Escreveu Primo Levi, em É isto um homem?, sobre sua experiência em Auschwitz. Em toda a sua narrativa sobre a vida e a morte nos campos de extermínio nazistas, o que subjaz em seu dizer e mostrar o horror é a transformação da essência humana em nada. O escritor italiano nos leva àquele lugar em cuja entrada se lia a frase sombria ARBEIT MACHT FREI - o trabalho liberta -, a expressão da linguagem que norteava, de maneira distorcida e perversa, a eliminação dos inimigos do sistema totalitário. Traz-nos à reflexão o Mal e o desamparo do homem sem Deus. Precisamos pensar com Primo Levi sobre nossa condição humana, agora que o ódio também conquistou a primazia em muitos corações brasileiros aturdidos pelos movimentos da política interna. Os ódios de hoje se parecem muito com os ódios de outrora.
Os habitantes de Auschwitz perdiam sua condição humana sob a racionalidade exterminadora dos nazistas e experimentavam a impossibilidade de vislumbrar, minimamente, o próprio destino; literalmente, encontravam-se no fundo do abismo, atordoados com a incerteza do futuro imediato: se comeriam hoje, se faria sol ou se nevaria, se tudo estava perdido ou se ainda poderia haver salvação. Eram animais atocaiados pelo homem-monstro, o mensageiro da morte, a suástica impiedosa. Não se sentiam mais gente, eram apenas molambos, homens vedados a sonhar com o retorno aos seus lares, às suas famílias, às suas pátrias.
Ao lembrar-se que já fora um homem livre, Primo Levi assim se descreveu:
"Aqui estou, então: no fundo do poço. Quando a necessidade aperta, aprende-se em breve a apagar da nossa mente o passado e o futuro. Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos. Aprendi a não deixar que me roubem; aliás, se vejo por aí uma colher, um barbante, um botão dos quais consiga tomar posse sem risco de punição, embolso-os, considero-os meus, de pleno direito. Já apareceram, no peito de meus pés, as torpes chagas que nunca irão sarar. Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; mesmo o meu corpo já não é meu; meu ventre está inchado, meus membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro dias, custamos a reconhecer-nos." (Em É isto um homem?, p.35).
O homem ao deus-dará.
O então Papa Bento XVI, em sua viagem apostólica à Polônia, visitou os campos de concentração de Auschwitz e Birkenau, no domingo de 28 de maio de 2006. Naquela ocasião, fez um discurso polêmico. Primeiramente, atribuiu aos dirigentes nazistas a responsabilidade exclusiva por aquela obra do ódio e do Mal, desconsiderando o suporte do povo alemão ao genocídio comandado por Hitler. Em seguida, talvez como manobra de retórica, introduziu Deus em sua argumentação, ao indagar sobre a ausência e o silêncio divinos em face da aniquilação de tantos inocentes sob as garras do nazismo:
"Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do Mal?"
Por que Deus nada fez e tudo permitiu?
Aliás, nós, homens, temos o direito de fazer esta pergunta?
Que Deus tem a ver com a responsabilidade dos homens pelos seus próprios atos?
..........
(continuação na próxima semana: O homem ao deus-dará II, Soljenitsin e os gulags soviéticos.
domingo, 28 de maio de 2017
domingo, 21 de maio de 2017
O curumim exilado
Em tempos de muito ódio no país, até da parte dos que se dizem tolerantes e defendem a diversidade das opiniões, prefiro o silêncio da meditação, que é um pensar de reminiscência. Não se trata de escapismo e de um simples recolhimento à solidão. Tampouco um recurso à fantasia. Mas sim de um ardil com que se pode penetrar noutras dimensões da existência e encontrar algum sentido para existir fora dos horizontes áridos da estupidez vigente. Pois é preciso ser muito, muito ardiloso para conseguir escapar dessas asperezas cotidianas e ficar além das banalidades.
Longe de mim fechar os olhos e repetir mantras, como se assim fosse possível modificar a vida. Não, eu gosto da vida do jeito que ela é, mesmo quando incompreensível, mesmo quando dolorosa, mesmo quando bruta. Nada espero, mas faço tudo o que deve necessariamente ser feito. Portanto, o silêncio dessa meditação se dá mesmo no meio dos tumultos e dos desapontamentos. E dentro dessa quietude a gente pode ser como o dia que nasce e a noite que chega. Trata-se de um lugar quieto e de um tempo quieto bem no coração do mundo.
Há uma dimensão em que se pode meditar desse jeito. Falo dessa dimensão mítica com que dizemos as coisas de forma peculiar. Sem precisar de lógica utilitária, conceitos de moralidade, regras de igreja, pruridos de consciência, razões de Estado ou qualquer coisa semelhante para que simplesmente a vida se dê como um acontecimento que a gente acolhe no espírito com infinita gratidão.
Digo tudo isso, como preâmbulo desnecessário, movido por uma postagem de um amigo no Facebook nesta manhã. Uma mesa posta com pão, manteiga, café, leite, banana frita, cuscuz salgado e cuscuz doce, açaí com farinha de tapioca e...pupunhas! Quem diria que essa visão de um café da manhã de minha infância pudesse realçar tanto o meu sentimento de estrangeiro dos últimos tempos. Sensação de falta do essencial. Um homem que se sente estrangeiro em qualquer lugar é como um menino perdido no escuro. Tem medo das cores do dia e tem medo dos ruídos da noite. Não reconhece as palavras no meio do vozerio dos estranhos. Não experimenta acolhimento de casas com portas e janelas abertas. Precisa se esquivar das esquinas e evitar ser esfaqueado na mínima distração. Todo lugar mais adiante é sempre uma fronteira que ficou para trás.
