quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Águas Mornas

Superfícies e subterrâneos

       A vida, em certo ponto do tempo, me deixou com a impressão de que tudo começa e acaba diariamente. Um instante é a claridade, outro, o espasmo do escuro. Não obstante, eu resisto e sobrevivo em meu espelho, entre traços de memória e simples rugas que desencobrem a finitude. Rodopio no redemoinho dos relógios, sem discernimento dos começos e fins, atordoado pelo cotidiano, conhecendo apenas o tempo trivial, mas nunca o sem tempo, outro nome do eterno. Estou no mundo, sozinho nas multidões, tateando no meio dos ruídos, sabendo que no acerto das contas o resultado final é o silêncio irreversível.



Fujo; todos os dias eu fujo; escapo das ruas, escapo dos ruídos, escapo da poeira; eu me transformo em vento e planta, eu me disfarço de rocha, eu me esculpo em argila, numa evasão incessante sob as chuvas cálidas que fazem brotar tudo que já morreu. Sempre que chove calidamente, uma semente se retesa para aflorar na terra, um pássaro salta do ninho para as nuvens, uma mulher se prepara para acolher em si, amorosamente, o corpo de alguém. 
        Por que o homem vive tão diferente dos bichos e das plantas, que não se preocupam com mortalidade?  Ou mesmo das rochas que se deixam amar pelos ventos, numa dança sensual de saltimbanco? Isso é tudo; e isso é nada; e isso é o bastante: a vida, tal qual ela é: às vezes tão clareada, outras vezes tão sombria, mas ainda assim vida. Para que escrever tantos versos, se basta a poesia do amanhecer e do anoitecer? 
        Até acho que a vida, fora do poema escrito, é mais poesia do que se pode supor. Mesmo sendo vida transitória, sujeita à aniquilação. Mas a gente escreve por causa do medo de desaparecer e ser esquecido. Almeja-se fazer de cada vida corriqueira um destino monumental. Talvez por isso, então, com esse desesperado intuito de atenuar o horror à finitude, tenhamos inventado a escrita rupestre, os hieróglifos e os pergaminhos, a prensa e os livros, a poética da memória. Deve haver, pois, algum antídoto de resistência na palavra, certo vigor arcaico para se enfrentar a morte, não com punhais e metralhadoras, nem com lágrimas e rezas, nem com apatia ou desespero, mas com uns poucos versos de bravura, guerrilha e barricadas; de um lado o homem, sua nudez, sua fraqueza; do outro, uma metafísica monumental e incompreensível.  
        Como viver, então, em conluio ou em confronto com o outrora, o hoje, o amanhã e, principalmente, o depois de tudo que ninguém sabe como é? Talvez a gente precise aprender a viver como um rio desassossegado e suas águas-bailarinas, que ora são águas de nascente, ora águas de correr nas ribanceiras e planícies, ora águas que se abandonam de vez à vastidão da foz. Abandono, perda, tristeza. É o que se sente quando o rio desaparece no delta. Mas a melancolia é somente um instante prolongado de sombra em meio aos outros instantes de esplendor na vida. Segue-se a vida enigmática. Os enigmas são como nascentes e poentes, ou como superfícies e subterrâneos, inclusive o mistério de morrer. Pode ser que, depois da morte, não haja claridade ou treva, nem lugar algum; pode ser assim e pode ser o contrário. Que importa isso? Durar ou dissipar. Isso é o de menos. A vida é para sempre enquanto for lembrada. Quem há de morrer no vigor resistente da memória e da palavra?

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Os setenta e cinco mil


Ontem de madrugada bem cedinho
Passou na rua um povinho
Cantando tristemente.
Um povinho que não era mais gente...

Almas posseiras da calçada,
Buscavam um sol que cintilava
Muito no outrora, antigamente,
Quando eles eram simples gente...

Fantasmas falam no ritmo dos ventos
Discursos misteriosos, tantos lamentos,
Tantas feridas abertas na memória,
Vilarejos queimados, colheitas perdidas,
Inocentes fuzilados, muitos velórios,
Tanta vida desperdiçada, ah tanta vida...

