissões, adeus, gente,
adeus, tudo. Levei na memória as orquestras sinfônicas tocando na missa de
domingo, os artistas pintando quadros nas praças, os sinos anunciando
nascimentos e mortes. Segui a vida com essas lembranças, tal qual o
córrego do Lenheiro, que, nascido num olho-d’água tão pequeno na
montanha, nem parecia um rio secular ao cruzar a cidade e gravar tantas
histórias e tantas vozes. Nele também eu fiquei memorizado numa metáfora
de ruído de correnteza no meio da madrugada.
     Agora eu ando por outros lugares. Mas sempre que possível, eu me
junto aos fantasmas das ruelas de São João del Rei. E percorremos, em
noites de garoa, as ruas iluminadas por lamparinas, a solidão dos becos, as
reminiscências da guerra, a manhã dos domingos ensolarados. Sempre
refazemos essas coisas para jamais algum de nós cair no esquecimento. Em
nós o transitório dura tanto quanto a ideia de Deus.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

MEMÓRIAS

Memórias

Sento-me devagar à mesa que parece vazia. Antigos companheiros
encontram-se ausentes. Alguns partiram sem deixar endereço, outros
fizeram um pacto antecipado com a morte. Deixaram silêncio no lugar das
velhas conversas. Parece que eu herdei o nada, a ausência do alvoroço
humano.
Sou convencido do contrário. O silêncio é sobrenatural. A mesa
alcançou a notoriedade do sagrado. Ficaram velhas lembranças perdurando
por conta própria. Cada palavra dita tornou-se um extenso labirinto, a
continuidade de uma remota procura. Sou capaz de recitar meus sonetos
prediletos e discursar em favor de esquecidas conspirações. Não estão vazias
as cadeiras de minha sala: em cada uma delas, há um poeta bradando um
grito de centenas de séculos. Antigos poemas são declamados na música
suave do vento que cruza minha janela. Velhas memórias atravessam os
séculos, velha mesa sagrada dos espíritos.
De vez em quando, esses velhos amigos vêm conversar comigo em
minha “Távola Redonda”, uma mesa retangular de jacarandá situada no
centro da sala. Perguntam-me sobre as atrocidades humanas e choram sobre
os meus ombros, porque constatam que nada mudou na face da Terra desde
que foram embora. Falam-me de afrontas imemoriais, de guerras
intermináveis, e discursam mesclando sonhos revolucionários com utopias
poéticas – ou seriam sonhos poéticos e utopias revolucionárias? Quando se
lembram de revoluções e mulheres, misturam lágrimas com sorrisos, sol com
chuva, vida com morte.
Um deles, velho poeta que deixou de herança centenas de versos à
única mulher que de fato amou, muda o tom da conversa. Cansado de
tragédias, anima o falatório, dizendo que Shakespeare não perdeu o hábito
de fundar teatros. Levanta-se e me toma pelo braço. Vamos até a janela
para ver um ponto no céu. Ele me conta que, precisamente naquela estrela,
o velho bardo inglês fundou um teatro para os santos. Todos riem das
peripécias de Shakespeare, até mesmo Hemingway, que ainda discorre sobre
caçadas, cuba libre e amores perdidos. E a balbúrdia só termina para que a
gente escute Machado de Assis a dizer que a vida no universo não é nem a
sombra amedrontadora da morte nem a voracidade dos vermes que um dia
tanto assustaram Brás Cubas.
Não há silêncio nem esquecimento em minha “Távola Redonda”. Nela
pronunciam-se alguns fantasmas nostálgicos, imperfeitos e abstratos,
precisando de meus ouvidos, de meus olhos e de minha voz, para se
sentirem visíveis e humanos outra vez, mesmo sabendo que só podem
existir como metáforas poéticas.
É um caso em que as palavras tornam possível a metafísica. A única
metafísica passível de credibilidade. Porque é memória das coisas que foram
e das que ainda vêm. Em sendo assim, causas primeiras.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Um pouco de poesia...

TRANSIÇÃO

Petrópolis, 28-12-04


Antes da última palavra pronunciada
Antes de todas as coisas desmanchadas
Antes de a terra refugiar o homem silenciado
Antes dos gritos, dos ventos, dos ecos dissipados
Antes que corra para longe o grande rio
Antes que para trás fique toda a melancolia,
eu preciso lhes dar um pouco de poesia...