Mas se houver poesia nesse estrangeirismo todo...Ah, quem sabe possa estalar as mãos. Assim era quando pequeno encurralado no escuro. Estalava as mãos, e vinham os pirilampos abrindo caminho entre as sombras e as visagens, como aquela cavalaria dos filmes de faroeste ou como uma mulher com gosto autêntico de estrelas. É que a poesia, no fim das contas, pode ser essa dimensão da reminiscência e da solidão criadora. Aí, finalmente, o estrangeiro vê que não passa de um curumim exilado. E que é preciso brincar, brincar e brincar muito, para afastar os estrangeirismos que machucam desnecessariamente o espírito. Brincar é um verbo que substitui, à perfeição, o verbo odiar, o verbo sofrer, o verbo morrer.
Longe de mim fechar os olhos e repetir mantras, como se assim fosse possível modificar a vida. Não, eu gosto da vida do jeito que ela é, mesmo quando incompreensível, mesmo quando dolorosa, mesmo quando bruta. Nada espero, mas faço tudo o que deve necessariamente ser feito. Portanto, o silêncio dessa meditação se dá mesmo no meio dos tumultos e dos desapontamentos. E dentro dessa quietude a gente pode ser como o dia que nasce e a noite que chega. Trata-se de um lugar quieto e de um tempo quieto bem no coração do mundo.
Há uma dimensão em que se pode meditar desse jeito. Falo dessa dimensão mítica com que dizemos as coisas de forma peculiar. Sem precisar de lógica utilitária, conceitos de moralidade, regras de igreja, pruridos de consciência, razões de Estado ou qualquer coisa semelhante para que simplesmente a vida se dê como um acontecimento que a gente acolhe no espírito com infinita gratidão.
Digo tudo isso, como preâmbulo desnecessário, movido por uma postagem de um amigo no Facebook nesta manhã. Uma mesa posta com pão, manteiga, café, leite, banana frita, cuscuz salgado e cuscuz doce, açaí com farinha de tapioca e...pupunhas! Quem diria que essa visão de um café da manhã de minha infância pudesse realçar tanto o meu sentimento de estrangeiro dos últimos tempos. Sensação de falta do essencial. Um homem que se sente estrangeiro em qualquer lugar é como um menino perdido no escuro. Tem medo das cores do dia e tem medo dos ruídos da noite. Não reconhece as palavras no meio do vozerio dos estranhos. Não experimenta acolhimento de casas com portas e janelas abertas. Precisa se esquivar das esquinas e evitar ser esfaqueado na mínima distração. Todo lugar mais adiante é sempre uma fronteira que ficou para trás.
Mas se houver poesia nesse estrangeirismo todo...Ah, quem sabe possa estalar as mãos. Assim era quando pequeno encurralado no escuro. Estalava as mãos, e vinham os pirilampos abrindo caminho entre as sombras e as visagens, como aquela cavalaria dos filmes de faroeste ou como uma mulher com gosto autêntico de estrelas. É que a poesia, no fim das contas, pode ser essa dimensão da reminiscência e da solidão criadora. Aí, finalmente, o estrangeiro vê que não passa de um curumim exilado. E que é preciso brincar, brincar e brincar muito, para afastar os estrangeirismos que machucam desnecessariamente o espírito. Brincar é um verbo que substitui, à perfeição, o verbo odiar, o verbo sofrer, o verbo morrer.
sábado, 13 de maio de 2017
Dona Ana sempre amada
Ainda faltavam seis dias para que ela completasse dezessete anos. Pois no sábado, dez de agosto de 1957, ela sentiu as dores do parto logo depois do almoço. Foi levada às pressas para a Santa Casa de Misericórdia. Ali, faltando quinze minutos para as cinco da tarde, deu à luz seu primeiro filho, o primogênito dos nove que viriam mais tarde. Não sei como os astros se posicionavam no céu da Amazônia naquele instante. Tampouco se uma onça ou o Mapinguari urraram no fundo da floresta. Ou se os ventos moveram com mais força as águas do rio Negro. Até hoje ignoro se as grandiosidades e as pequenezes do nosso destino já se encontram presentes nessa primeira lufada de ar que penetra com força nos pulmões das crianças e delas arranca um choro de espanto. Eu era apenas um menino muito branquinho que havia brotado no meio da oca.
Deixo a memória correr no rumo daquela época. A gente morava no final da Avenida Sete de Setembro, numa estância (nosso modo de dizer a palavra cortiço) que começava numa calçada esburacada e terminava numa escada de madeira encardida com vista para o rio Negro. Morava-se em quartos e porões em condições precárias. Havia um corredor úmido, de paredes verdes de musgo, que nos conduzia para o barranco do rio, depois de passar pelo pátio das latrinas coletivas.
Desde pequena, minha mãe era trabalhadeira. Junto com a tia Rosa, sua irmã mais velha, ajudava a vovó Paula na lavagem de roupa pra fora. A vovó se sentava na balsa de sapopemba, debaixo de sol forte, e lavava a roupa das famílias de posse daquela provinciana Manaus. Mamãe e a tia Rosa cuidavam dos varais e quaravam os lençóis brancos. Daquele pedacinho de terra, entre o rio e o cortiço, cuidado por aquelas mulheres fortes e imbatíveis, vinha o pão de cada dia. Elas, mais tarde, passariam aquela roupa toda a ferro de carvão. E aos sábados, mamãe botava o tabuleiro de roupa na cabeça e ia embora para entregar às madames a roupa cheirosa da semana. E para trazer as trouxas de roupa suja.
