quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O romance Tomé Mayruna

Prólogo

   Por que escrever Tomé Mayruna?
   Fiz do meu particular universo mítico um poético e abstrato refúgio
chamado Literatura. Nessa espécie de lugar sagrado, convergem para um
ponto impreciso de mim sonhos e memórias, que somente subsistem
graças à arte das palavras - uns poucos substantivos, alguns sóbrios
adjetivos e dois verbos prediletos, desejar e lembrar, que eu conjugo
como quem decifra a metáfora do tempo e a substância da vida: nunca
estou em lugar algum, vivo no fluxo apressado dos acontecimentos.
   Dependo de reminiscências ou da imaginação para viver. Em outras
palavras, só enxergo manhãs clareadas quando já vi e memorizei o sol.
Escrevo textos aturdidos e urgentes, imitações do canto das cigarras de
minha rua, que cantam com frenesi porque pressentem a perturbadora
transitoriedade das coisas - cantam para a vida e secam para a morte.
Todos somos simulacros de cigarras, chegamos e vamos embora na
vertigem do tempo, aparecemos com o sol e sumimos na escuridão,
brotamos na saudade alheia e murchamos no esquecimento do mundo.
Existir e perecer formam a mesma metáfora das horas perdidas e dos
milagres ansiados.
   Algumas vezes, risco traços alegres ou não às variadas lembranças
de minha existência e construo memórias fingidas dentro de memórias
verídicas - mergulho, por assim dizer, em um labirinto de reminiscências
superpostas. Esse é um privilégio dos poetas e dos loucos, dispor do
atributo de lembrar o fato que existiu e o fato ainda por inventar - afinal,
toda literatura tem um resíduo indelével da loucura criativa e da fecunda
fragilidade humana. Escrever Tomé Mayruna resulta desse
incompreensível fato: se não o escrevo, me transformo em cigarra com
morte anunciada.
       Humberto B. Leal

PARTE I

A MEMÓRIA

Capítulo 1

     Madrugada. Tomé Mayruna, sozinho numa cela fétida da
delegacia de Marupiara, uma remota vila na Amazônia
brasileira, olha o céu e o casario através das grades. A solidão
e a iminência da morte fazem-no pensar e lembrar.

     “Daqui a pouco vai amanhecer. Sou testemunha solitária de tudo
que acontece nesta hora que antecede o clarear do dia de meu santo
guerreiro, São Jorge destemido, que matou muitos dragões e, dizem, vive
mesmo na Lua Cheia. Segundo os índios mapanas, esse santo católico, a
quem eles conhecem como Sawara Suçuarana, até hoje continua vivendo
nos terreiros das malocas e nos oratórios das casas das benzedeiras.
Apesar da minha fé nesse santo de guerra, sei que ele não vai aparecer,
derrubando tudo com seu cavalo, dizimando os meus inimigos. O meu
santo predileto está longe, brigando em outra parte desse céu grande de
Deus, e é por isso que me sinto completamente abandonado. Nem os
santos da igreja, nem os deuses da mata, nem os amigos do mundo,
ninguém pode fazer nada por mim.
     Estou vendo o relógio de parede da delegacia, o guarda Silvério
dormindo, uma luzinha de sol querendo aparecer entre nuvens escuras.
Há tanto silêncio em Marupiara, uma espécie de sossego misterioso, um
silêncio avassalador de Deus, que me assusto quando um galo canta, em
algum quintal, um canto de presságio ruim. Nem os bichos experimentam
paz nesta madrugada.
     Está mesmo amanhecendo e hoje vai ser um dia para ninguém
esquecer, porque está marcada a morte de um homem na forca e faz mais
de cem anos que aconteceu de alguém morrer assim em Marupiara. Esse
acontecimento estremeceu a vila: entre gente eufórica e gente pesarosa,
houve quem chegou a encomendar terno de linho, vestido de seda,
perfume estrangeiro, roupa de luto e velas roxas, para ver suspenso, no
ar da manhã, aquele a quem todos acusam de ser o Mapinguari, o maldito
que come carne humana, este humilde servo de Deus que vos fala.

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Um comentário:

  1. Você domina a arte da narrativa. É um prazer ler o que vc escreve. Narrativa fluida e linguagem adequada. Que bom ter mais um espaço de leitura e entretenimento.

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