sábado, 22 de agosto de 2020

O EXILADO

     O Estado exila seus oponentes quando distorce a divergência política, tornando-a crime institucional, e transforma o divergente em inimigo interno. E os manda para longe, onde os sabiás gorjeiam roucamente em suas palmeiras, tão diferentemente dos cantos melodiosos dos pássaros da Pátria deixada para trás. Lá, para além dos horizontes, noutros lugares em que serão estrangeiros saudosos da terra natal, os exilados protestam contra seus governos autoritários e sonham em retornar. 

     Há outro tipo de exilado. O que escolhe se autoexilar, por conta própria e por antecipação, às vezes até para adquirir visibilidade política, quando se sente incompatibilizado com um governo específico que chega ao poder. É um exílio com gosto de viagem de turismo, nem por isso menos sofrido quando verdadeira a incompatibilidade com os governantes de turno, porém hipócrita quando a motivação da ausência permanece implícita, encoberta, dissimulada. 

     Talvez o tipo mais doloroso de exílio seja o da estranheza em relação à vida e ao mundo. Porque não adianta correr para cá e para lá quando se perde a condição de ser-no-mundo e já não se vislumbra o sentido da existência. Não há mais mundo e não há mais porquês. Tudo é um niilismo insuperável. Faça sol ou faça chuva, o que perdura no espírito é a sensação dolorosa de vazio existencial. Dói tanto que é preciso chorar para se tornar essa dor possível de ser absorvida. Hora terrível essa em que o desalento se apropria de tudo que é nosso. Somem de vista as linhas de fuga, as vias de escape, os lugares clareados pelo Sol, a terra fertilizada pelas chuvas. Resta-nos somente a aspereza. Este é o exílio experimentado nos labirintos das perdas, dos lutos, da melancolia, do absurdo.

     A Vida chama de volta o exilado: vem para cá; abandona os vales da morte; espia o mundo do alto das montanhas; retorna à fonte originária dos seus rios, no fundo da grota, dentro da floresta; foge dessas cidades hostis; vem, Exilado, vem para a Pátria reencontrar os sabiás e os pintassilgos, novamente andar por ruas familiares e escutar palavras inteligíveis; vem, Exilado, trazendo toda a sua humanidade, para, enfim, descobrir o que há por trás do absurdo, do sem sentido das coisas, da densidade da melancolia, do pensamento obscuro. A Vida chama: vem ao meu encontro, Exilado!

     O Exilado se entrega ao apelo da Vida. Já não tenta decifrar enigmas. Desiste das suas utopias: sabe ele, o Exilado, que, enquanto homem, nada mais é do que um pássaro de passagem pelo mundo, e o que lhe importa essencialmente é sua ação de voar, nada mais que isso. 

     O Exilado voa no seu retorno à Pátria. Uma águia pensante é o homem. Mortal, precário, finito, voa e contempla a ampulheta. Transcende nesse tempo que se dilui nos dias clareados ou chuvosos. Em certo instante, toda a transcendência se dissipa, e o Exilado, agora como reminiscência, se mantém vivo na substância da memória dos amigos, dos vizinhos, dos amores. O enigma de viver se desvela em todo o seu Mistério: toda a inquietação da vida era simplesmente a saudade de uma gênese que a gente não sabe bem o que é e nunca vai saber. 

     Cessou o fluxo de areia na ampulheta. Tudo silenciou. Eis o reencontro com a Pátria. Agora tudo faz sentido.    

2 comentários:

  1. O Exilado poderia ser o maravilhoso e perturbador TEMPO? Educador, Desbravador, Acolhedor, Contador de Histórias, Namorado, Marido, Amante, Amigo, Pai e Filho.... O que couber exposto e escondido.

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  2. A interpretação é sempre do leitor. Múltiplas interpretações podem resultar da leitura de um texto. Uma ou outra poderá coincidir com a inspiração originária que levou o escritor a exprimir o que pulsava em seu espírito.

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