Certo dia chegaram ao cortiço uns soldados do quartel do Exército da ilha de São Vicente. Entre eles vinha um cabo de nome Humberto e que era conhecido como Ticá, porque gostava muito de beber um guaraná com esse nome. Era um moço humilde, gentil, galanteador. Conquistou a mamãe, que ainda pouco mais que uma criança foi dividir a vida com ele. Ela ignorava que ele também gostava muitíssimo de beber cerveja e arrastar os pés no Cabaré do Chinelo. Deu a ele muitos filhos e o perdoou incontáveis vezes por tantos desatinos. Cuidou dele até o fim.
Hoje a mamãe enfrenta a ameaça do escuro do Alzheimer. Às vezes, ela se perde nas deslembranças, nos pesadelos, nos delírios, nas incertezas. Mas se reencontra com a lucidez quando suas crianças de antigamente, agora todas transformadas em gente madura, chegam à sua casa com os netos e bisnetos. Ela pede música e alegria, que já está exausta da melancolia e da solidão. Quando se perde a memória e o rumo das ventas, mergulha-se inevitavelmente num abismo desprovido de cantorias. Este é o caso dela. Ah se Deus pudesse quarar minha mãe num varal estendido às margens do rio Negro, ah quem dera ela pudesse receber tanto sol divino que desmanchasse a escuridão do Alzheimer e o esquecimento de si mesma. Mas as águas do rio Negro não são as águas de Betesda, e é preciso a gente se conformar com o desamparo debaixo dos céus.
Que amanhã, segunda-feira, faça um dia muito radiante em Manaus. Que a família se reúna em algum instante do dia. Que corra uma brisa fresca durante a tarde. Que à noite faça lua cheia exuberante sobre o rio Negro. Eu não vou estar presente. Ainda tenho coisas para fazer longe de lá, eu que me tornei estrangeiro dentro do meu próprio país e fui viver noutras terras. Mas sei que vou retornar para as grotas e os igarapés das minhas florestas. Vai chegar o dia em que meu exílio já não fará mais sentido. Então poderei me juntar, em definitivo, aos meus antepassados, aos meus mortos, aos meus vivos. Enquanto isso, brava dona Ana, mulher a quem devo a vida, por favor, venha um pouquinho para fora das sombras. De longe fico amando a senhora com todas as minhas forças, com toda minha virilidade, com toda minha inocência. Lá no fundo de mim existe um menino branquinho, meio espantado com a vida, que até hoje se lembra, com saudade, do seu aconchego.
Deixo a memória correr no rumo daquela época. A gente morava no final da Avenida Sete de Setembro, numa estância (nosso modo de dizer a palavra cortiço) que começava numa calçada esburacada e terminava numa escada de madeira encardida com vista para o rio Negro. Morava-se em quartos e porões em condições precárias. Havia um corredor úmido, de paredes verdes de musgo, que nos conduzia para o barranco do rio, depois de passar pelo pátio das latrinas coletivas.
Desde pequena, minha mãe era trabalhadeira. Junto com a tia Rosa, sua irmã mais velha, ajudava a vovó Paula na lavagem de roupa pra fora. A vovó se sentava na balsa de sapopemba, debaixo de sol forte, e lavava a roupa das famílias de posse daquela provinciana Manaus. Mamãe e a tia Rosa cuidavam dos varais e quaravam os lençóis brancos. Daquele pedacinho de terra, entre o rio e o cortiço, cuidado por aquelas mulheres fortes e imbatíveis, vinha o pão de cada dia. Elas, mais tarde, passariam aquela roupa toda a ferro de carvão. E aos sábados, mamãe botava o tabuleiro de roupa na cabeça e ia embora para entregar às madames a roupa cheirosa da semana. E para trazer as trouxas de roupa suja.
Certo dia chegaram ao cortiço uns soldados do quartel do Exército da ilha de São Vicente. Entre eles vinha um cabo de nome Humberto e que era conhecido como Ticá, porque gostava muito de beber um guaraná com esse nome. Era um moço humilde, gentil, galanteador. Conquistou a mamãe, que ainda pouco mais que uma criança foi dividir a vida com ele. Ela ignorava que ele também gostava muitíssimo de beber cerveja e arrastar os pés no Cabaré do Chinelo. Deu a ele muitos filhos e o perdoou incontáveis vezes por tantos desatinos. Cuidou dele até o fim.
Hoje a mamãe enfrenta a ameaça do escuro do Alzheimer. Às vezes, ela se perde nas deslembranças, nos pesadelos, nos delírios, nas incertezas. Mas se reencontra com a lucidez quando suas crianças de antigamente, agora todas transformadas em gente madura, chegam à sua casa com os netos e bisnetos. Ela pede música e alegria, que já está exausta da melancolia e da solidão. Quando se perde a memória e o rumo das ventas, mergulha-se inevitavelmente num abismo desprovido de cantorias. Este é o caso dela. Ah se Deus pudesse quarar minha mãe num varal estendido às margens do rio Negro, ah quem dera ela pudesse receber tanto sol divino que desmanchasse a escuridão do Alzheimer e o esquecimento de si mesma. Mas as águas do rio Negro não são as águas de Betesda, e é preciso a gente se conformar com o desamparo debaixo dos céus.