ARTE POP E O BRASILEIRO ANTÔNIO BOKEL

Os Indiscerníveis na Arte e o Caso da obra de Antônio Bokel

1

No mundo ocidental, a filosofia sempre se preocupou com a criação artística. Platão e Aristóteles consideraram a arte um ofício que implicava a imitação da natureza e das ações humanas. No século XVIII, A. G. Baumgarten inaugurou o termo estética para designar o estudo da beleza sensória, referida tanto ao belo natural quanto ao artístico. Kant ampliou o domínio da estética para incluir nele a crítica do gosto, e é com a estética kantiana que a beleza, em suas variantes de belo natural e belo artístico, recebeu o juízo estético "isto é belo". Hegel considerou a arte em sentido espiritual e histórico – espiritual por se tratar de produto da atividade humana; e histórico por representar uma das fases do percurso dialético da Ideia no mundo: o primeiro momento de consciência de si do Espírito, quando o Absoluto assume uma forma sensível. Como se nota, a filosofia sempre cuidou de pensar a arte, como se esta jamais pudesse alcançar a autonomia de pensar sobre si mesma.
Pode a arte pensar sobre si mesma?
Ou a arte tem seu valor em si mesma e nada denota, só significando algo enquanto se dá ao artista, entendido como o lugar e o instante onde o ser da arte se põe?
Hoje eu examino a primeira hipótese: a arte que deseja pensar sobre si mesma.
Noutra hora, comento a segunda hipótese: a do artista como o lugar e a hora da arte.
Talvez as duas hipóteses se mesclem. Escrevo pensando nisso...

2

A filosofia diz o que é arte? Ou a arte quer dizer de si mesma?

Algo começa a mudar nas relações entre filosofia e arte na primavera de 1974, com a exposição das Brillo Boxes de Andy Warhol na Stable Gallery, em Manhattan. Segundo Arthur Danton, a prática artística com Warhol atinge o patamar de uma autoconsciência filosófica jamais atingida – a arte se transforma em filosofia ao se apoderar da indagação sobre a relação entre a obra de arte e a realidade, instaurando o questionamento sobre o que provoca a transfiguração do objeto comum em obra de arte, sendo ambos indiscerníveis sob o ponto de vista físico e visual, mas ontologicamente distintos. O juízo estético “isto é belo” já não responde à busca de definição de obra de arte, depois que caixas de sabão e latas de sopa adentram a galeria e perdem sua condição de utensílio para se transformarem em legítimos produtos artísticos. Para a contemporaneidade, o juízo estético se exprime de modo diferente do que preconizara Kant. Agora se diz: “isto é arte”.
As tradicionais pinturas, em suas variantes bem conhecidas da história da arte, passaram a dividir as galerias com obras polêmicas, tais como o urinol de Duchamp (A Fonte) e as latas de sopa Campbell – objetos banais, ready-mades transfigurados em produtos artísticos e legitimados pelo mundo da arte (ressalte-se que essa legitimação não implica juízos de valores, como “isto é boa arte” ou “isto não é boa arte”, mas tão somente que “isto é arte”). Para quem se educou esteticamente sob o influxo do mistério e do sublime artísticos, de fato pode ser decepcionante constatar que coisas corriqueiras, tais como garrafas de coca-cola e fotos publicadas em jornal, sejam consideradas obras de arte. Mas assim se dá na arte contemporânea: não se distingue, nestes casos, sob o ponto de vista da percepção visual, a realidade do objeto comum e a sua transfiguração em obra de arte, embora pertençam a duas regiões ontológicas distintas. A relação entre arte e realidade não acontece mais como simples mimese ou representação de uma realidade exterior. Agora essas esferas se interpenetram.

3

A Arte Pop 

A arte pop é crítica, contemporânea, instigante, polêmica. Quando alguém visita uma exposição de arte contemporânea, precisa se livrar de certos “pudores estéticos puristas” e se predispor a interpretar o que encontra pela frente. Sim, porque o juízo estético “isto é belo” deixou de ser suficiente para entender as obras de arte que, ao invés de “quererem” ser belas, “desejam” ser interpretadas. “Ver uma coisa como arte requer no mínimo isso: uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento de história da arte. A existência da arte depende de teorias.”, diz Arthur Danto, em A Transfiguração do Lugar Comum. A esse propósito, enfatiza este filósofo que, afinal de contas, o que faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brilha é certa teoria da arte, pois esta teoria é que recebe a obra no mundo da arte e a impede de resvalar para a condição do objeto real que ela é. A teoria, ao que tudo indica, parece ter se tornado essencial para que alguém veja isso e aquilo como obra de arte; a pessoa, enfim, deve dominar algo de teoria artística, história da arte, tendências e movimentos etc. para apreciar a arte contemporânea. Tenho dúvidas a esse respeito, para ser franco. Será que as teorias artísticas teriam mesmo o papel de tornar possíveis o mundo da arte e a própria arte?A arte, para mim, suplanta as teorias, que vêm sempre depois.
Essa demanda de teorias e de interpretações gera dificuldades, por vezes incontornáveis, para o espectador. Muitos simplesmente desistem diante do que lhes parece incompreensível ou difícil de ser absorvido como prazer estético. O espectador persistente, entretanto, supera esses primeiros e notáveis empecilhos; ao avançar no caminho, sente, naturalmente, necessidade de esclarecer o conceito de arte contemporânea, para sentir e compreender o que está à sua vista, isto é, ser tocado pelo ser da obra de arte, isto é, para sentir a força da obra, presente como metáfora. Nesse sentido, a crítica se mostra prestimosa ao fornecer ao espectador, mediante interpretações dessas metáforas pictóricas, para que as pessoas reajam à força da obra.

É assim que o espectador, para fruir a arte, despende esforço e ocupação: apossa-se de conhecimento da história da arte, estuda teoria artística, frequenta exposições, vale-se do que escrevem os críticos, conecta-se com as questões culturais de sua época e se envolve com a problemática do mundo da vida. Afinal, hoje o desfrute dessa arte sentida e pensada é, sobretudo, interpretativo (embora o juízo estético não seja da ordem lógica).

4

Dois exemplos da magnífica obra do brasileiro Antônio Bokel:
1) Graffity Celebrity:




Graffity Celebrity é um louvor à liberdade arrancada pelo grafiteiro da violência urbana e da existência marginal. Trata-se de escultura de cobre e latão sobre tronco de árvore, em cima do qual o artista ergue, com tijolo traspassado por uma estrutura metálica (óculos atingidos por projéteis de fuzil 7,62mm), um “altar” onde se louva a lata de tinta spray, toda pintada em dourado e com os seguintes dizeres: R.I.P. (Rest in Peace) – Graffity Celebrity.
R.I.P. – descanse em paz, o aviso inscrito na lata de spray, “arma” com que o artista da rua denota sua mensagem de inadequação e intempestividade com o presente; abaixo, o tronco de árvore, sobre o qual se vê o tijolo com os óculos metálicos traspassados pelos projéteis de fuzil. Podem-se presumir muitas coisas dessa obra: são múltiplas suas interpretações. Uma delas pode ser a seguinte: a obra como metáfora de dois polos antagônicos, a natureza sucumbida (o tronco de árvore) ante a construção urbana (o tijolo); entre eles, o humano, tentando, com seus óculos, superar a miopia que se instala na rotina de estresse e violência; aliás, uma tentativa vã, frustrada pelos tiros do fuzil: cegueira e falta de sentido; o grafite ou a arte espalhada nos muros urbanos, feitos a partir da “arma” lata de tinta em spray, seriam a expressão da liberdade na
confusa vida da cidade e da nostalgia do homem pela natureza perdida na arquitetura urbana. Esta talvez seja a metáfora que Bokel, com seu estilo bem peculiar, exprime em sua retórica artística. Lá fora do mundo da arte, um tronco de árvore é apenas um tronco de árvore em alguma floresta ou no que resta da floresta; o tijolo é apenas um tijolo que, com outras peças semelhantes, serve para levantar uma parede; os óculos, apenas óculos, com a função de reparar, talvez, um problema visual, como a miopia; os projéteis de fuzis, apenas balas de armas que simplesmente matam; e a lata de tinta em spray, apenas recipiente de tinta e utensílio com a função de pintar não necessariamente artística – ou seja, objetos corriqueiros; mas o artista os transfigura, inscrevendo-lhes um significado artístico, e os leva para o espaço legitimador do centro cultural.

