sábado, 4 de julho de 2015

Ayeorun


     Eu me chamo Ayeorun, sou o último sacerdote de uma dinastia que há
governado por séculos estas terras remotas e esta civilização que
desaparecerá nos próximos dias. Desde tempos imemoriais, todos os
governantes de minha linhagem, ao prepararem seus sucessores,
preocuparam-se em ensinar que a essência de todo nosso poder reside na
credulidade dos governados e em nosso conhecimento hermético sobre
sistemas de irrigação, agricultura e metafísica. Muitos tiranos terríveis
valeram-se disso para passarem por mensageiros de Deus. Eu me recuso a
endossar esta farsa.
     Esta é a história do estertor de um soberano. Vou falar um pouco de
mim e do que sinto ao destruir o meu próprio império. Não sinto pesar, sei
que dessas cinzas vai emergir a liberdade. A claridade predominará sobre as
trevas. Assim será.
     Quando completei quatorze anos, meu pai previu a própria morte ao
concluir que a dor de que padecia nas articulações era mais que um
inofensivo reumatismo. Quis me preparar para o exercício do poder e me
levou até o templo central, onde me ensinou teologia, poética, astronomia,
arte da guerra, técnicas agrícolas, filosofia primeira, magia branca, bruxaria
e o alfabeto sagrado. Diante de tantos segredos desvelados, perguntei a ele
por que se escondia tudo aquilo dos governados e por que ele, sabendo
tanto, sucumbia à doença que o matava. Morreu sem nunca me responder
convincentemente.
    Aos meus dezoito anos, eu acompanhei os funerais do meu pai e fui
declarado rei depois que o fogo consumiu-lhe o corpo e as cinzas foram
guardadas no templo central. Levantou-se, em memória dele, uma pirâmide
com o ápice voltado para certas constelações que nunca são vistas a olho nu.
   Desde então venho usando minha perspicácia para destruir o império que
meus ancestrais construíram em cima da farsa. Persisto neste propósito,
porque prefiro a iluminação do espírito à suntuosidade hipócrita dos reis e
das cortes.
   Decidi que todos os meus feitos devem permanecer anônimos, estando
os cronistas do reino proibidos de registrar as minhas obras. Nada mais se
escreve nos monumentos construídos durante meu governo, nenhuma
referência às batalhas que venci, nenhuma palavra sobre as secas que
assolam os povoados. Nenhum artesão tem mais permissão de cunhar nas
pedras símbolos cabalísticos mentirosos. Eu, Ayeorun, sou o rei do
esquecimento. Por isso tenho este nome: Aye, o que vem do mundo visível,
tangível; Orun, o que vem do cosmo, dos espíritos – em mim esta
convergência se chama liberdade, eu quero o meu povo indo embora dessas
terras inóspitas, para se multiplicar em outras partes e ampliar a civilização
humana. Quero-os livres, mesmo que isto me custe o império.
   Esta, portanto, é minha obra principal: pôr fim à onipotência dos
tiranos, que seriam menos onipotentes se os governados fossem menos
ignorantes e menos crédulos. A ruína é só aparente, o que eu produzo é a
iluminação.
   Eu ordenei aos astrônomos que ensinassem o povo a entender melhor
a influência dos astros na agricultura. Todos sabem agora quando devem
plantar e colher, não precisam mais recorrer aos sacerdotes. Determinei
também aos funcionários do governo que não mais cobrassem tributos
extorsivos de irrigação e que instruíssem os camponeses a utilizar moinhos
de vento e esterco nas terras ásperas. Instruí os monges para que
abandonassem a vida de contemplação nos templos e fossem comer com os
pobres. Abri as portas do palácio para que o povo viesse ao meu encontro e
comprovasse que sou feito da mesma substância imperfeita de que eles são
compostos.
