terça-feira, 14 de julho de 2015

Dia Santo - 1ª parte - Gênese - Capítulo 1...

Capítulo 1

     Nasci e vivi muito tempo na Amazônia. Criança de brincar nos
beiradões dos rios lamacentos, de carregar as bacias de roupa de minha
avó que labutava sobre balsas de sapopemba, de me esconder do meu
pai me chamando para beber purgantes contra todo tipo de verme e
cujo gosto intragável fui incapaz de esquecer. Aprendi a nadar nos
igarapés, vivi em cortiços em minha primeira infância, ouvi muitas
histórias de visagens e presumo ter visto fantasmas confabulando na
solidão das calçadas. Eu e uma porção de crianças costumávamos
passar as manhãs, enegrecidos pelo sol amazônico, a ver as
embarcações passando ao largo, no rio Negro, sem preocupação com a
vida ou a morte.
     Lembro-me desse tempo com certa tristeza. Deparo sempre com
um menino magro à beira do rio, um espectro que insiste em cruzar os
séculos na espera de um milagre. Ele tem uma lágrima
permanentemente no rosto. Tem ainda a minha cara e, quando fala, usa
também minha voz. Esse menino de olhar opaco vive no arco-íris por
onde caminho para reencontrar os meus ancestrais.
     Vivi em remotos lugares onde se delineiam as nossas fronteiras
setentrionais, comendo a poeira do seu verão quase eterno ou cheirando
a umidade dos ventos quando vinham as chuvas do outro lado do rio.
Fui uma criança indefesa e tímida, o próprio desamparo, a figura
patética do menino ribeirinho chupando os dedos na beira do rio, a
barriga graúda dos vermes, magricela da própria natureza humana,
amedrontado diante dos estranhos. Apesar disso, é desse tempo na
Amazônia que me vem a lembrança de liberdade, aquela vida de andar
nu, vendo o sol nascer, tomando banho de chuva, dormindo com os
pássaros.
     Cresci na Amazônia e vi as suas cidades crescerem, as pessoas
vindas de todas as partes chegarem, as florestas se encolherem sobre si
próprias, até o seu provincianismo permutar-se por novos hábitos e
adquirir todas as semelhanças do mundo além dos rios e da mata. Ainda
hoje, muitos meninos amazônidas correm do purgante do pai e amam a
procissão dos barcos carregando esperanças rio acima, rio abaixo. Pois
lá, na imensidão do remoto, onde não é possível valer-se de mapas e
onde tudo parece inexequível, encontra-se a mística vila chamada
Maciriguei, cuja gente louva o Deus cristão e as divindades da floresta.
Nenhum rosto é desconhecido entre os habitantes nem existem histórias
alheias secretas. A história de Maciriguei parece uma fábula. Um dia
jurei a mim mesmo que escreveria um livro sobre esse lugar, sua gente,
seus amores, seus crimes, sua grandeza e sua miséria. Hoje cumpro a
palavra empenhada.

                                                   *

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