quarta-feira, 3 de maio de 2017

Abaporu

     Somos várias pessoas diante da obra de Tarsila do Amaral: Abaporu. Um homem de pés enormes fincados na terra. Um homem com uma pequena cabeça apoiada numa das mãos. Um homem aparentemente melancólico em um ambiente seco, quente, áspero. Acima dele o céu intensamente azul e o sol que parece causticante.E ao seu lado um cacto verde. Pode-se interpretar que sua cabeça pequena significa escasso pensamento crítico; que suas grandes mãos e seus grandes pés fazem lembrar o homem da roça, enraizado na terra e no trabalho duro do camponês; que as cores usadas aludem às cores da Bandeira brasileira. Diz-se também que Tarsila se inspirou em O Pensador, de Rodin, a expressão do europeu racional e civilizado, para compor o seu oposto, o nativo brasileiro. Já se falou tanto nesse quadro que somos capazes de recitar sobre ele poemas memorizados. Todos nós sabemos: Abaporu é um quadro pintado por Tarsila do Amaral. E quando falamos assim estamos adequando o conhecimento com a coisa; e ainda adequando a coisa ao conhecimento. Verdade no sentido de adequação. Os visitantes do Centro Cultural estão todos de acordo, ou seja, na "verdade" da concordância. Verdade em sentido tardio, por assim dizer.
     E dizemos, como sabichões da arte: "Esta é a obra mais importante do Modernismo brasileiro"; ou então: "É uma pintura a óleo, sobre tela, com 85 cm de altura por 73 cm de largura"; ou ainda: "Foi pintada em 1928, por Tarsila do Amaral, com a qual presenteou seu então marido, Oswald de Andrade, inspirando-o a redigir o Manifesto Antropofágico".
     Abaporu: o símbolo máximo da pintura modernista brasileira. Ao pintar essa obra, Tarsila. experimentou a verdade não no sentido tardio de adequação do conhecimento à coisa, e vice-versa, mas no sentido da verdade como liberdade. Ela se assumiu autenticamente como pintora, ultrapassando a relação de "sujeito-autor e obra de arte", postando-se, em meio às cores e à tela, como uma passagem para o dizer da pintura. Isso é a inspiração mais singela do verdadeiro artista: ser o lugar em que a coisa vem acontecer, a ideia transfigurada na criação artística. Tarsila apelou ao sagrado; e o sagrado apelou a Tarsila. Sincronizaram-se numa mesma tonalidade afetiva.
     É assim que Abaporu vem ao nosso encontro com esse sentido: o homem e o Brasil rural dos anos 1920, mais braçal que intelectual, se desencobrem no quadro, como um acontecer de verdade - a verdade como liberdade. Abaporu é a abertura originária do seu mundo, sendo obra de arte unicamente no âmbito que se abre através dela. Seu ser como obra de arte só pode vigorar nessa abertura, e é por essa razão que se diz que o acontecimento da verdade está na obra: algo se desencobriu nela, algo não vigente passou a viger como realidade vigente da obra. Por isso precisamos retirar da obra todas as referências ao que ela não é propriamente, deixando-a repousar só para si e só em si mesma. Abaporu só pode receber esse sentido porque se pôs num âmbito aberto, isto é, na dimensão histórica de um mundo no qual Tarsila vigorou em sua possibilidade mais própria de artista. Isso quer dizer que Abaporu não é obra de arte porque a olhamos como objeto de museu ou galeria de arte e objetivamente a predicamos como tal; ou porque os guias culturais e funcionários do museu a apresentam dessa forma, mas sim devido a essa abertura de mundo que se manifestou e permaneceu nela: a manifestação daquele país rural em processo de transformação cultural, vigentes na tela a óleo e na figura humana distorcida.
     Tarsila e a verdade como liberdade. O deixar-ser do ente tal qual ele é mesmo. A manifestação intensa do ser, que só pôde ser captado por Tarsila porque ela se entregou, singelamente, à transcendência de si mesma (deixou de ser a mulher comum das atividades corriqueiras para ser a artista) e à manifestação do que lhe foi revelado. Uma epifania em todos os seus aspectos.
      Em 2016, os brasileiros puderam ver o Abaporu de perto na cidade do Rio de Janeiro. Hoje é preciso ir até Buenos Aires. Lá se encontra essa obra-prima da arte plástica. Mais precisamente, no Museu de Arte Latina.

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