   Admito que estas medidas drásticas desorganizaram mentalmente os
meus sacerdotes, os meus funcionários, os meus soldados, os meus
governados. Todos me tomam por insano e iconoclasta. Houve tentativas de
sedição, todas fracassadas por razões nem sempre muito claras. Mais de
uma vez escapei da morte, apelando para súditos fiéis que morreram no meu
lugar quando as portas dos meus aposentos foram arrombadas por
revolucionários enlouquecidos. Com imensa tristeza soube que vários dos
meus familiares foram assassinados à luz do dia, por vingança dos nobres e
dos sacerdotes. Ainda assim, me mantive no meu propósito de semear
iluminação e liberdade neste império que só conheceu tirania e misticismo.
   Meu último ato de governante foi o de proibir os sacrifícios de sangue
em favor dos deuses, coisas que o povo faz em troca de boas colheitas.
Disse aos sacerdotes e aos governados, na praça dos rituais, as mesmas
palavras: “É uma estupidez crer que oferecer aos deuses o coração das
virgens e dos imberbes possa criar algum tipo de boa sorte”.
   Retirei-me então do templo principal e me sentei no topo da pirâmide
que construíram em memória do meu pai. Olhei a constelação que ninguém
vê a olho nu e decidi concluir meu trabalho mais depressa, antes que uma
revolução ponha tudo a perder. Aqui me encontro há muito tempo,
completamente imóvel, com o olhar estendido sobre todo o império, sem me
alimentar, sem me proteger das intempéries. Sou uma esfinge à vista de
todos. Os sacerdotes e nobres me encaram com ódio, mas não se
aproximam de mim. Confabulam clandestinamente, estão convencidos de
que serei consumido pelo longo tempo exposto ao sol, às chuvas, ao calor,
ao frio. Mas se desorientam quando veem, em torno de mim, certa aura
azulada, que me protege contra os rigores da natureza. O povo, por sua vez,
atônito, me vê como um rei emudecido, um deus morto – que deve ser
lembrado, jamais louvado.
   Percebo que a fome grassa no reino. Há uma terrível estiagem. Meus
súditos estão desorientados. Por algum motivo o povo não sabe o que fazer
quando não tem um rei que o conduza, um governo que o intimide, um deus
que o assuste. Os sistemas de irrigação se arruinaram: sem as taxas antes
cobradas, faltam fundos para a manutenção das engrenagens. Os sacerdotes
e os nobres morrem de fome, porque já não contam com as porções de
comida que as pessoas lhes traziam em troca de favores políticos e
conselhos divinos. Embora eles saibam ler e escrever, desconhecem técnicas
agrícolas, artifícios de caça e pesca. São todos inúteis, para nada lhes serve
tanta erudição e tanto conhecimento de magia.
   Um dos meus teólogos afirmou, numa última e desesperada tentativa
revolucionária de reverter a situação, que era preciso restabelecer o medo
nos súditos, ou do contrário estes jamais retornariam com suas oferendas.
Mas os governados, tendo compreendido finalmente que os sacerdotes não
passavam de embusteiros, fizeram pouco caso deles. Agora, com esta
terrível seca, o que vejo são enormes procissões de migrantes, gente que vai
embora para onde houver vida, terras férteis. Sinto que meus sonhos
começam a virar realidade.
   Eu, Ayeorun, de nada me arrependo, nenhum pesar sinto. Meu povo foi
para longe e conseguirá sobreviver. Falta pouco para eu cumprir meu
destino. Ainda estou no alto da pirâmide da antiga praça dos rituais de
sangue, sou uma esfinge que se desfaz pela ação dos ventos e das
tormentas, pouco a pouco, sem que eu sinta nenhuma dor, sem que o
mundo perceba o que está acontecendo. Daqui a algum tempo não serei
sequer tênue recordação. Estas são minhas últimas palavras, já não existe
nenhum oráculo hermético, tudo é claro, tudo é nítido, tudo é visível.
   Construí a liberdade, destruí a ignorância, posso morrer em paz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário