segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Resistência poética

   Mesmo em tempos pouco doces e menos literários como são os dias da contemporaneidade, a poesia, como um fenômeno vigoroso da insolência humana, se dá de repente entre nós e recupera a inocência extraviada. É um aparecer súbito de inspiração e resistência que nos devolve à vida, inclusive quando esta tem gosto de perda. Assim é a poesia, tão ainda necessária na aridez da existência tocada pela cibernética.
   Leio os versos do poema O que sobrou (para Antonio Candido), de Cássia Janeiro, e entro num mundo em que a vida toda se veste para uma festa, absorvendo a morte e a ausência. A morte que não é de morrer, nem é de desespero, mas sim outro jeito de viver, entre cheiros e lembranças, na vastidão que acolhe o finito do humano.    
   Graças ao poema, enxergo o homem Candido em seu silêncio de resistir à partida da mulher de uma vida inteira. Outrora, ele sequer se preparara para recebê-la; ela simplesmente chegou. Dividiram o teto, escoaram juntos o tempo de viver; compraram e leram livros, tiraram retratos do cotidiano, construíram um mundo. Ali dentro as crenças, os anseios, os ceticismos, os plenos, os vazios. 
   A ampulheta da mulher se esgotou primeiro. Acabou-se precocemente a areia feminina. Ela se foi. E deixou para trás roupas, livros, retratos, o homem amado agora atravessado pela solidão. 
  O homem sente o fato de estar só, coisa que dói muito; e só não dói mais porque se transfigura em vida - a palavra vem redimir a perda, e então a vida dá um salto adiante, feito uma criança brincalhona, inocente como o amor que perdura para além de qualquer tempo.
   O homem resiste. A mulher agora vive na ampulheta que ficou. A ampulheta de Antonio Candido. 
   Eis o belo poema de Cássia Janeiro que faço questão de transcrever:

O que sobrou de você neste
Apartamento
Foram as suas roupas,
Que logo vão ser dadas,
Os seus livros,
Alguns dos quais serão meus,
Aqueles que compramos juntos,
As lembranças.
O que sobrou foram seus retratos e,
Quando vi uma foto sua, sorridente e saudável,
Lembrei-me de que não me preparei
Para a sua vinda,
Mas pude me preparar para a sua ida.
Mas quando você foi,
Ah, meu Deus!
O que sobrou?
O que sobrou
Fui eu.