Que amanhã, segunda-feira, faça um dia muito radiante em Manaus. Que a família se reúna em algum instante do dia. Que corra uma brisa fresca durante a tarde. Que à noite faça lua cheia exuberante sobre o rio Negro. Eu não vou estar presente. Ainda tenho coisas para fazer longe de lá, eu que me tornei estrangeiro dentro do meu próprio país e fui viver noutras terras. Mas sei que vou retornar para as grotas e os igarapés das minhas florestas. Vai chegar o dia em que meu exílio já não fará mais sentido. Então poderei me juntar, em definitivo, aos meus antepassados, aos meus mortos, aos meus vivos. Enquanto isso, brava dona Ana, mulher a quem devo a vida, por favor, venha um pouquinho para fora das sombras. De longe fico amando a senhora com todas as minhas forças, com toda minha virilidade, com toda minha inocência. Lá no fundo de mim existe um menino branquinho, meio espantado com a vida, que até hoje se lembra, com saudade, do seu aconchego.
terça-feira, 9 de maio de 2017
O mais feio dos homens segundo o Zaratustra de Nietzsche
1.
Introdução
Após dez anos de entrega ao cultivo
do seu espírito e à sua solidão na montanha, acompanhado apenas de seus animais
– a águia e a serpente –, Zaratustra, certo dia, já cansado de ficar sozinho e
por viver em abundância de conhecimento, decide descer para o vale, porque
desejava transmitir sua mensagem ao mundo.
Assim como o Sol que o iluminava, todos os dias, e depois, ao anoitecer,
declinava no horizonte, Zaratustra resolve também ter o seu ocaso entre os
homens – ir ao encontro destes e anunciar-lhes uma boa-nova, a vinda do Além do homem após a morte de Deus.
Em sua primeira peregrinação pelo
vale, Zaratustra depara com um velho homem na floresta, o Eremita – o primeiro
niilista que ele encontra; aliás, a figura do homem que ainda desconhece a
morte de Deus. Os dois haviam se encontrado dez anos antes. O velho se lembra
de Zaratustra e reconhece mudanças em sua fisionomia, em cujos olhos ele
encontra pureza e em cuja fala não vê qualquer sinal de náusea. Zaratustra lhe
diz que, então transformado pelos longos anos de meditação na montanha, retorna
ao mundo porque ama aos homens e a eles quer dar, como presente, sua mensagem.
O Eremita, que também se afastara do mundo e se recolhera ao isolamento na
floresta, por sua vez, ao contrário de Zaratustra, já não amava aos homens, mas
apenas a Deus. Zaratustra percebe que o homem desconhecia a morte de Deus, pois
continuava atado ao sentimento de hostilidade à vida, ao desejo de ser redimido
dos seus pecados e à ilusão de um lugar além do mundo. Zaratustra se despede
dele e segue seu caminho, passando um longo tempo “falando ao deserto” em sua
pregação, sem jamais ser compreendido pelos homens. Então, já não tendo o que
fazer no vale, retorna à sua caverna na montanha.
Em sua caverna, Zaratustra volta a meditar
durante longo tempo, esperando a sua hora de retornar ao vale. Muitos anos se
passam, seus cabelos embranquecem. Certo dia, quando está sentado sobre uma
pedra a contemplar os precipícios, o vale e o vasto mar ao longe, seus animais
– a águia e a serpente – se aproximam dele e lhe perguntam se ele estava em
busca da felicidade. Zaratustra lhes responde que não visava mais à sua
felicidade, mas sim à sua obra, que ele considerava incompleta. É que Zaratustra,
em sua infinita generosidade, sentindo-se como um fruto amadurecido e doce, pronto
para ser desfrutado por quem estivesse à sua espera, ainda se predispunha a
falar aos homens. Sua doçura, sua alma silenciosa, tudo isso provinha do seu
mel, que ele desejava oferecer aos homens – sua sabedoria, seus discursos.
Ao
convite dos seus animais, então, ele sobe ao cume do monte para realizar o
“sacrifício do mel”. Ele, que efetivara
em si mesmo o mandamento pindárico “Torna-te o que tu és!”, continuava a
aguardar o sinal para descer até o abismo humano, a fim de fisgar agora os
tipos mais singulares, não mais a gentalha que o desprezava e não o compreendia,
mas os homens sábios. Ele não tem pressa, seu destino lhe dá tempo, por isso aguarda
com paciência o advento do “grande e longínquo reino dos homens, o reino
milenar de Zaratustra” (NIETZSCHE, 2008, p.284).[1]; e
por esse motivo quer falar agora aos homens superiores[2],
aos que, havendo tomado conhecimento da morte de Deus, ignoravam o que fazer com
suas existências sem mais aquele antigo horizonte de sentido – a perspectiva do
Cristianismo. Eles se diferenciavam dos demais homens e do Eremita, o velho
santo da floresta, de quem Zaratustra se afastara para não lhe retirar o único bem
que ainda lhe restava: a ilusão de que Deus continuava vivendo. Zaratustra
quer, por fim, resgatar os que já sabem da morte de Deus.
Este
breve ensaio trata de esclarecer sucintamente alguns aspectos de um desses
tipos de homem superior: o mais feio dos
homens.
2. O tipo mais feio dos homens
Depois de ser visitado pelo adivinho
– o profeta anunciador do último homem, do grande cansaço após a morte de Deus
e da exaustão humana com a vida que não mais valia a pena sem a redenção cristã
– Zaratustra ouve, vindo lá de baixo, um pedido de socorro. Na verdade, ele
virá a ouvir diversos clamores por socorro, que nada mais são do que os apelos
dos homens superiores que vêm ao seu encontro. Ele irá ao encontro deles e os
convidará para que subam até sua caverna e desfrutem a companhia harmoniosa da
águia (a razão) e da serpente (o instinto). Um desses necessitados a clamar por
Zaratustra é o mais feio dos homens[3].
Zaratustra já o conhece.
Decididamente o mais feio dos homens não era um daqueles que se encontravam no
mercado em que o Louco adentrou, em plena manhã, com uma lanterna acesa, a
gritar; “Procuro Deus! Procuro Deus!” e ainda: “Para onde foi Deus? Já lhes direi!
Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos” (NIETZSCHE, 2007,
p.147)[4],
enquanto todos zombavam dele, inclusive o mais feio dos homens (provavelmente
deveria estar naquela multidão). O último dos homens, esse mais feio de todos,
não apenas sabia da morte de Deus, mas ele próprio o matara, por rancor e por
mesquinhez, a fim de se livrar de um senhor demasiado exigente.
O encontro entre Zaratustra e o mais
feio dos homens se dá no vale das velhas e gordas cobras, lugar aonde elas se
dirigiam na proximidade da hora de morrer. Nessa terra desertificada, no
acontecimento da morte de Deus, Zaratustra depara com a figura inominável do
homem mais asqueroso, sentado no chão, entre as velhas serpentes que, perto da
morte no deserto, já não podem mais mudar a pele, ou seja, não têm mais vigor
para se transformarem como o fazem todas as cobras de tempos em tempos. São
iguais aos homens petrificados nas crenças obsoletas que haviam caducado com a
morte de Deus.
O mais feio dos homens se dirige a
Zaratustra: “Ó Zaratustra! Ó Zaratustra! Adivinha o meu enigma! Fala! Fala! Que
vem a ser a vingança contra a testemunha? [...] Adivinha o enigma que eu sou!
Vamos, fala! Quem sou eu?” (NIETSZCHE, 2008, p.310). Zaratustra se deixa tomar,
subitamente, por compaixão pelo homem mais feio, mas logo se lembrou dele e o
reconheceu, reerguendo-se com o semblante firme e com estas palavras: “Eu bem
te conheço! És o assassino de Deus!
Não suportaste aquele que te via, que te via sempre e até o mais fundo do teu
ser, ó tu, o mais feio dos homens! Tiraste vingança contra essa testemunha!”.
(Ibid., loc.cit.) (grifo nosso). Sim, o mais feio dos homens havia se vingado de
Deus, matando sua testemunha vigilante. E bem sabia ele, quando viu Zaratustra
se recobrar daquele instante de fraqueza e compaixão, que o profeta do Além do homem adivinhara o que se movia
na alma do assassino de Deus.
Zaratustra o respeitara ao suspender
em si qualquer sentimento de compaixão. Deus morrera pelos homens por
compaixão. O mais feio dos homens se sentiu respeitado por Zaratustra, embora o
tenha induzido a se compadecer dele. Ao fazê-lo, Zaratustra reconheceu que o
mais feio dos homens dispunha de forças e não era um fraco. Deus não era assim:
Deus se compadecia dos homens, lhes retirava a robustez de que o espírito
precisa para suportar os reveses e dar a volta por cima. O Deus compassivo
deprimia os homens porque lhes suprimia “os afetos tônicos que elevam a energia
do sentimento de vida” (NIETZSCHE, 2007, p.13)[5].
Assim eram o cristianismo e seus sacerdotes ascetas: impediam que os homens
pudessem interpretar o mundo sob a pluralidade das muitas perspectivas
possíveis e os reduziam à estreiteza da interpretação cristã.
O mais feio dos homens, não
satisfeito em matar Deus, havia elaborado outro horizonte para a existência
humana, o cristianismo secularizado, poderoso e unívoco, carrasco e presunçoso
como fora a religião: a ciência, com sua busca de certeza e segurança, e com
seus procedimentos técnicos, e com sua meta e finalidade universais, um ideal
ascético germinado na forma do niilismo ativo. Afirma Nietzsche, no aforismo 23
da III Dissertação de A genealogia da
moral, que não houve jamais um sistema de interpretação tão bem elaborado
quanto este, que não admite qualquer outro modo de interpretar e que só
acredita na sua primazia em relação a qualquer outra vontade de poder:
Ele acredita que
nada existe com poder na Terra que não receba somente dele um sentido, um
valor, um direito à existência, como instrumento para sua obra, como meio e
caminho para sua meta. Onde está a contrapartida desse sistema compacto de
vontade, meta e interpretação? Por que falta a contrapartida? Onde está a outra
“uma meta”? Dizem-me que não falta, que não apenas travou um longo e feliz
combate contra esse ideal, como já o teria dominado em tudo aquilo que importa:
toda a nossa moderna ciência seria testemunha disso – esta ciência moderna,
que, como verdadeira filosofia da realidade, evidentemente crê apenas em si
mesma, evidentemente possui a coragem, a vontade de ser ela mesma, e até agora
saiu-se bastante bem sem Deus, sem Além e sem virtudes negadoras. [...].
A verdade é
precisamente o oposto do que se afirma: a
ciência hoje não tem absolutamente nenhuma fé em si, e tampouco um ideal
acima de si – e onde é ainda paixão, amor, ardor, sofrer, não é o oposto desse ideal ascético, mas antes a sua forma mais recente
e nobre.. [...].
O fato de que se
trabalhe com rigor na ciência e de que existam trabalhadores satisfeitos, não demonstra em absoluto que a ciência
como um todo possua hoje uma meta, uma vontade, uma paixão própria da grande fé.
(2006, p.135-136). (grifos nossos).
Dessas
passagens podemos extrair dois temas que merecem ser comentados, mesmo que seja
de maneira sucinta: a secularização do ideal cristão no niilismo (após a
constatação da morte de Deus) na ciência e na técnica moderna; e a compaixão
como indutor e amplificador da fraqueza do homem.
Veja-se o caso do ideal ascético
cristão e a forma como se seculariza na ciência e na técnica moderna.
