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Eu
estava de viagem marcada fazia semanas. Mas não podia dizer nada. Eu mesma
escolhi combater na selva, entrar na guerrilha. Tínhamos sido derrotados na
cidade, era preciso fazer a revolução no campo, nas matas, longe das forças do
governo. Conquistar uma região bem longe do meio urbano e lá, talvez, fundar,
dentro do país, outro país que pudesse ser reconhecido pelos governos
simpatizantes da causa. Meus companheiros me esperavam. Eles se encontravam
aqui, nestas matas e serras, havia vários anos. Muitos dos nossos tinham sido
presos ou mortos. Outros, desistido da luta. Naquela noite, mãe, quando vi a
comida na mesa e lhe disse que ia ao cinema, quase eu desisti. Sabia que talvez
não fosse nunca mais voltar. Melhor seria ter ficado e concluído meu curso de
Biologia, faltava tão pouco para terminar. E depois, como uma boa burguesa, eu
casaria e constituiria família. A senhora e o papai teriam netos. Mas a
revolução pulsava dentro de mim com mais força e convencimento. Se eu tivesse
jantado em casa naquela noite, teria perdido as forças de sair para a luta.
Quando eu saí de casa, percebi que
estava sendo seguida. Tentei despistar os agentes do governo. Estavam em toda
parte. Eu me hospedei na casa de uma amiga e, no dia seguinte, bem cedo, fui
para a rodoviária. Peguei meu ônibus e viajei mais de uma semana, de cidade em
cidade, até chegar a Pirilampo.
Cheguei aqui com esta mesma roupa.
As pessoas me olharam com estranheza, porque, naquela época, os que chegavam de
longe geralmente eram amigos dos que estavam na mata, perseguidos pelas forças
militares. E elas estavam amedrontadas, porque os militares as obrigavam a
informar tudo que fugisse à normalidade. Eu me apresentei como parente do dono
de um sítio e paguei a um sujeito chamado Raimundo, que trabalhava de mateiro. Ele
me levou até o sítio, que estava bem abandonado. Não havia sinal de vida.
Raimundo disse que os soldados tinham passado lá e arrebentado tudo. Alguns dos
meus companheiros haviam morrido e outros, escapado para a mata. Raimundo
apontou uma picada: “Eles fugiram por ali”.
Fiquei desesperada, não sabia o que
fazer. Pedi então ao Raimundo para me levar de volta a Pirilampo. Lá me
hospedei na única pousada do lugar, tendo apresentado uma documentação falsa. Para
me registrar, usei meu codinome, que era Selene. Meu dinheiro dava para ficar por
alguns dias, não mais que uma ou duas semanas.
Na metade da segunda semana,
apareceu alguém me procurando na pousada. Tive medo. Pensei que fossem militares
à paisana, que costumavam dar batidas para examinar a documentação dos
hóspedes. Cheguei a pensar em fugir pela janela que dava para a mata, mas a
dona da pousada me tranquilizou: “É o Raimundo, não se preocupe; ele disse que
seus amigos voltaram e estão esperando no sítio”.
Raimundo, que ajudava a guerrilha
por gratidão (o parto da mulher dele fora feito por uma guerrilheira que tinha
o curso de auxiliar de enfermagem), viera me procurar a mando dos meus
camaradas, que estavam na mata. Ele ia levar comida, munição e remédios. Ia se
encontrar com eles no sítio abandonado. Não havia perigo, ele repetiu isso
várias vezes. Desconfiei um pouco dessa história, porque muitos habitantes
locais estavam passando para o lado do governo, ou por dinheiro, ou por ameaça
de morte, ou simplesmente tortura.
Acompanhei o Raimundo. Não
inteiramente confiante em suas palavras. Mesmo assim, esta era minha única
oportunidade de me reencontrar com meus camaradas. Andamos um bom pedaço do
dia. Tudo transcorreu sem novidade até chegar ao sítio, onde dez companheiros
me esperavam. Sete rapazes e três moças. Cansados da vida na mata, doentes, mas
perseverantes na luta revolucionária. Eu disse tchau ao Raimundo e segui com a
guerrilha, floresta adentro. Fomos para o novo esconderijo, situado mais dentro
da mata, mas a pouco tempo de caminhada até o rio. Lá havia construções
rústicas e uma faixa desmatada de terreno para se plantar. Durante meses
trabalhei firme na roça, pegando calo na mão, de tanto manusear enxada, terra e
sementes. Cuidava da horta pela manhã e me adestrava em guerrilha durante a
tarde – tiro ao alvo, marchas através da floresta, prática de emboscada,
primeiros socorros. À noite, ia com as outras moças até uma escola do município.
Vários moradores se alfabetizavam. Lá eu dava aulas não apenas de alfabetização,
mas também de política. Muitas vezes, meu coração apertava, porque eu sentia
que estava perdendo tempo. Aquela gente resignada não tinha espírito de luta, tampouco
capacidade de sofrimento. Talvez fosse uma tremenda ilusão pensar que aquele
povo pudesse se transformar num exército de verdade.
As tropas do governo apertavam o
cerco. Tivemos de planejar nossa retirada. Sairíamos do acampamento em dupla,
dia sim, dia não. Cada dupla numa direção diferente. Depois de um mês nos
reuniríamos num lugar combinado, o Lago das Pedrinhas, que é como chamávamos
este lugar, por causa destas rochas com formato de gente e flor e destes seixos
nas margens.
