domingo, 19 de julho de 2015

A última criança camponesa tem um amor no coração

   Crianças. Não sei quantas. O avô está sentado na varanda. Cadeira de embalo, o homem fala coisas aos pequenos para encher-lhes a imaginação de luzes fantásticas. O céu profundamente estrelado. A noite é mais escura no campo. Não há prédios, janelas e ruas iluminadas. Apenas um escuro que, paradoxalmente, reluz no céu. Que brilha mais. Que clareia mais. Que invade a alma das crianças.
   Crianças camponesas. Meninos e meninas. Todos acostumados aos pernilongos e bem atentos ao coaxar das rãs que moram nos alagados. Andam descalços e, vez por outra, precisam arrancar de entre os dedos as larvas que fazem coçar demais - bichos de pé não lhes metem medo. Movimentam-se o dia inteiro pelas plantações. Entram no curral e metem os pés na bosta de vaca. Bebem leite fresquinho quando o dia ainda não despontou. Correm quando surpreendidas por abelhas enfurecidas. Livram-se dos carrapatos, tomam banho de rio, trocam de roupa, comem arroz e feijão, aipim e torresmo, sossegam para escutar as fábulas do avô. E também da avó quando esta chega trazendo um pouco de café e se senta na varanda da casa.
   Lâmpadas incandescentes, fraquinhas, foscas, alimentadas por um gerador. De repente, a escuridão total, alguma coisa aconteceu na casa do dínamo. O avô para de contar estórias de fantasmas e diz às crianças que resolvam o problema. Elas sabem o que fazer. Basta corrigir o curso de água e fazê-lo correr na direção certa. Rio desobediente: no meio da noite, resolve fluir pelo meio das pedras, mudar o rumo da correnteza. Que rio nada, apenas um córrego bravo que vem lá do alto da montanha. As crianças então se assustam. "Mas, vô, tá tudo escuro!". E o avô se abre numa gargalhada com o medo que as crianças sentem dos fantasmas à espreita nas trilhas. "Vão andando! Vão andando!". E as crianças driblam o terror e inventam travessuras para enganar as almas penadas. Sapecas, atravessam a escuridão, endireitam o rego feito de pedaços de telhas e pedras. Subitamente, a luz outra vez nas lâmpadas embaciadas, o gerador voltou a funcionar. As crianças retornam quase correndo e dão o pronto pro avô. A avó lhes dá café e um pouco de mingau.
   Assim era. Até que, por causa de outro tipo de rio desobediente, tudo foi se apagando. O vovô foi embora, a vovó foi embora, todos os mais velhos foram embora. Levados para repousar no cemitério do povoado. Apagaram-se e não foi possível às crianças sapecas reverter a escuridão. Neste caso, o rio deixara de correr dentro da casa do dínamo.
   Até as crianças foram embora também. Ficaram adultas. Quando a fazenda começou a ficar em ruínas e se precisou construir a vida noutro lugar, todos migraram para a cidade. Exilaram-se no mundo de concreto. E as crianças camponesas, precisando acompanhar os pais, se tornaram urbanas quase arbitrariamente. Muitas, então, deixaram de gostar do campo depois que conheceram o conforto da cidade. Outras, todavia, ainda voltam lá até hoje, mesmo que doa olhar e sentir a decadência. A estranheza: tudo diferente. O povoado cresceu e foi tomando conta de tudo. Ninguém mais quer ser camponês. Até as revoluções românticas se transferiram para os grandes centros urbanos, para suas passeatas, para suas ruas tumultuadas.
    Não sei aonde as crianças foram. As cidades as engoliram.
    Mas sei que uma delas ainda se lembra da casa do dínamo. Ela jamais abandonou sua gênese. Vive na cidade, mas gosta de voltar às cachoeiras, às serras, às trilhas poeirentas no verão, às veredas transformadas em lamaçais quando chegam as chuvas torrenciais. Abre suas janelas quando vem a noite e suas estrelas; escuta os sinos da catedral e se transporta para o outrora que sobrevive em seu espírito.
    A última criança camponesa tem um amor no coração - o sentimento pelo lugar em que tudo principiou, o seu onde de brotação.

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