Eu quis escrever em desespero
Um longo poema de guerra...

— Não! Não! Esqueça os horrores, poeta,
Nenhum de nós agora se interessa
Por política, disputa de terra,
Bravura, covardia, tiros de morteiro...


Eu quis escrever em desespero
Um longo poema de guerra...

— Não! Não! Fale da roupa domingueira
Usada na missa, das brincadeiras
Das crianças
E de suas bandeiras brancas,
Das mulheres e seus vestidos floridos,
Dos homens e suas camisas vermelhas,
Da cor do sol, do sol que era bonito...

Eu quis escrever em desespero
Um longo poema de guerra...

Heróis e revoluções latino-americanas,
Guerrilheiros e soldados com ódio,
Casas vazias, mulheres e crianças
Sós, saudosas, sem nenhuma glória.

— Não, poeta, queremos ver o amanhã,
Substitua os assuntos de batalha e guerrilha
Por versos tão doces quanto torta de maçã!
Dê sua mão, venha, venha por esta trilha
Conhecer nosso rancho nas estrelas,
Escutar cantigas camponesas,
Comer ovos mexidos na frigideira...

Desisti finalmente do horror,
Da morte e seus miasmas,
Escutei os milhares de fantasmas
Da guerra sangrenta de El Salvador
— setenta e cinco mil
Mortos, o valor da guerra civil! —

Eu quis escrever em desespero
Um longo poema de guerra,
Mas por que desperdiçaria versos
Se isto não vale a pena mesmo?

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Textos que integram o livro Águas Mornas, 2ª edição, revisado pelo autor e publicado pela editora Novo Século. O livro pode ser encontrado nos sites da própria editora (www.gruponovoseculo.com.br) e das livrarias do país. Melhores preços na Amazon Brasil (www.amazon.com.br).

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

TOMÉ MAYRUNA

Prólogo
Por que escrever Tomé Mayruna?
Fiz do meu particular universo mítico um poético e abstrato refúgio chamado Literatura. Nessa espécie de lugar sagrado, convergem para um ponto impreciso de mim sonhos e memórias, que somente subsistem graças à arte das palavras - uns poucos substantivos, alguns sóbrios adjetivos e dois verbos prediletos, desejar e lembrar, que eu conjugo como quem decifra a metáfora do tempo e a substância da vida: nunca estou em lugar algum, vivo no fluxo apressado dos acontecimentos.

        Dependo de reminiscências ou da imaginação para viver. Em outras palavras, só enxergo manhãs clareadas quando já vi e memorizei o sol. Escrevo textos aturdidos e urgentes, imitações do canto das cigarras de minha rua, que cantam com frenesi porque pressentem a perturbadora transitoriedade das coisas - cantam para a vida e secam para a morte. Todos somos simulacros de cigarras, chegamos e vamos embora na vertigem do tempo, aparecemos com o sol e sumimos na escuridão, brotamos na saudade alheia e murchamos no esquecimento do mundo. Existir e perecer formam a mesma metáfora das horas perdidas e dos milagres ansiados.
        Algumas vezes, risco traços alegres ou não às variadas lembranças de minha existência e construo memórias fingidas dentro de memórias verídicas - mergulho, por assim dizer, em um labirinto de reminiscências superpostas. Esse é um privilégio dos poetas e dos loucos, dispor do atributo de lembrar o fato que existiu e o fato ainda por inventar - afinal, toda literatura tem um resíduo indelével da loucura criativa e da fecunda fragilidade humana. Escrever Tomé Mayruna resulta desse incompreensível fato: se não o escrevo, me transformo em cigarra com morte anunciada.  Trata-se de uma tentativa de testemunho romanceado de muitos dramas individuais e coletivos que presenciei e/ou vivi na Amazônia brasileira. Perdoem-me por meus exageros, por algumas inverossimilhanças e pela tendência de enxergar o sobrenatural onde só há coisas simplesmente humanas.
                                                                       Humberto B. Leal



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PARTE I
A MEMÓRIA
(Os pensamentos e as falas derradeiras de Tomé Mayruna, na iminência da morte, conforme este romancista as captou e as reproduziu numa possível transliteração do indizível em palavras, sem chegar ao fundo de sua crueza inimaginável – traslado meramente literário daquilo que não se pode, com facilidade, traduzir em narrativa.)



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 Capítulo 1

            Madrugada. Tomé Mayruna, sozinho numa cela fétida da delegacia de Marupiara, uma remota vila na Amazônia brasileira, olha o céu e o casario através das grades. A solidão e a iminência da morte fazem-no pensar e lembrar.

            “Daqui a pouco vai amanhecer. Sou testemunha solitária de tudo que acontece nesta hora que antecede o clarear do dia de meu santo guerreiro, São Jorge destemido, que matou muitos dragões e, dizem, vive mesmo na Lua Cheia. Segundo os índios mapanas, esse santo católico, a quem eles conhecem como Sawara Suçuarana, até hoje continua vivendo nos terreiros das malocas e nos oratórios das casas das benzedeiras. Apesar da minha fé nesse santo de guerra, sei que ele não vai aparecer, derrubando tudo com seu cavalo, dizimando os meus inimigos. O meu santo predileto está longe, brigando em outra parte desse céu grande de Deus, e é por isso que me sinto completamente abandonado. Nem os santos da igreja, nem os deuses da mata, nem os amigos do mundo, ninguém pode fazer nada por mim.
        Estou vendo o relógio de parede da delegacia, o guarda Silvério dormindo, uma luzinha de sol querendo aparecer entre nuvens escuras. Há tanto silêncio em Marupiara, uma espécie de sossego misterioso, um silêncio avassalador de Deus, que me assusto quando um galo canta, em algum quintal, um canto de presságio ruim. Nem os bichos experimentam paz nesta madrugada.
        Está mesmo amanhecendo e hoje vai ser um dia para ninguém esquecer, porque está marcada a morte de um homem na forca e faz mais de cem anos que aconteceu  de alguém morrer assim em Marupiara. Esse acontecimento estremeceu a vila: entre gente eufórica e gente pesarosa, houve quem chegou a encomendar terno de linho, vestido de seda, perfume estrangeiro, roupa de luto e velas roxas, para ver suspenso, no ar da manhã, aquele a quem todos acusam de ser o Mapinguari, o maldito que come carne humana, este humilde servo de Deus que vos fala.
        É assim, pertinho de clarear, que me desamparo com premonições e temores. O sol está para nascer sobre a mata, sobre a vila e sobre este rio de águas escuras que dá de beber ao povo, o rio Mutum. Os galos de Marupiara, pressentindo o que está para acontecer, se alvoroçam nos quintais, enquanto as mulheres se levantam, praguejando, para requentar o café. As crianças pulam da rede e procuram no guarda-roupa o traje de festa. Os homens, vestindo paletó de linho branco, preparam as garrafas de champanhe distribuídas ao povo por Virgílio Maroaga. O pastor Genevaldo, inimigo declarado do padre, juntou todos os pentecostais da vila e também se prepara para discursar. O padre João Pedro, me disse o delegado Mendes, virá para me confessar, um Santo Sacramento que dispenso sem o mínimo de arrependimento, porque estou desapontado com todos os santos.
        Talvez venham as mapanas, guiadas por Mayruna e pelo menino peludo chamado Catrimani Lobisomem. Talvez cantem aquela cantiga agoniada dos funerais da tribo. Talvez me auxiliem com encantamentos que desfaçam este imenso pesadelo em que me encontro.
        Com o sol da manhã, vai chegar o delegado Mendes, primando pela pontualidade, andando igual tartaruga devido à barriga avantajada, os olhos faiscando de ruindade, trajando a roupa domingueira, o crucifixo de ouro saindo da camisa. O gordo desgraçado talvez me olhe e me diga: ‘Tomé Mayruna, amaldiçoado Mapinguari, que cometeu o crime de raptar moça de família e pegar em armas contra gente de bem, chegou a tua hora!’
        Ah, meu Deus do céu, me console: estou com medo de morrer, e isto digo porque sinto dor de barriga, vontade de defecar, um enorme pavor. Mas defecar o quê se faz quase três dias que estou em jejum, recusando a comida malcheirosa que o delegado Mendes manda me servir?
