quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ana Agar - prólogo

Prólogo
           
Ao escrever as primeiras palavras deste romance, pensei parodiar Machado de Assis, em seu fenomenal Memórias Póstumas de Brás Cubas. Menos difícil seria esta autopsicografia, eu diria simplesmente: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. Mas desisti das fórmulas de plágio e dos contatos sobrenaturais e, deste modo, me aventuro mais uma vez na inaudita experiência de escrever por minha própria conta. Antes de tudo, entretanto, quero dedicar estas memórias a Ana Agar, heroína dos desertos, feiticeira das encruzilhadas, santa dos primórdios, que me deu, numa noite de outono medieval, a honra de uma dança ao som de harpa e um amor sem fim. Ainda hoje, cumprindo a palavra empenhada, nós dois preservamos o pacto contra o esquecimento e conservamos, intacta em nossas lembranças, uma aquarela onde se veem dois amantes clareados pela Lua e animados pela paixão.
            Neste lugar onde não há tempo e tudo é eterno, me foi dado o direito de viver numa modesta casa situada sobre um morro de vegetação rala, desde que deixei de existir entre os homens. Daqui diviso uma estrada de pedregulhos que conduz invariavelmente ao Norte e ao Sul. Ao Norte, pode-se avistar no horizonte o contorno das cidades humanas, de onde me vêm os rumores de intensas, efêmeras e irremediáveis paixões. Lá eu já estive, embora não lembre quando. Ao Sul, região de clima frio e pouca claridade, todos os caminhos terminam inevitavelmente num rio de águas muito geladas, em cujas margens geralmente o terrível Cérbero, guardião do reino de Hades, monta guarda. Ele, numa gôndola veneziana, cruza essas águas escuras, transportando as agoniadas almas fadadas às sombras. Quase nunca o sol aparece por lá, como é de se supor. Faz constantemente frio e costuma nevar muito. Não é que lá haja inverno, é que as sombras estranhamente produzem essa aparente estação de ano justamente onde não existe tempo, fazendo cair uma neve não em forma de flocos, mas de pensamentos sombrios e enregelados. Ruídos de todos os tipos se fazem escutar, desde uivos de lobos a gritos humanos, desde estrondos de avalanches a sons de tempestades, desde toda e qualquer gritaria até a última sonoridade do terror, que é o silêncio da escuridão.
            Aqui, todavia, em meu recanto, o céu é estrelado. Pontilhado de infinitas constelações. Tantas que deus algum poderia contá-las com precisão. Eu tenho os meus olhos permanentemente fixados numa delas, a que cintila mais que todas as outras. No meio dessas estrelas vive a mulher que um dia há de voltar para os meus braços. Talvez seja esta a razão de eu escrever tantos poemas sobre estrelas cadentes. Na realidade, os meus versos celebram não a resplandecência das estrelas, mas sim o brilho altivo dos olhos de Ana Agar, a maneira como me fitava quando fazíamos amor em noites de lua cheia.
            Este livro resultou de uma epopeia de amor que vivi com Hécate, primitiva deusa de um mundo muito antigo. Foi ela quem, disfarçada de escrava, dormiu com Abraão durante a esterilidade de Sara, nos primórdios dos tempos santos. Conhecida por sua magia e por seus aparecimentos inesperados na claridade do luar, ela participou de muitos conflitos na Antiguidade. Entre os romanos, no papel de Diana, ela inspirou governantes e comandou centuriões antes de Roma ser chamada por João, na ilha de Patmos, de a Grande Besta. A mim ela se apresentou, primeiramente, como Maria da Terra, uma rainha das encruzilhadas brasileiras. Vivemos uma linda história de amor que eu, recolhido à visceral solidão desta existência abstrata, recordo em meio aos meus alvoroços de homem apaixonado.
            Longe dela, sou um homem de vento, que já não reflete nos espelhos. Tenho a chave dos mistérios e dos medos, não me preocupando mais com essas questões simplórias que tanto afligem as pessoas: coisas como a morte, a finitude, a eternidade, o que existiu antes, o que virá depois. Nada disso tem importância diante do fato de que somos, a um só tempo, perecíveis e eternos. Viver e morrer são apenas dois verbos, do mesmo modo que vida e morte são dois substantivos. Que significam verbos ou substantivos para quem se situa hoje além das gramáticas?
Houve época, contudo, quando eu ainda perdia tempo com verbos e substantivos, que um espanto se apossava de mim diante da simples ideia da morte e do que poderia acontecer comigo. Agora eu me assombro com esta perpetuidade quase insuportável, sem contornos como o vácuo, esta condição de alma sem mais carne, sem mais ossos, sem mais sangue, sem mais cheiros, sem mais sabores. Impossível decifrar o inefável.
            Encontro-me, agora, debruçado sobre planícies, rios, montanhas, oceanos, uma infinidade de lugares. Tenho à vista muitos pássaros inquietos, multidões aflitas na solidão das metrópoles, povoados que crescem e cidades que se extinguem. Só posso contemplar o que não me é mais possível tocar. Neste lugar sem tempo, capenguei tanto entre os pensamentos, desnorteado pelo silêncio, transformado numa coisa condenada a incessantemente pensar e lembrar. Cheguei a esta fase em que nos convertemos não em anjos ou demônios, mas primeiro em reminiscência e depois em esquecimento.
            Esquecido das vozes de todos os personagens longínquos de minha história desfeita, eu demorei em entender que a morte não passa de um eterno fluxo de lembranças em redemoinho. Estar morto é um complexo estado de espírito, que ainda não consigo simplificar e expor claramente com palavras. Quando eu souber dizer o que isto significa, talvez se complete em mim o sentido dos meus enigmas que não logrei interpretar.
            Demorei muito em me acostumar a este voo de sentido circular, tardei demais para aprender a flutuar entre o ponto zero da vida e o infinito das ideias. O azimute dos círculos me conduziu a um mundo onde os espíritos continuam a viver. É com eles que divido o privilégio de fazer versos e inventar destinos. Fascina-me este relato póstumo com que tento ser lembrado, porque, no final das contas, a única imortalidade servível é a que fica na memória dos outros, e a única morte irreversível é a que acontece no esquecimento alheio.  
            Neste livro há vestígios de remotas conversas travadas nos céus, nos desertos, nas encruzilhadas, nos prostíbulos, nas igrejas, nos botequins e nos esconderijos, desde os tempos em que os imperadores se encontravam para celebrar conquistas e tramar ardis, e os pobres se rebelavam nas tabernas, e os revolucionários morriam na ponta das baionetas, e os poetas blefavam para mulheres sonhadoras.
            Heróis, reis e plebeus que viraram primeiramente lendas e depois deuses, chegaram à Terra, segundo as narrativas dos povos tanto do Ocidente quanto do Oriente, e desmancharam a escuridão original, entre esperanças e controvérsias, para criar um tipo de vida e história marcados pela dialética e pela barbárie. Semearam os campos, levantaram castelos e igrejas, constituíram exércitos e hostes sacerdotais, dançaram à luz do Sol e da Lua, amaram-se profundamente para reproduzir uma prole mais abundante que as estrelas do céu e se dilaceraram uns aos outros com guerras intermináveis e estúpidas. É justamente dessas épocas que vêm estas histórias que agora descrevo.

            Apaixonei-me pela política, pelas guerras, pelo romance, pela pompa, pelas intrigas das cortes, pelas revoluções, pelos motins, pelas utopias. De todos esses episódios, resultou uma história de amor prodigiosa, a recordação dos acordes de uma harpa, a fábula de Ana Agar.

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