quinta-feira, 27 de junho de 2019

A menina da Escandinávia


     Todas as manhãs, quando era dezembro e as crianças não precisavam mais ir às aulas, graças ao início das férias escolares, o menino descia a escadaria de madeira limosa do cortiço e se dirigia ao encontro da sua avó que lavava roupa na beira do rio Negro. Magrinho, pés descalços, andava cuidadosamente por entre os detritos e se sentava sobre a balsa de sapopemba da avó. Não se falavam, não era preciso, bastava um olhar bem dentro dos olhos do outro e esboçar um sorriso. Ele se sentia acolhido por aquela mulher acostumada a trabalhar desde o romper do dia. E ela, por sua vez, dividia sua solidão com seu neto. De vez em quando, dizia a ele pra não ficar tanto tempo debaixo daquele sol, e se lembrava do avô dele, um italiano branquelo. "Tu nasceu com a cor da pele daquele homem!", sussurrava a avó. Mas o menino, quando a quentura começava a tomar conta do seu corpo, se jogava no rio e se misturava com a natureza. Não havia mais menino, não havia mais avó, não havia mais rio, não havia mais cortiço, não havia mais floresta. Tudo que havia era somente vida, presença de vida, naquelas manhãs claras e calorosas, embora fosse dezembro, o mês em que começavam a cair as chuvas torrenciais sobre a Amazônia.
     "Vem pra cá, menino!", chamava a avó, quando deixava de esfregar a roupa suja e descansava um pouco. Era a hora da passagem do garapeiro. Como era mesmo o nome do garapeiro? Que importa lembrar isso agora? Vinha lá de longe o homem da canoa que transportava garapa e bolos de vários sabores - milho, mandioca, coco. O menino subia na balsa, sentava-se ao lado da avó, recebia a garapa servida num copo improvisado de papelão e o pedaço de bolo. O garapeiro gostava de conversar. Falava das coisas que aconteciam do outro lado do rio. Às vezes, reclamava dos grandes navios que singravam o rio Negro, cortando o horizonte. Que máquinas possantes eram aquelas? De onde vinham e para onde iam?
     Certa vez, o garapeiro, que conhecia muitas palavras, não apenas do português brasileiro, mas também dos muitos vocabulários indígenas e até dos idiomas europeus, se atreveu a dizer para a avó analfabeta do menino: "Aquele lá, grandão, cheio de gente que fica olhando pra cá, veio da Escandinávia!". A avó gargalhou, zombeteira, que palavra horrível era aquela? Escandinávia? Mas o menino não riu. E fixou o olhar no horizonte, no imenso navio, cujo comandante se aproximara além da conta, chegando mais perto das margens, provocando o alvoroço das águas, o banzeiro forte que até parecia uma onda de mar.
     O menino se levantou e acenou. A avó o olhou e julgou que ele estivesse endoidecendo. Bem que ela receava alguma estranheza naquela criança, coisas de estar ora aqui neste mundo, ora do outro lado, no meio do invisível. Ou então do gosto que ele tinha pelas palavras. Ou o medo que dava nela quando ele parecia cair num abismo de silêncio, como se não fosse mais menino e houvesse se transformado em pensamento. "Tu está olhando o quê?"
     "Uma menina da Escandinávia!", respondeu o menino.
     O garapeiro riu da imaginação infantil. A avó aprofundou o seu medo de que a loucura viesse pegar seu neto. Que o invisível o levasse para longe dela. Nem o garapeiro, nem a avó, nenhum dos dois conseguiria entender o enigmático espírito daquele menino capaz de enxergar uma menina no convés do enorme e possante navio no horizonte. Havia, sim, para ele, bem dentro da sua imaginação poética, uma menina que o olhava desde o navio. Uma menina que, em instantes, iria embora para longe dele. Qual seria o seu nome? Qual seria a cor dos seus olhos? Quais seriam os seus gostos? Será que ela gostava de filmes de faroeste? Será que escutava os boleros que o pai dele gostava de ouvir na boemia? Que tipo de amor fertilizava o coração daquela menina que lhe respondeu o aceno? Talvez ela quisesse vir para a beira do rio, ficar perto dele, beber um copo de garapa e comer um pedaço de bolo de mandioca. Talvez ela quisesse brincar de mergulhar e nadar no rio de águas escuras. Talvez até ela tomasse coragem de pôr os pés na miséria em que ele vivia.
     O navio se foi e levou a menina da Escandinávia para muito longe. Deu vontade nele de ser um pássaro para voar atrás daquela máquina que singrava os rios e os mares. Que levava um amor que só poderia ser factível num poema. Ele fechou os olhos e se despediu da menina da Escandinávia. Deu um salto para dentro d'água e ficou brincando com os encantados do fundo do rio.
     Quando voltou à tona, sua avó trabalhava arduamente debaixo do sol causticante, o garapeiro havia seguido seu destino.
    Ele se lembrou da menina da Escandinávia, olhou o horizonte e disse que, em alguma época, no visível ou no invisível, ele a encontraria dentro de um aceno de mãos. Não mais um aceno de despedida, e sim um gesto de quem chega para ficar e nunca mais ir embora. Intuiu que aquela menina muito provavelmente não gostava dos filmes de faroeste, nem de boleros melodramáticos, nem de frivolidades, nem de coisas que não tivessem o sabor de poesia. Disse a si mesmo que outro seria o lugar de encontro com aquela bela menina que ele conservou na memória. Talvez nos Noturnos de Chopin, talvez nos Allegros de Vivaldi, talvez nas Danças Húngaras de Brahms, talvez numa taça de vinho suave, talvez num almoço preparado e servido por ela em louças finas, talvez nos muitos poemas que foram escritos para que o amor não fosse um sem-lugar no mundo.
     A menina da Escandinávia é um poema do menino ribeirinho! Nada se parece tanto com a liberdade quanto esse escrito feito de garapa e de ventos, de sonhos e de águas, de visível com transcendência. Todos os dias, lá vem o navio, de muito longe, trazendo uma mulher que já foi menina encantada por um menino ribeirinho. Ele a espera. Todos os dias. Embalado por Chopin, Vivaldi e Brahms.

Um comentário: