domingo, 26 de julho de 2015

Ícaro

Parte I

     Aqui no edifício, tem uma janela discreta. Da rua, até alguns dias
atrás, via-se a luz tênue da lâmpada acesa o tempo inteiro. E, às vezes, no
parapeito, um homem com o olhar perdido, quase uma esfinge. Sol ou
chuva, o homem solitário se fixava no horizonte. Esperando o quê?
     Homem misterioso. De vez em quando, vestia umas roupas escuras e
saía carregando mochila. Cheirava a pólvora. Homem de guerra.
Semana passada, os jornais noticiaram um atentado a bomba num
cinema. No mesmo dia, o homem misterioso se suicidou. Vou contar como
foi.
     Ele imitou os pássaros, voando para a morte no vento do meio-dia.
Calor e tráfego insuportáveis. Acontecimento inesperado. Havia gente e carro
em demasia na rua. De repente, aquele corpo vindo lá de cima. Ele flutuou
primeiro, depois rodopiou de braços abertos, como um helicóptero
desgovernado. Ele quis e não conseguiu suprimir a lei da gravidade. Um
tremendo baque na calçada. Nem houve grito, só aquele espatifar-se rouco.
     Meio-dia, precisamente meio-dia, a hora em que Ícaro se despedaçou.
Veio o rabecão e o levou para o Instituto Médico Legal. O cadáver ficou
em vão à espera de algum parente. Os bombeiros e os vizinhos invadiram o
apartamento dele e encontraram uma carta.
     Ícaro era terrorista. Confesso.

Parte II

     O remorso. O suicídio. Ícaro escreveu que fora ao cinema. Que tinha
andado pelas ruas, seguindo um casal de namorados. A mulher mais linda da
cidade. Acompanhada de outro. Por quê? Por que outro e não ele? Seguiuos,
entrando no cinema. Lá dentro, os namorados se encontraram com
amigos. Tanta gente bonita, tanta gente alegre. Exceto ele, sozinho e triste
como sempre. Terrivelmente só e triste. Mundo injusto.
     Acomodou-se numa poltrona bem à retaguarda. Distraiu-se com as
primeiras imagens na tela. Depois se concentrou nas pessoas. O olhar se
fixou no casal de namorados, na mulher mais linda da cidade. Por que o
outro e não ele?
     A cabeça dele doía. Ele carregava aquela mochila, todo mundo pensava
que ele transportava livros, uma enorme biblioteca. Não, ele carregava outra
coisa. Mais mortífera. Dia mais, dia menos, faria os outros sentirem o gosto
do inferno. Apalpou as bananas de dinamite.
     Os namorados se beijavam, pouco interessados no filme. Ele se irritou.
Demasiada felicidade alheia para ele suportar. Subitamente, fechou os olhos
e sonhou intensamente com aquele beijo. E tão repentinamente quanto,
despertou desse sonho inútil, reabrindo os olhos com uma expressão insana.
O beijo de boca dos namorados fez eclodir nele muita ira.
    Ícaro acendeu o estopim ligado à dinamite e pôs a mochila debaixo da
cadeira da frente. Levantou-se e foi embora. Andando com pressa, contou
mentalmente os quarenta e cinco segundos que levaria para detonar o
explosivo. Saiu do cinema quase correndo.
     Lá fora ouviu o estrondo. Pegou um táxi e fugiu. Deixou para trás o
cinema destruído, a mulher mais linda da cidade, a lembrança daquele beijo
atordoador, o seu próprio inferno.

Parte III

     Mas se enganara. O inferno viera junto com ele. E, ao ler o jornal com
a notícia da bomba no cinema, sentiu que absorvera os infernos de todos os
que haviam sido destroçados pelas bananas de dinamite. Insônia. Perdição.
Visões fantasmagóricas. A pior delas: os namorados continuavam a se beijar
e, mesmo morta, aquela mulher mais linda da cidade continuava a pertencer
a outro homem. Inveja irremissível. Ícaro pirou na batatinha.
     O que se seguiu foi o voo desgovernado de Ícaro. Ao meio-dia,
precisamente ao meio-dia, se espatifou na calçada o terrorista que explodira
um cinema por não ter suportado a intensidade de um beijo de amor. O beijo
que ele tanto quis e nunca teve.

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