terça-feira, 22 de setembro de 2015
Musgo e Vento de Fernando Magno
Subitamente veio o escuro, nunca mais o sol, nunca mais as estrelas: no olhar somente musgo e vento, o tempo poético que se chama infinito, a mistura de passado e futuro neste instante de agora, a poesia de Fernando Magno. O escuro veio com o acidente que lhe roubou a vista. Sem mais a intensidade das manhãs de sol, jamais se rendeu às trevas; ao contrário, fez uso da poética para clarear tudo que era para ser somente escuridão. Passou a enxergar com a memória e a trazer para o visível todo seu outrora. É esta a substância de sua poesia: a memória dos tempos da Amazônia em primeiro lugar; e, depois, todas as demais memórias dos tantos sons escutados, dos tantos cheiros sentidos, da imensa vida que continuou a desabrochar nele incessantemente.
Todas as vezes que vou a Manaus, eu me lembro de Fernando Magno. Não existe mais a cidade que sobrevive nele e em seus versos. O progresso a levou para longe, de tanto que foi empurrando o ermo das florestas para depois do horizonte. Agora, blocos de concreto e asfalto cobrem o que antigamente era mata e rio. E até mesmo a cultura amazônica, seu sagrado hoje esquecido, tudo isso deu vez aos fenômenos típicos das sociedades de massas. Entretanto, na poética de Fernando Magno tudo sobrevive. O sol que se insinua, por entre seus versos, ainda é o mesmo sol que seus olhos de menino e adolescente se acostumaram a contemplar sobre o rio Negro. É, portanto, pela vida e pelo sagrado que Fernando Magno escreve. Porque o sagrado - a própria vida, enfim! - o salva da escuridão e nos salva a todos do esquecimento, levando-nos à nascente de todos os rios.
Musgo e Vento foi lançado há pouco. É um livro de poesia escrito por um verdadeiro poeta. Pode ser encontrado nas livrarias da cidade. Oxalá que muitos venham a ter a alegria de ler os poemas de Fernando Magno. Sabe-se que poesia nada tem de utilitário, salvo o de registrar a passagem do humano pelo planeta. Ao fim e ao cabo, é o mundo que se torna privilegiado com a presença deste livro. Nada mais digo. Seriam palavras supérfluas. Deixo-lhes de presente Pássaro:
Prisioneiro alado
maiúscula vontade de ser voo,
fugir como flecha cortando os ares,
de que húmus embebeste teu canto
que se mostra assim tão doce?
Em qual nuvem talhaste teus pés de silêncio?
De que arco-íris as cerdas
com que bordaste o apogeu de tua fronte?
E esse peito de turmalina?
Teu cantar é tua maneira de ser livre
- sem legendas nem partituras,
livre como o sol das ruelas de Piquiri.
domingo, 6 de setembro de 2015
Um homem
Vive nesta rua um homem de sentimentos ambíguos, de
pensamentos desconcertados. Tudo nele é pueril, tumultuado, incerto, hesitante.
Aparenta a experiência de um homem bem vivido, mas sofre de ser criança pirracenta dentro
de um corpo maduro. Por isso é triste: porque perdeu a noção do tempo, embora
justifique a própria melancolia como um defeito de nascença. Este é outro grave
defeito dele: o de não falar objetivamente, o de valer-se excessivamente de
falas oblíquas, de obscuras metáforas. Tudo nele é máscara, por isso disfarça a
adolescência tardia com discursos circunspectos.
Adolescentes são adolescentes. Homens são homens.
Adolescentes sonham, homens vivem. Adolescentes nunca se amedrontam com a
morte, homens vislumbram incessantemente a morte. Quando dentro de uma mesma
criatura esses personagens ocupam o mesmo espaço, ao mesmo tempo, na mesma
vida, os resultados são patéticos: adolescentes sobrevivem em homens e homens
perdem sua solidez – lá dentro, um menino birrento resiste a morrer, e aqui fora um
homem envelhece sem se dar conta disso.
Assim é este homem de
minha rua. Taciturno, distante, irresoluto. Às vezes é visto na padaria, outras
vezes na quitanda; esporadicamente no botequim. Qualquer que seja o lugar onde
se encontre, diz coisas que ninguém entende. Se ele fala de política, não
apenas critica governos, como todos o fazem, mas também alude a repúblicas
platônicas lideradas por filósofos. Se ele fala de mulher, não apenas repete comentários
masculinos corriqueiros, como todos o fazem, mas também assinala a poesia que
existe em olhares, em andares, em vozes femininas. Se ele fala de solidão, diz
duas ou três palavras e depois, apático, se cala. Nada nele é incisivo, brutal,
rude, desconfiado, como se espera dos homens que já tiveram tempo de se livrar
da ingenuidade.
Quem é ele? Um poeta ou um filósofo?
Dele são estas palavras soberbas: “Toda arte é um ato de
magia, por isso escrevo; nesse fluxo de palavras e reminiscências, empreendo
uma marcha sem fim através da verdade. Caminho querendo enxergar um ponto de
luz geralmente inalcançável – não o sonho, mas a vida!”. Frases de efeito que
não combinam com o falar direto e seco dos outros homens. É isto ser poeta?
Esta
manhã, ele escreveu um soneto em louvor a um beijo de amor e, concluída a
obra-prima, renunciou aos mecanismos da poesia, ao constatar que nenhum beijo
de poema vale mais que um beijo propriamente dito – beijo de poesia escrita é
beijo ausente, beijo sem a boca do ser amado, beijo sem gosto de hálito e
saliva, beijo sem humanidade, beijo que nunca deixa de ser anseio para virar
fato.
Ainda
esta manhã, ele recorreu a tratados filosóficos escritos e lidos em grego
clássico. Ninguém o entendeu quando ele se expressou na linguagem cifrada dos
filósofos antigos. Ninguém compreende metafísica no botequim, que é lugar onde
só se entende de sobrevivência, da vida crua, do mundo infame. Ao reconhecer
que desconhecia o vocabulário usual dos outros e que não poderia mais se
comunicar com ninguém, silenciou de vez, renunciando também aos ardis da
filosofia.
O
silêncio desse homem é medo. Os outros opinam que é presunção. Mas é somente
medo, um medo invencível. Está diante de um navio, mas não se atreve a deixar o
cais. Está diante de um avião, mas se amedronta para enfrentar as nuvens, as
distâncias. Está diante das catedrais, mas tem medo dos céus e finge julgar-se
deus de si próprio. Está diante do mundo, mas é retido pelos muros do seu
refúgio ilusório. Está diante das pessoas, mas se agarra em desespero a
fantasmas solitários. Está diante da vida, mas não se decide a viver.
Por
sorte, passa agora pela rua uma procissão de revolucionários e de místicos. O
adolescente que sobreviveu no homem corre atrás dos revolucionários, pensando
em derrubadas de governos pelas armas. O homem que envelhece sem se dar conta
disso corre atrás dos místicos, almejando alcançar uma iluminação que só é
concedida aos santos. Para sua perplexidade, a procissão desaparece na esquina,
levando para sempre os revolucionários e os místicos, que eram apenas
espectros, nada mais que espectros, ou ideias que jamais seriam outra coisa
senão ideias. “Somos apenas simulacros, nós e todas as coisas...”, conclui na
esquina onde sumiram as derradeiras fantasias.
Só
há mundo infame, só há sobrevivência, só há vida rente à sarjeta. O homem
entende. Assim morre o menino pirracento que resistia a morrer, assim nasce o homem que
finalmente se dá conta de que vive para morrer. (A birra não combina com a inocência!).
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
Louvor à Rachel Leal
A
risada mais parece uma metáfora.
Metáfora
de quê?
Clarão
de sol numa cidade amanhecendo.
Marés
em noites enluaradas.
Alvoroço
de rua congestionada.
Rádio
tocando rock metal.
Praças
e ruas em passeatas.
Criança
tomando sorvete.
Adolescente
fazendo pirraça.
Metáfora
da própria vida.
Rachel
e sua risada. Menina mística.
Que
sabe gargalhar a boa magia.
Mas
se o avesso da vida a entristece,
Tudo
se converte em antítese e aridez.
As
ruas se transformam em ruas de feriado.
As
rádios tocam réquiem.
O
sorvete das crianças derrete.
As
revoluções dos adolescentes se esfumaçam.
Rachel
triste é uma metáfora das cinzas!
Longe
de Rachel sobrevivo desses ecos de risada.
O
insosso da ausência: cadê a Rachel?
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