2) Não Sente - Vazio; e Gato - Cat:


Não Sente – Vazio é constituída de uma cadeira de madeira danificada em seu centro, isto é, um enorme buraco no assento, com o aviso em tinta negra, Não Sente. Por baixo dela, junto ao chão, outro pedaço de madeira pintada de preto, com o escrito Vazio, na diagonal, em cor branca. A obra é apresentada em conjunto com Gato – Cat, que consiste de um bocal com lâmpada moldada pelo artista; o conjunto recebe uma cobertura de tinta dourada de spray. Do bocal, sobe um fio de cobre que, na metade do percurso, se emaranha, antes de alcançar um suporte no teto do salão.
A cadeira danificada e o bocal com a lâmpada suspenso por um fio de cobre trazem um significado extraído da vida urbana, muito provavelmente de uma favela da cidade do Rio de Janeiro. Como objetos corriqueiros, podem ser vistos como uma cadeira quebrada, na qual não se deve sentar porque o assento está com um grande furo; e ainda como uma ligação clandestina de energia elétrica. Banais como a vida das pessoas que têm cadeiras deterioradas em casa ou que dependem de “puxar a luz” dos postes de iluminação pública (os conhecidos “gatos”).
No salão do centro cultural, a cadeira quebrada e o bocal com lâmpada suspenso pertencem à região ontológica da obra de arte. A cadeira não se encontra ali com a função de comunicar o risco comum que representa para alguém disposto a sentar-se nela. Não é uma cadeira estragada, mas um objeto corriqueiro transfigurado em arte. Duas coisas chamam a atenção e reforçam o seu significado metafórico: os avisos de “Não Sente” traspassado pelo furo e o de “Vazio” sobre o fundo negro e colado ao chão. Provavelmente querem exemplificar a realidade de uma comunidade que, acossada pela violência urbana e por dificuldades de ordem social, vive na incerteza e na imprevisibilidade dos acontecimentos, sem o chão firme da vida possível de ser minimamente planejada. Não se trata de fazer sociologia com a arte, mas de transpor certa realidade para o espaço legitimador do mundo da arte. Falta o chão firme da vida possível de ser planejada. A cadeira com o furo no centro do assento exprime, por certo, o abismo escuro da ameaça cotidiana e imprevisível. Quando combinada com Gato – Cat, a obra da cadeira quebrada reforça o sem sentido da decadência e do desamparo. O habitante da favela não dispõe do assento que simboliza o conforto do burguês ou a estabilidade necessária para o enfrentamento das ameaças da rotina diária. Viver é perigoso, diria o Riobaldo de Guimarães Rosa. Tudo é abismo escuro, e até mesmo a providencial luminosidade chega ao morador da favela com escassez e marginalmente. O “gato”, artifício comum entre as pessoas que se apropriam ilicitamente de energia elétrica, agora transfigurado em arte, tanto pode chamar a atenção para a vida das pessoas destituídas da “luz do Estado”, como simplesmente indicar um modo de ser na luta da sobrevivência, o que implica safar-se de qualquer maneira, sem os obstáculos representados por valores morais.

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Experimentei grande alegria ao visitar, no primeiro semestre de 2012, a exposição de onze artistas brasileiros, no Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, sob a curadoria de Vanda Manglia Klabin.
A exposição recebeu o título de Gramáticaurbana.
As obras se propuseram a mostrar a interação entre o espaço cotidiano da cidade e a produção artística contemporânea. Entre eles, estava Antônio Bokel, designer, artista plástico, que tem apresentado trabalhos no Brasil e no exterior, em galeria e em intervenções urbanas.
O meu louvor a esse artista brasileiro. E, por que não dizer?, minha gratidão por ter me proporcionado, com sua arte, instantes de grande contentamento e talvez ampliação de minha compreensão sobre a arte contemporânea.

terça-feira, 18 de junho de 2013

A Rua

A rua: o mundo.
Se não for pela rua, como estar no mundo?
Se a rua fala, escuta-se seu furor; se a rua silencia, experimenta-se sua calma; se a rua clareia, clareia-se junto com ela; se faz escuro dentro de casa e a poeira se acumulou com os dias, abre-se a janela, pro vento passar, pro claro entrar, pro mundo dizer...
Ainda assim, mesmo com a casa limpa e clareada, sem o mundo aberto, tudo se fecha.
E a rua fala: ruído do mundo. 
Que seria de nós sem a rua?