Nietzsche, já no Prólogo de Assim falou Zaratustra, chama-nos a
atenção para essa felicidade do homem moderno[6]. O
povo ria e fazia pouco caso das suas palavras, e Zaratustra opta por guardar
silêncio, consciente de que aquelas pessoas não o compreendiam, “não sou boca
para esses ouvidos”. Mas identifica neles algo que os orgulha muito, aquilo que
os homens chamavam de instrução. Assim,
Zaratustra lhes fala ao orgulho: “Vou, portanto, falar-lhes do que há de mais
desprezível: ou seja, do último homem. [...] Vede! Eu vos mostro o último
homem. ‘Que é o amor? Que é a criação? [...] assim pergunta o último homem,
piscando o olho”. O mais asqueroso dos homens percorre toda a Terra, andando
aos pulinhos, apequenando-a e desertificando-a; ele reconhece que não é apenas
o homem mais feio: “sou também o que tem os pés maiores e mais pesados; por onde
eu passei, o caminho é ruim; devasto e torno intransitável todo o caminho em
que piso” (NIETZSCHE, 2008, p.311)[7].
“Inventamos a felicidade, dizem os últimos homens, piscando o olho.[...] Ainda
trabalham, porque o trabalho é um passatempo, mas cuidam de que o passatempo
não canse. [...] Quem, ainda, deseja governar? Quem, ainda, quer obedecer? Por
demais penosas são ambas as coisas”. Vê-se, claramente, que os fracos ressentidos,
ao invés da luta dura por reconhecimento e por uma vida ascendente, optam pela
simples conservação da vida. Basta conservar-se dentro dos limites entre o Bem
e o Mal e esperar o Céu redentor. As bem-aventuranças não pertencem a este
mundo. Ora, esse ideal cristão nos levou, segundo Nietzsche nos aponta em
várias partes de sua obra filosófica, “pela via jurídica, à democracia liberal,
que atribui a todos igualdade de direito frente à lei, e, pela via econômica, à
democracia socialista que atribui a todos igualdade dos direitos frente às
necessidades” (GALIMBERTI,206, p.683)[8].
Examinemos agora a compaixão como
indutor e amplificador da fraqueza do homem, do seu ressentimento e da sua
impotência. O homem adoece por causa da compaixão alheia. Em completa ausência
de afetos fortes, ele não tem vontade para fazer aparecer e durar a vida
ascendente. Faltam-lhe as forças para se recuperar dos seus reveses e das suas
enfermidades; não pode curar-se, não pode convalescer e tampouco agir desde a
vontade de poder positiva que emana da vida mesma – os acontecimentos, o
destino que o homem saudável e potente deve amar necessariamente em todos os
prazeres e em todas as dores, o amor fati.
Quando convalescente, durante um dos
seus percalços em sua primeira peregrinação entre os homens, Zaratustra teve
forças para chamar o “pensamento abissal” das profundezas do seu espírito – o
eterno retorno[9]:
“Eu, Zaratustra, o defensor da vida, o intercessor da dor, o assertor do
círculo – chamo-te a ti, ó meu abismal pensamento! Viva! Estás vindo, eu te
ouço. O meu abismo fala, revolvi e trouxe à luz a minha última profundeza” (NIETZSCHE,
2008, p.258). Zaratustra não se
compadeceu de si mesmo nem aceitou a compaixão alheia, por isso se reergueu e
pôde enxergar a vida conforme a perspectiva do seu mais abismal pensamento, o
eterno retorno. Ele também se acautela em relação ao mais feio dos homens e o
honra com a vergonha de haver se compadecido deste, momentaneamente, porque em
fazendo-o o enfraquecia e o impedia de crescer. Afinal, “quer seja a compaixão
de um Deus; quer seja a de um homem, a compaixão é contrária ao pudor” (Ibid.,
p.311). Zaratustra, o homem que busca conhecimento, “o animal que tem faces
vermelhas”[10],
diz que “o homem nobre impõe a si o dever de não envergonhar os outros: impõe a
si mesmo pudor diante de todos os que sofrem” (Ibid., p.117). E é por isso que Zaratustra
se ruboriza diante dos que sofrem: “Lavo a minha mão que ajudou o sofredor e,
por isso, limpo, também, a minha alma; pois, que eu visse o sofredor sofrer,
disto eu me envergonhei, pela sua própria vergonha; e, quando o ajudei, atentei
duramente contra a sua altivez” (ibid., p.118).
O mais feio dos homens reconhece a
verdade de Zaratustra quando este ensina com sabedoria ao dizer que “Todos os
criadores são duros, todo o grande amor está acima da sua compaixão” (Ibid.,
p.312). Ele se sente honrado com o pudor de Zaratustra. É por isso que o mais
feio dos homens utilizou “o machado que pode abater” para matar Deus.
Zaratustra adivinhou o enigma do mais asqueroso dos homens. Este se justifica
por haver matado Deus:
Mas ele (Deus) precisava
morrer: via, com olhos que viam tudo – via as profundezas e o âmago do homem,
toda a sua oculta vergonha e fealdade.
Sua
compaixão não conhecia pudor:
insinuava-se nos meus desvãos mais sujos. Esse mais curioso de todos os
curiosos, ultramolesto, ultracompassivo, precisava morrer.
Ele
me via sempre; de uma tal testemunha eu quis vingar-me – ou então preferia não viver.
O
Deus que via tudo, também o homem:
esse Deus precisava morrer! O homem não
suporta que uma tal testemunha continue viva! (Ibid., p.313) (grifos
nossos).
Este é o mais feio dos homens: o
assassino de Deus.
3. Conclusão
O mais feio dos homens, honrado por
Zaratustra, é convidado para subir até a caverna onde já se encontram a águia e
a serpente e também outro homem superior, o adivinho. Mais tarde irão se juntar
a eles todos os outros homens superiores que vieram ao encontro de Zaratustra.
E todos serão convidados para subir até a caverna. Zaratustra se torna para
eles o último refúgio numa existência que se lhes tornou desprovida de um
horizonte de sentido depois da morte de Deus.
Conclui-se este breve ensaio
dando-se a palavra ao próprio Nietzsche, que, em sua autobiografia, Ecce Homo, escreveu no capítulo
intitulado Por que sou tão sábio, com
muita propriedade, o caminho que o homem decadente faz na direção de uma vida
que representa para ele a cura de si mesmo. Mostra-nos como o homem deve
dispensar a compaixão alheia. Que o pudor de quem se envergonha de sentir pena
dele e o trata com altivez o conduz para uma vida saudável, ascendente,
afirmativa.
São de Nietzsche as seguintes
palavras;
Sem considerar que
sou um décadent, sou também o seu
contrário. Minha prova para isso é, entre outras, que instintivamente sempre
escolhi os remédios certos contra os estados ruins: enquanto o décadent em si sempre escolhe os meios
que o prejudicam. [...]
Tomei a mim mesmo
em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá
– é ser no fundo sadio. Um ser
tipicamente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para
alguém tipicamente são, ao contrário, o estar enfermo pode ser até um enérgico
estimulante ao viver, ao mais-viver. [...]
Fiz de minha
vontade de saúde, de vida, a minha filosofia...Pois atente-se para isso: foi
durante os anos de minha menor
vitalidade que deixei de ser um pessimista: o instinto de autorrestabelecimento
proibiu-me uma filosofia de pobreza e desânimo. E como se reconhece, no fundo,
a vida que vingou? Um homem que
vingou faz bem a nossos sentidos: ele é talhado em madeira dura, delicada e
cheirosa ao mesmo tempo. [...]
Inventa meios de
cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o
fortalece. (2009, p.23).
Com estas palavras, subamos todos
nós à caverna de Zaratustra.
Amém.
Referências bibliográficas
GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da
técnica. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006, 918p.
HÉBER-SUFFRIN,
Pierre. O Zaratustra de Nietzsche. Trad. Lucy
Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, 161p.
LEFRANC,
Jean. Compreender Nietzsche. Trad. Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2005,
327p.
NIETZSCHE,
Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 363p.
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad.
Mário da Silva. 17.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, 381p.
______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 141p. (Companhia de Bolso).
______. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, 179p.
______. O anticristo e ditirambos de Dionísio. Trad. Paulo César de Souza:
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[1] Cf. Assim falou Zaratustra, IV Parte, cap.1, O sacrifício do mel.
[2] Os tipos superiores de Nietzsche
são os seguintes: o adivinho, os dois reis, a sanguessuga (o sábio do espírito
positivista), o feiticeiro, o último papa (sem ofício), o mais feio dos homens, o mendigo voluntário e a sombra de
Zaratustra.
[3] Cf. Assim falou Zaratustra, IV Parte, cap. 7. Também o cap.5 do
Prólogo.
[4]
Cf. A
gaia ciência, aforismo 125.
[5] Cf. O anticristo, aforismo 7.
[6] Cf., Prólogo, 5, que bem se pode nomear de “o niilismo do último
homem”. É quando Zaratustra fala do último homem à multidão. Todas as falas
acima de Zaratustra para o povo fazem parte do aforismo 5 (páginas 40-41),
salvo a que se refere à Parte IV, O mais
feio dos homens.
[7] Cf. Assim falou Zaratustra, IV Parte, 7: O mais feio dos homens.
[8] Cf. Psiche e techne, VII Parte, Antropologia
da técnica: os sinais do futuro, cap. 51: Cultura de massa e sentimento
oceânico.
[9] Cf. Assim falou Zaratustra, III Parte, 13: O convalescente.
[10] Cf. Assim falou Zaratustra, II Parte, cap.3: Os compassivos.
quarta-feira, 3 de maio de 2017
Abaporu
Somos várias pessoas diante da obra de Tarsila do Amaral: Abaporu. Um homem de pés enormes fincados na terra. Um homem com uma pequena cabeça apoiada numa das mãos. Um homem aparentemente melancólico em um ambiente seco, quente, áspero. Acima dele o céu intensamente azul e o sol que parece causticante.E ao seu lado um cacto verde. Pode-se interpretar que sua cabeça pequena significa escasso pensamento crítico; que suas grandes mãos e seus grandes pés fazem lembrar o homem da roça, enraizado na terra e no trabalho duro do camponês; que as cores usadas aludem às cores da Bandeira brasileira. Diz-se também que Tarsila se inspirou em O Pensador, de Rodin, a expressão do europeu racional e civilizado, para compor o seu oposto, o nativo brasileiro. Já se falou tanto nesse quadro que somos capazes de recitar sobre ele poemas memorizados. Todos nós sabemos: Abaporu é um quadro pintado por Tarsila do Amaral. E quando falamos assim estamos adequando o conhecimento com a coisa; e ainda adequando a coisa ao conhecimento. Verdade no sentido de adequação. Os visitantes do Centro Cultural estão todos de acordo, ou seja, na "verdade" da concordância. Verdade em sentido tardio, por assim dizer.
E dizemos, como sabichões da arte: "Esta é a obra mais importante do Modernismo brasileiro"; ou então: "É uma pintura a óleo, sobre tela, com 85 cm de altura por 73 cm de largura"; ou ainda: "Foi pintada em 1928, por Tarsila do Amaral, com a qual presenteou seu então marido, Oswald de Andrade, inspirando-o a redigir o Manifesto Antropofágico".