        Isso é pressentimento de morte. Sinto aperreio só de pensar que, daqui a pouco, vou ser enforcado. E eu nem sei o que vão fazer comigo depois de morto, porque ouvi Silvério cochichando que o delegado quer retalhar tudo, salgar e mandar jogar nas encruzilhadas, como um favor prestado a Virgílio Maroaga.
        É a morte se anunciando. Como dizia o meu pai, Ticá, quando a gente tem um pesadelo de que está morrendo, é porque vai morrer mesmo, e é preciso se acostumar depressa com a fatalidade.
        Mesmo tremendo todo, afirmo que nunca fui homem de sentir medo e fraquejar. Enfrentei e venci todos os perigos: atocaiei os meus inimigos onde e quando menos esperavam; peguei onça-pintada na ponta do terçado; me criei na mata e nas montanhas caçando, pescando e subindo em árvore; aprendi a urrar igual aos macacos guaribas, esse urro amedrontador que vem do fundo da floresta como fúria que vibra; e, finalmente, afrontei Virgílio Maroaga, o homem mais rico de todas estas terras que meus olhos conseguem enxergar, unicamente por um amor de perdição pela filha dele, Letícia, moça corajosa que abandonou uma vida de bem-aventuranças e comigo fugiu contrariando a vontade do pai.
        Daqui a pouco vou me encontrar com Letícia em alguma vereda do céu ou da terra. Enquanto isso, nesta circunstância aflitiva, fico me lembrando daqueles dias em que atravessamos a floresta, perseguidos por homens e cachorros sanguinários, sonhando com uma casinha na beira do rio e uma porção de filhos. Essa moça, dona dos meus mais sublimes sentimentos, eu a vi morrer de uma doença misteriosa sem nome.
        Eu me lembro bem daquela tarde na mata. Letícia reclamava de umas dores no estômago, delirava de febre. Me sentei com ela na beira do igarapé, rezando, atribulado. Meus olhos se enchem de lágrimas só de me lembrar. Eu rezava com extremo fervor, mas a reza era absorvida pela floresta e não cruzava o topo das árvores, não buscava o céu. Ah, que desespero: não muito longe, vinham os pistoleiros e os cachorros em nosso encalço. O tempo de fugir diminuía, estávamos acuados. E tudo piorou quando caiu a tempestade, enchendo a selva de brumas e melancolia. Letícia, com os olhos opacos, bem abraçada comigo, foi ficando molinha, desfalecendo devagar, sem mais me reconhecer. Eu lhe disse: ‘Sou eu, Tomé. Está me escutando? Diga que está me ouvindo’. Nada me respondeu. Imersos na cerração, ficamos entregues à vontade absoluta de Deus, à inconstância do destino, ao acaso das coisas. Depressa escureceu e depressa perdi, definitivamente, minha maior claridade da vida: foi-se Letícia, tão amolecida nos meus braços, mais parecendo estar dormindo. Olhei para cima, vi um pedacinho de céu da noite precoce através da mata, rezei fervorosamente, mas faltou Deus aparecer. Chorei lastimosamente: ‘Letícia, meu bem, aonde você foi? Tão apressada, nem me esperou. Que vazio vai deixar dentro de mim’.
        Quando estava para amanhecer, tive pensamentos ruins de morte. Ficar ali para sempre, ir ao encontro do meu amor. Mas, por cima das águas do igarapé, na cerração da manhã por nascer, o vulto de Letícia surgiu, subitamente, me sorrindo e me convencendo a viver. Aturdido, meio dormindo, meio acordado, gritei o nome dela. A aparição se desfez e me deixou amortecido, quase sem força para me levantar. Abri os olhos de vez, criei coragem e me levantei para enterrá-la. Meti o terçado na terra fofa e cavei. Falando deveras: chorei, em cima daquele túmulo improvisado, todas as lágrimas que um homem pode chorar quando perde a mulher do coração.”


=============== Continuação..............................................
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