quinta-feira, 23 de maio de 2019

A vida sempre se justifica por si mesma

    Muitas vezes me indaguei se haveria um instante em que a vida perderia todo o seu sentido de ser. Deparei com o primeiro problema para responder a essa pergunta: saber qual o sentido da vida. Tanto já se falou disso e tão pouco se pode dizer a esse respeito. De certo modo sabemos o sentido da vida, porém ignoramos como expressá-lo. Até porque quem sabe deveras essa resposta é a própria Vida, que se plasma em todos os viventes de qualquer natureza.
   Assim sendo, entre o nascer e o morrer, o sentido da vida se dá em nós quando simplesmente vivemos na liberdade de fazer aquilo com que estamos mais afinados. É uma forma autêntica de deixar a vida nos levar: que saibamos aproveitar a liberdade que ela nos concede para que liberemos uma identidade plena. Isso não significa viver ao deus-dará, como joguete ao vento, água de esgoto. Mas enquanto humano em plena liberdade, dono das próprias ventas, das próprias escolhas. Decidido.
Com efeito, cada um de nós pode ser um grande escritor, um grande astronauta, um grande algo qualquer. E essa grandeza pode estar nas coisas mais singelas, que menos chamam a atenção. A grandeza da simplicidade. A grandeza da inocência. A grandeza do inexprimível.
   Portanto, em sendo esse o sentido da vida, vivido e inexpressável, pude me voltar à questão anterior: se haveria um instante em que a vida perderia todo o seu sentido de ser. Aquele instante em que a gente diz, em desalento, que melhor mesmo é morrer. Que não vale a pena continuar, resistir, se encher de remédio, ser furado nas veias e drogado de tal modo que a vida seja retida.
   Haverá esse instante?
   Agora que estamos mais longevos, que até nos mantemos mais joviais e pujantes graças à indústria dos remédios, que chegamos a sonhar com a imortalidade se a ciência der um golpe de mestre na tal de morte, como dizer que há um instante em que a vida não se justifica mais? Todos queremos viver mais um instante, mesmo que seja na forma de cadáver ambulante. Ninguém quer lembrar sequer que todos os princípios tendem aos crepúsculos. Que não há como fugir daquilo que é por natureza. Que a morte é um mero completar de um destino. Que sempre foi assim e sempre vai ser. Que ontem foi o vizinho, que hoje foi um amigo ou um estranho, que amanhã será cada um de nós.
   Viver mais longamente nos dá a experiência de sentir a falência dos órgãos. Aquela mente brilhante de repente começa a se esquecer de tudo, a virar sombra. Aquele ente tão alegre, tão pleno, dançante feito bailarino, se torna triste, passivo, ausente. Aquele apetite e aquela sede mirram diante de um bom prato de comida e de um copo de água. Tudo passa. Tudo acaba. Menos nossa falta de resignação com o inexorável. Dói tudo no humano. Dói muito. A gente chora e imagina que a dor vai embora, que a existência será consubstanciada com o Eterno, a gente esperneia. Mas nada há o que fazer. A ciência não tem essa carta de baralho para vencer o perecível.
   Tempos atrás, numa emergência de hospital, uma amiga de andanças pelo mundo, em estado grave, segurou as minhas mãos e, retirando por segundos o tubo de respiração artificial, me suplicou, como se eu fosse um pequeno deus: "Humberto, eu não quero morrer! Eu não quero morrer!". Tão senil, idade tão avançada, o corpo todo comprometido, que eu poderia fazer naquela hora, se até mesmo o rezar com devoção hoje não produz mais qualquer tipo de milagre bíblico?
   Segurei suas mãos em silêncio. Meu abraço de solidariedade. Se for pra ir, que vá em paz. Se for pra ficar, que fique na serenidade. Que olhe tudo como se até a maior desventura fosse uma grande brincadeira. Deus não fala nessas horas.
   Deve haver algo além da imanência. Que valha a pena passar por isso aqui e ser recompensado depois. Ou talvez nada haja fora do imanente e todo o transcendente possível esteja aqui mesmo em nossos raros atos amorosos, gentis. Em qualquer dos casos, a vida sempre se justifica por si mesma. É uma impressão que sinto e que deve valer para alguma coisa. No mínimo para me sentir grato por estar vivo nas boas e nas más circunstâncias. Evoé!

4 comentários:

  1. Excelente reflexão, meu amigo Humberto. "Tudo passa. Tudo acaba. Menos nossa falta de resignação com o inexorável". Queremos explicações para o inexplicável, não queremos morrer. A morte sempre foi um assunto proibido pela minha mãe, Anitinha - ela não queria morrer. Foi embora como um passarinho, na manhã de um domingo de carnaval, bem diante de mim. Ainda hoje falamos sobre isso na escola, na turma de primeiro ano médio, apresentação de um seminário sobre Heráclito de Éfeso: morremos porque nascemos - a morte já está implícita na vida desde o início. Os assuntos do meu dia tiveram tudo a ver com essa sua reflexão: agora há pouco, no Facebook, um ex-aluno de apenas 17 anos questionava sobre o sentido da vida, estava triste, sem ânimo... se ele conseguisse ler algo neste momento, recomendaria seu texto. Belíssimo! Gratidão pela oportunidade da leitura. Gostei muito.

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  2. Linda a sua reflexão, a sua generosidade com todos os que te rodeiam e, de certa forma, se amparam em sua luminosidade.

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  3. Que linda e interessante sua reflexão..tão bela a vida a natureza, havendo de tudo um pouco, também sorrimos, e choramos, ricos e menos ricos, mas ninguém quer morrer..mas muito me atormenta desde criança.
    Era olhar minha mãe e saber que um dia ela ia morrer, e isso me fazia infeliz. Era impensável acreditar nessa realidade.
    Agora também tem o pensamento de a gente morrer cedo e quem cuida dos nos filhos?? E também saber que os filhos podem partir antes de nós..
    Nao há como nao enfrentar esta realidade absoluta. Bom ler seu texto a gente fica mais dentro da realidade.obrigado

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