Abaporu: o símbolo máximo da pintura modernista brasileira. Ao pintar essa obra, Tarsila. experimentou a verdade não no sentido tardio de adequação do conhecimento à coisa, e vice-versa, mas no sentido da verdade como liberdade. Ela se assumiu autenticamente como pintora, ultrapassando a relação de "sujeito-autor e obra de arte", postando-se, em meio às cores e à tela, como uma passagem para o dizer da pintura. Isso é a inspiração mais singela do verdadeiro artista: ser o lugar em que a coisa vem acontecer, a ideia transfigurada na criação artística. Tarsila apelou ao sagrado; e o sagrado apelou a Tarsila. Sincronizaram-se numa mesma tonalidade afetiva.
É assim que Abaporu vem ao nosso encontro com esse sentido: o homem e o Brasil rural dos anos 1920, mais braçal que intelectual, se desencobrem no quadro, como um acontecer de verdade - a verdade como liberdade. Abaporu é a abertura originária do seu mundo, sendo obra de arte unicamente no âmbito que se abre através dela. Seu ser como obra de arte só pode vigorar nessa abertura, e é por essa razão que se diz que o acontecimento da verdade está na obra: algo se desencobriu nela, algo não vigente passou a viger como realidade vigente da obra. Por isso precisamos retirar da obra todas as referências ao que ela não é propriamente, deixando-a repousar só para si e só em si mesma. Abaporu só pode receber esse sentido porque se pôs num âmbito aberto, isto é, na dimensão histórica de um mundo no qual Tarsila vigorou em sua possibilidade mais própria de artista. Isso quer dizer que Abaporu não é obra de arte porque a olhamos como objeto de museu ou galeria de arte e objetivamente a predicamos como tal; ou porque os guias culturais e funcionários do museu a apresentam dessa forma, mas sim devido a essa abertura de mundo que se manifestou e permaneceu nela: a manifestação daquele país rural em processo de transformação cultural, vigentes na tela a óleo e na figura humana distorcida.
Tarsila e a verdade como liberdade. O deixar-ser do ente tal qual ele é mesmo. A manifestação intensa do ser, que só pôde ser captado por Tarsila porque ela se entregou, singelamente, à transcendência de si mesma (deixou de ser a mulher comum das atividades corriqueiras para ser a artista) e à manifestação do que lhe foi revelado. Uma epifania em todos os seus aspectos.
Em 2016, os brasileiros puderam ver o Abaporu de perto na cidade do Rio de Janeiro. Hoje é preciso ir até Buenos Aires. Lá se encontra essa obra-prima da arte plástica. Mais precisamente, no Museu de Arte Latina.
E dizemos, como sabichões da arte: "Esta é a obra mais importante do Modernismo brasileiro"; ou então: "É uma pintura a óleo, sobre tela, com 85 cm de altura por 73 cm de largura"; ou ainda: "Foi pintada em 1928, por Tarsila do Amaral, com a qual presenteou seu então marido, Oswald de Andrade, inspirando-o a redigir o Manifesto Antropofágico".
Abaporu: o símbolo máximo da pintura modernista brasileira. Ao pintar essa obra, Tarsila. experimentou a verdade não no sentido tardio de adequação do conhecimento à coisa, e vice-versa, mas no sentido da verdade como liberdade. Ela se assumiu autenticamente como pintora, ultrapassando a relação de "sujeito-autor e obra de arte", postando-se, em meio às cores e à tela, como uma passagem para o dizer da pintura. Isso é a inspiração mais singela do verdadeiro artista: ser o lugar em que a coisa vem acontecer, a ideia transfigurada na criação artística. Tarsila apelou ao sagrado; e o sagrado apelou a Tarsila. Sincronizaram-se numa mesma tonalidade afetiva.
É assim que Abaporu vem ao nosso encontro com esse sentido: o homem e o Brasil rural dos anos 1920, mais braçal que intelectual, se desencobrem no quadro, como um acontecer de verdade - a verdade como liberdade. Abaporu é a abertura originária do seu mundo, sendo obra de arte unicamente no âmbito que se abre através dela. Seu ser como obra de arte só pode vigorar nessa abertura, e é por essa razão que se diz que o acontecimento da verdade está na obra: algo se desencobriu nela, algo não vigente passou a viger como realidade vigente da obra. Por isso precisamos retirar da obra todas as referências ao que ela não é propriamente, deixando-a repousar só para si e só em si mesma. Abaporu só pode receber esse sentido porque se pôs num âmbito aberto, isto é, na dimensão histórica de um mundo no qual Tarsila vigorou em sua possibilidade mais própria de artista. Isso quer dizer que Abaporu não é obra de arte porque a olhamos como objeto de museu ou galeria de arte e objetivamente a predicamos como tal; ou porque os guias culturais e funcionários do museu a apresentam dessa forma, mas sim devido a essa abertura de mundo que se manifestou e permaneceu nela: a manifestação daquele país rural em processo de transformação cultural, vigentes na tela a óleo e na figura humana distorcida.
Tarsila e a verdade como liberdade. O deixar-ser do ente tal qual ele é mesmo. A manifestação intensa do ser, que só pôde ser captado por Tarsila porque ela se entregou, singelamente, à transcendência de si mesma (deixou de ser a mulher comum das atividades corriqueiras para ser a artista) e à manifestação do que lhe foi revelado. Uma epifania em todos os seus aspectos.
Em 2016, os brasileiros puderam ver o Abaporu de perto na cidade do Rio de Janeiro. Hoje é preciso ir até Buenos Aires. Lá se encontra essa obra-prima da arte plástica. Mais precisamente, no Museu de Arte Latina.
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