Eu me evadi na companhia de um
guerrilheiro chamado Bento. Fomos os primeiros a deixar o acampamento numa
tarde de domingo. Seguimos para um casebre abandonado perto do rio, onde,
semanas antes, havíamos construído um depósito subterrâneo de comida, munição e
remédio. Ali permanecemos muitos dias.
Bento começou a apresentar febre
muito forte. Parecia recidiva de malária. Já não havia mais quinino em nosso
depósito. Bento resolveu se arriscar e procurar ajuda no posto de saúde de
Pirilampo, onde o enfermeiro Manoel costumava desviar medicamento para nós. “Vou
me tratar, Selene, e me encontro com você e com os outros, daqui a duas
semanas, no Lago das Pedrinhas”, me disse.
Fiquei sozinha naquele casebre. Sem
notícias. Durante muitos dias. Não sei quantos. Não havia calendários. Eu me
guiava pelos dias que amanheciam e pelas noites que chegavam. Jamais poderia
saber que as tropas do governo haviam atacado nosso acampamento. E que Bento
havia sido preso antes mesmo de chegar a Pirilampo. Sem forças para resistir ao
interrogatório, Bento contou tudo o que sabia. Um grupo de soldados veio para
cá, em busca de mim, trazendo como guia o Raimundo, que tinha se bandeado para
o lado deles.
No meio de uma manhã de sol, eu vim
me encontrar com Bento. Estava angustiada pela falta de notícias. O encontro no
Lago das Pedrinhas havia sido a última coisa combinada. Cheguei aqui com um
revólver na cintura, muito assustada, sem ver ninguém. Quase fui embora. Mas
resolvi esperar um pouco. Sentei-me nas margens deste lago e esperei. Já ia me
levantando para seguir meu caminho, por volta do meio-dia, quando avistei dois
camponeses, cada um carregando terçado, as cabeças descobertas, o andar lento.
Segurei o revólver com firmeza, me aprumei toda, mas afrouxei a guarda quando
vi que um deles era o Raimundo. Repus o revólver na cintura, sem desconfiar de
nada, nem mesmo quando o Raimundo levou a mão à cabeça, várias vezes, como se
estivesse arrependido de me trair e quisesse me avisar da emboscada. Já era
tarde para qualquer aviso. O homem que estava mais perto do Raimundo saiu
correndo em minha direção, gritando: “Selene! Selene! Nós te pegamos!”; e,
nisso, de repente, saíram da mata os outros que haviam montado o cerco. Todos
com as armas prontas para atirar. Queriam a minha rendição. Acuada, fui
recuando para o lago, com as mãos para o alto, só dizendo em completo pânico: “Minha
Nossa Senhora! Minha Nossa Senhora! e agora, Minha Nossa Senhora?”. Apontei o
revólver na direção deles e disparei. Mas não ouvi o som dos disparos de minha
arma. Escutei somente os tiros de fuzil, muitos tiros, mas não senti nada no
corpo, nenhuma ardência, nada mesmo, nem o gosto da morte. Meu corpo voou para
trás, eu só senti a brisa morna no rosto ao cair no lago e afundar nestas águas.
Enquanto eu desaparecia nestas funduras, eu escutava as vozes dos homens lá em
cima – “vamos mergulhar, temos de levar o corpo como prova de que pegamos a
Selene!” – e não sentia mais nada, salvo um entorpecimento incomum.
Eu me lembrava, naqueles instantes,
das histórias que o povo daqui contava sobre encantaria, e fiquei com medo de
ser transformada em bicho do fundo do lago, uma cobra, um peixe, meu Deus do
céu, então continuei a rezar, “minha Nossa Senhora, minha Nossa Senhora não me
encante em bicho do fundo do lago”, e pouco a pouco as vozes dos homens foram
sumindo, e também os meus medos desapareceram, e tudo enfim ficou bem quieto.
Naquela hora, me lembrei de você, mamãe,
de suas rezas, e sua voz chegou até a mim. Escutava suas palavras: “Nossa
Senhora, proteja minha filha de qualquer mal, da morte cruel”. E acho que a
senhora foi ouvida por Deus, mãe, e por isso Deus me transformou numa encantada
da floresta, não permitindo que eu virasse bicho do fundo das águas. Sou como
gente viva, apenas fiquei invisível. Ando pelas mesmas picadas, ajudo no que
posso as famílias necessitadas, acalmo as almas penadas dos guerrilheiros que
ainda se sentem vivos na mata e não aceitam que já morreram faz tempo.
Foi isso o que me aconteceu. Agora, só lhes peço que me perdoem por toda a
tristeza que lhes causei. Eu só queria fazer uma revolução e criar o novo
homem. Por isso inventei aquela história de ir ao cinema e faltei ao jantar que
você preparou para mim, mamãe. Mas descobri que não há o novo homem. O homem é o
mesmo que sempre foi e para sempre será – o tipo imperfeito, incoerente, mortal,
apenas humano, isso que só pode ser o que é e não pode ser outra coisa.
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(Continuação......Ana Agar: Epifania de Encantados, 3ª edição revisada e reescrita, publicado por editora Novo Século: www,novoseculo.com.br)