sexta-feira, 24 de julho de 2020

O ESPANTALHO


   O destino dos homens da periferia, sua vida crua, suas vísceras expostas. Vida de acordar muito cedo, em meio ao sobressalto do cansaço e da expectativa. Lavar o rosto ainda sonolento e se ver ríspido e árido no espelho: um espantalho. Gestos mecânicos. O de beijar depressa a mulher e as crianças, engolir o café ralo, sair com um pedaço de pão dormido na boca. Ligar o rádio de pilha para saber da violência da cidade e escapar da bandidagem. Experimentar o frio da madrugada, tossindo e espirrando. Tomar o ônibus cheio de gente fedorenta – por que há tanta gente que tem horror a banho?
   Sai de casa assim e ignora se vai conseguir retornar. Os perigos do caminho são inúmeros. O cotidiano é uma roleta-russa.
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   Algumas horas longe dos seus redutos perigosos.
   Mas quem sai precisa retornar. Voltar dos lugares privilegiados para o seu gueto. E ele o faz, diariamente, depois que já escureceu, em ônibus e trens lotados. Extenuado. Não é um homem que retorna para casa. É um espantalho suado, exausto, desnorteado. Gestos mecânicos. Que fome. Que ânsia. Entra já apontando o nariz no fogão, reclamando da comida insípida e do cheiro de fritura no cabelo da mulher. Ela também acabou de chegar. Pegou as crianças na creche da prefeitura. Veio correndo fazer a janta. Ovo borbulhando no óleo da frigideira. Carne moída. Macarrão com molho de tomate pronto. Garrafa de dois litros de Coca-Cola. A mulher tenta se justificar, dizendo que está assim tão desarrumada e malcheirosa, tão maltratada e tão sei lá mais o quê, porque deu duro o dia inteiro e agora precisa enfrentar a cozinha calorenta e sem ventilação. Ele se faz de surdo. Dentro do silêncio dele, às vezes fervilha a ira, outras vezes, somente a apatia se manifesta. Ele nada pensa. Apenas escuta a gritaria das crianças e dos vizinhos. A televisão ligada. O barulho da rua. Talvez esse estrondo de agora não seja fogo de artifício, mas o alvoroço dos tiroteios de todas as noites. Todos se jogam no chão da cozinha. Menos ele, que vai para detrás das frinchas da janela. Percorre o tumulto com o olhar de espantalho. Espanta os abutres – a morte que chega imprevistamente com suas balas de fuzil perdidas. Todos esperam passar a balbúrdia. Sirenes da polícia, das ambulâncias e dos bombeiros. Há um incêndio noutro quarteirão. Ele vê tudo pelas frinchas da janela. O grande horror de todas as noites. Mortos sendo levados para o Instituto Médico-Legal – vizinhos perdidos; nunca mais. Demora mais um pouco a confusão. Por fim, tudo volta à normalidade. Os gritos das crianças e dos vizinhos. A TV ligada. Cheiro de fritura.
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   Depois do jantar, bem mais tarde da noite, quando todos já se recolheram, ele se sente senhor absoluto da vida. Bebe cerveja e diz que precisa foder. A mulher diz que precisa tomar um banho. Ele não quer esperar. Que venha com todo o cheiro de fritura nos cabelos. Que venha suada. Que venha logo. E ele faz tudo com gestos mecânicos. Extravasa. Urra. Acalma-se. A mulher se levanta e segue para o banheiro. Vou me lavar, ela diz. Vou depois, ele diz. Fuma um cigarro. A mulher retorna e se deita. Ele já está roncando. Dorme e sonha com uma mulher requintada. Uma mulher cheirosa e bonita, que usa piercing no umbigo. No meio do sonho, o espantalho ri...


LEAL, Humberto B. O espantalho. In: ______. Águas mornas. São Paulo: Novo Século, 2016, p.41-42.

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