sexta-feira, 14 de junho de 2019

A Onça Pintada


     Eu me encontrava numa rede instalada num tapiri. Próximo a mim, o Seu Chiquinho, um mateiro que me ensinou muitas coisas da vida na floresta, também se embalava noutra rede. Havia escurecido cedo. A gente havia feito fogo para espantar os bichos de hábitos noturnos e para aquecer a carne seca misturada com farinha. Havia chovido a tarde inteira. Sentimos o frio precoce da umidade da selva, que esfria de outro jeito, primeiro como gota de suor do calor, depois como água de neblina que vai nos invadindo paulatinamente. Quando chega a madrugada, então, sobe a friagem da terra e trinca os ossos. Estávamos no Tapiri do Km 14 da Estrada do Puraquequara, uma vicinal de piçarra, perpendicular à rodovia que leva de Manaus a Itacoatiara e que, depois de uns quarenta quilômetros, termina no Lago Puraquequara, próximo ao rio Amazonas.
     Deitamos cedo. Cada um teve seu turno de manter o fogo aceso. Dormir era cochilar. A floresta fala durante a noite suas palavras de perigo. Não é como durante o dia, quando dá para ouvir a revoada de pássaros, e tudo parece ter a nitidez de exuberância exótica. Ao anoitecer, os bichos e os encantados se misturam com fantasmas. Seu Chiquinho segurava sua espingarda; eu, a pistola. Naquela noite prolongada escutamos aquele urro inconfundível. Um urro fugaz que logo se deixa tomar pelo silêncio. A fala da onça-pintada. O jaguar da Amazônia. Que sobe em árvores atrás da sua presa e pega jacaré na beira do lago. O felino mais belo que pode existir.
     O tempo passou. Ela não nos atacou. Talvez o fogo a tivesse afugentado, talvez porque não fosse do destino de ninguém morrer naquela noite, talvez por qualquer outro motivo que não interessa saber. Mas a onça se aproximou, sim, furtiva, esfomeada. Ela deve ter recuado e descido o socavão mais próximo, porque havia caça perto do buritizal e do igarapé onde muito bicho ia beber água.
     No dia seguinte, bem cedo, Seu Chiquinho e eu preparamos o café quase em silêncio, lembrando a onça. Cada um foi mais macho do que o outro e não revelou que havia sentido o medo que faz a gente tremer e mijar de pavor. Saímos pela estrada e vimos as pegadas da onça-pintada, nítidas ainda no barro umedecido, ora rastros de aproximação, ora de afastamento. Seu Chiquinho apontou o chão e nada disse. Segui ao lado dele, entramos na floresta, tínhamos coisa para fazer. Percorremos a trilha por quase uma hora. Seu Chiquinho, de tantos anos de caminhar na floresta e de perceber suas estranhezas, me disse que estávamos sendo seguidos. Olhamos pro alto do socavão e a vimos: lá em cima, majestosa, a onça-pintada; e cá embaixo, no fundo da grota, dois homens silenciados pela força mística daquele jaguar brasileiro. Ela fixou o olhar em nós, insinuou um urro e se afastou, desaparecendo por entre as galharias e a vegetação densa. Soube ali que talvez uma onça-pintada fosse a evolução da espécie humana: sua "racionalidade" era só instinto; se estivesse com fome, nos atacaria; mas, plenamente saciada, por que se lançaria ao ataque? Por que matar apenas pelo gosto de matar? Essa selvageria pertence ao humano tresloucado, não faz parte da alma da onça-pintada.

                                                                     *

     Muitos anos depois, quando meus cabelos já haviam embranquecidos e eu perdera o hábito de frequentar a selva, conheci, numa cidade da Amazônia, a mais bela cunhã-poranga que já vi, que já não era mais mocinha no seu desabrochar de mulher, mas, não obstante, chegando aos quarenta anos, apareceu, diante de mim, como a mais formosa amazônida que eu já vira. Ela olhava o rio, como se tivesse precisão de trazer para si as luzes do horizonte. Cheguei perto dela como se movido por um desses encantamentos que abalam os adolescentes. Nada falei. Mas ela me deu bom dia e me perguntou o nome, e me indagou ainda se eu estava visitando a cidade e se eu gostava da vista das águas, porque, em sua lógica, se ela amava tudo aquilo, como um forasteiro não poderia amar também?
    Eu disse o meu nome e acrescentei que também era amazônida, ela não estava vendo minha cara? "Só se for índio europeu, tua pele é branquinha demais". Rimos. "E seu nome?", indaguei. Ela me disse: Nari Kaikusi. E riu muito de mim quando eu falei que aquilo não era nome de gente. Mas ela insistiu em afirmar que este era seu nome verdadeiro, o nome da sua alma, e que Nari, na língua macuxi, quer dizer perigo, e que Kakusi, no mesmo idioma, significa onça. Ela me fez lembrar a noite em que uma onça-pintada esteve tão perto de mim e do Seu Chiquinho. "Te dou medo?", ela quis saber. Eu disse que não, e acrescentei que conhecia bem as onças-pintadas.
     Ela me disse, então, que na cidade usava outro nome, que não era tão exótica como queria parecer. Seus pais haviam escolhido para ela um dos nomes de Nossa Senhora: a do Perpétuo Socorro. Poderia ter sido qualquer outro nome, desde que fosse uma homenagem à Nossa Senhora, porque ela nascera em um dia em que a cidade inteira vibrava numa procissão em louvor à mãe do Cristo de Deus. Soube, pela sua mãe, quando já era menina, que naquele dia em que nasceu havia um pássaro ferido numa árvore da rua por onde passava a procissão. E que esse pássaro, até então incapaz de alçar voo, tão logo a enxergou no colo da mãe, em seu retorno da maternidade, deu um salto para o espaço e reconquistou sua liberdade de percorrer a vastidão do mundo. Os peregrinos cantavam: "Ave! Ave! Ave Maria! Ave! Ave! Ave Maria!". E sua mãe lhe dissera que ela se chamaria Maria do Perpétuo Socorro, e que proporcionaria bem-aventuranças para os desprivilegiados na pobreza, e que correria o mundo em peripécias de mulher valente feito onça-pintada, e que sua vida seria uma boa aventura no rumo da claridade do Espírito Santo. A sua mãe lhe pôs esse apelido de criança: onça-pintada.
     Eu lhe disse muitas coisas. Ela escutou com atenção minha história de sobressaltos. E gostou quando eu lhe declamei poemas, exaltando aquela pele morena, os cabelos negros, o rosto belo, os olhos alegres, o corpo de mulher mais lindo da Amazônia, os seios, a nudez, o modo de andar, o jeito decidido de ser; e também seu espírito livre, tão forte e ao mesmo tempo tão doce; e tudo nela que não se podia expressar em palavras, tudo mesmo, até o seu invisível, sua alma. Andamos de mãos dadas pela cidade, fomos a tantos lugares, e ela, mesmo sem ser uma beata porque em seu corpo pulsava o gosto pelo amor humano, fez questão de me levar a uma igreja de onde, segundo me disse, extraía toda sua força de viver feliz, apesar de tantos sonhos não efetivados: a Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Também afirmou que, além daquela igreja, só encontrava ânimo no Sagrado da floresta que se divisava ao longe, cada vez mais distante, porque a cidade se ampliava todos os dias na forma de uma clareira mais e mais expandida, levando para tão longe tudo o que sempre estivera tão perto. Aproximou-se de mim e me deu um beijo na boca, dizendo, em tom de brincadeira: "Onça-pintada ama o Poeta!". Retruquei que não era poeta, que eu já havia me esquecido de todas as regras da poética, mas ela insistiu em que, durante toda sua vida, jamais homem algum lhe dissera coisas tão bonitas e tão meigas, como se as palavras, na boca de um macho, fossem bailarinas a dançar um Noturno de Chopin.

                                                                              *

     Nunca mais vi o Seu Chiquinho. Quando eu o conheci e era seu discípulo na floresta, era um jovenzinho entusiasmado; e ele já era um senhor magrinho, de uns cinquenta e tantos anos na época; e, embora fosse resistente de andar dias na selva sem dar mostras de cansaço, talvez não fosse de durar para sempre na cidade, onde esses espíritos da mata perecem depressa com as doenças urbanas e a velhice precoce.
     Todas as vezes que vou à Amazônia, procuro o Seu Chiquinho.
     Silêncio. Talvez ele tenha ido embora viver na mata ou nos rios. Talvez seja só vento. Talvez seja a terra de onde a friagem sobe, de madrugada, para trincar os ossos dos vivos. Talvez tudo isso e, para além dessas possibilidades, seja ele um desses encantados que fertilizam minha memória.

                                                                             *

     Hoje me lembro de Nari Kaikusi. Maria do Perpétuo Socorro. A onça-pintada. A mulher mais bela que vi na Amazônia. Aquela que, repleta da força de Nossa Senhora - Ave, Maria! - e do Sagrado que se encontra por toda parte da floresta, libertou um pássaro ferido, que era, ao fim e ao cabo, um homem desamparado entre suas angústias. O Poeta voltou a sorrir. O Sol retomou o seu brilho de outrora. Ainda há uma história inconclusa que precisa seguir adiante. Um destino que falta ser consumado.
     Quando eu fecho os olhos e me transporto para aqueles rios e para aquelas florestas, penso com amor na Onça-Pintada. Em meus sonhos, ela urra de saudade e ganas de viver, a sua fala de mulher valente; eu me aconchego dentro dela, me abraço com ela como se a vida fosse terminar no instante seguinte e ela me sentisse como o poema de amor que mais ama escutar.
     Ah, minha onça-pintada, que saudade! 
 

3 comentários:

  1. ???? !!!! Sem palavras!!!! Hoje é noite de terça-feira e estive na floresta e acompanhei a onça pintada com o poeta em versões diferentes. Nossa! Cara!!!! Vc é muito bom nisso! Tem o dom de criar realidade, de transportar o leitor pelas suas histórias. Vi-me nos tempos de adolescência pegando escondido os livros do meu irmão... O Tronco do Ipê, Iracema, Os meninos da rua Paulo... e senti aquela sensação de estar aqui e estar lá. Uau!!!! Gratidão!!!!

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  2. Senti cada palavra dita e não dita. Sua capadacida só pode ser um dom, soprado por Deus ainda no ventre de sua mãe.

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