segunda-feira, 1 de julho de 2013

ARTE POP E O BRASILEIRO ANTÔNIO BOKEL

Os Indiscerníveis na Arte e o Caso da obra de Antônio Bokel

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No mundo ocidental, a filosofia sempre se preocupou com a criação artística. Platão e Aristóteles consideraram a arte um ofício que implicava a imitação da natureza e das ações humanas. No século XVIII, A. G. Baumgarten inaugurou o termo estética para designar o estudo da beleza sensória, referida tanto ao belo natural quanto ao artístico. Kant ampliou o domínio da estética para incluir nele a crítica do gosto, e é com a estética kantiana que a beleza, em suas variantes de belo natural e belo artístico, recebeu o juízo estético "isto é belo". Hegel considerou a arte em sentido espiritual e histórico – espiritual por se tratar de produto da atividade humana; e histórico por representar uma das fases do percurso dialético da Ideia no mundo: o primeiro momento de consciência de si do Espírito, quando o Absoluto assume uma forma sensível. Como se nota, a filosofia sempre cuidou de pensar a arte, como se esta jamais pudesse alcançar a autonomia de pensar sobre si mesma.
Pode a arte pensar sobre si mesma?
Ou a arte tem seu valor em si mesma e nada denota, só significando algo enquanto se dá ao artista, entendido como o lugar e o instante onde o ser da arte se põe?
Hoje eu examino a primeira hipótese: a arte que deseja pensar sobre si mesma.
Noutra hora, comento a segunda hipótese: a do artista como o lugar e a hora da arte.
Talvez as duas hipóteses se mesclem. Escrevo pensando nisso...

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A filosofia diz o que é arte? Ou a arte quer dizer de si mesma?

Algo começa a mudar nas relações entre filosofia e arte na primavera de 1974, com a exposição das Brillo Boxes de Andy Warhol na Stable Gallery, em Manhattan. Segundo Arthur Danton, a prática artística com Warhol atinge o patamar de uma autoconsciência filosófica jamais atingida – a arte se transforma em filosofia ao se apoderar da indagação sobre a relação entre a obra de arte e a realidade, instaurando o questionamento sobre o que provoca a transfiguração do objeto comum em obra de arte, sendo ambos indiscerníveis sob o ponto de vista físico e visual, mas ontologicamente distintos. O juízo estético “isto é belo” já não responde à busca de definição de obra de arte, depois que caixas de sabão e latas de sopa adentram a galeria e perdem sua condição de utensílio para se transformarem em legítimos produtos artísticos. Para a contemporaneidade, o juízo estético se exprime de modo diferente do que preconizara Kant. Agora se diz: “isto é arte”.
As tradicionais pinturas, em suas variantes bem conhecidas da história da arte, passaram a dividir as galerias com obras polêmicas, tais como o urinol de Duchamp (A Fonte) e as latas de sopa Campbell – objetos banais, ready-mades transfigurados em produtos artísticos e legitimados pelo mundo da arte (ressalte-se que essa legitimação não implica juízos de valores, como “isto é boa arte” ou “isto não é boa arte”, mas tão somente que “isto é arte”). Para quem se educou esteticamente sob o influxo do mistério e do sublime artísticos, de fato pode ser decepcionante constatar que coisas corriqueiras, tais como garrafas de coca-cola e fotos publicadas em jornal, sejam consideradas obras de arte. Mas assim se dá na arte contemporânea: não se distingue, nestes casos, sob o ponto de vista da percepção visual, a realidade do objeto comum e a sua transfiguração em obra de arte, embora pertençam a duas regiões ontológicas distintas. A relação entre arte e realidade não acontece mais como simples mimese ou representação de uma realidade exterior. Agora essas esferas se interpenetram.

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A Arte Pop 

A arte pop é crítica, contemporânea, instigante, polêmica. Quando alguém visita uma exposição de arte contemporânea, precisa se livrar de certos “pudores estéticos puristas” e se predispor a interpretar o que encontra pela frente. Sim, porque o juízo estético “isto é belo” deixou de ser suficiente para entender as obras de arte que, ao invés de “quererem” ser belas, “desejam” ser interpretadas. “Ver uma coisa como arte requer no mínimo isso: uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento de história da arte. A existência da arte depende de teorias.”, diz Arthur Danto, em A Transfiguração do Lugar Comum. A esse propósito, enfatiza este filósofo que, afinal de contas, o que faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brilha é certa teoria da arte, pois esta teoria é que recebe a obra no mundo da arte e a impede de resvalar para a condição do objeto real que ela é. A teoria, ao que tudo indica, parece ter se tornado essencial para que alguém veja isso e aquilo como obra de arte; a pessoa, enfim, deve dominar algo de teoria artística, história da arte, tendências e movimentos etc. para apreciar a arte contemporânea. Tenho dúvidas a esse respeito, para ser franco. Será que as teorias artísticas teriam mesmo o papel de tornar possíveis o mundo da arte e a própria arte?A arte, para mim, suplanta as teorias, que vêm sempre depois.
Essa demanda de teorias e de interpretações gera dificuldades, por vezes incontornáveis, para o espectador. Muitos simplesmente desistem diante do que lhes parece incompreensível ou difícil de ser absorvido como prazer estético. O espectador persistente, entretanto, supera esses primeiros e notáveis empecilhos; ao avançar no caminho, sente, naturalmente, necessidade de esclarecer o conceito de arte contemporânea, para sentir e compreender o que está à sua vista, isto é, ser tocado pelo ser da obra de arte, isto é, para sentir a força da obra, presente como metáfora. Nesse sentido, a crítica se mostra prestimosa ao fornecer ao espectador, mediante interpretações dessas metáforas pictóricas, para que as pessoas reajam à força da obra.

É assim que o espectador, para fruir a arte, despende esforço e ocupação: apossa-se de conhecimento da história da arte, estuda teoria artística, frequenta exposições, vale-se do que escrevem os críticos, conecta-se com as questões culturais de sua época e se envolve com a problemática do mundo da vida. Afinal, hoje o desfrute dessa arte sentida e pensada é, sobretudo, interpretativo (embora o juízo estético não seja da ordem lógica).

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Dois exemplos da magnífica obra do brasileiro Antônio Bokel:
1) Graffity Celebrity:




Graffity Celebrity é um louvor à liberdade arrancada pelo grafiteiro da violência urbana e da existência marginal. Trata-se de escultura de cobre e latão sobre tronco de árvore, em cima do qual o artista ergue, com tijolo traspassado por uma estrutura metálica (óculos atingidos por projéteis de fuzil 7,62mm), um “altar” onde se louva a lata de tinta spray, toda pintada em dourado e com os seguintes dizeres: R.I.P. (Rest in Peace) – Graffity Celebrity.
R.I.P. – descanse em paz, o aviso inscrito na lata de spray, “arma” com que o artista da rua denota sua mensagem de inadequação e intempestividade com o presente; abaixo, o tronco de árvore, sobre o qual se vê o tijolo com os óculos metálicos traspassados pelos projéteis de fuzil. Podem-se presumir muitas coisas dessa obra: são múltiplas suas interpretações. Uma delas pode ser a seguinte: a obra como metáfora de dois polos antagônicos, a natureza sucumbida (o tronco de árvore) ante a construção urbana (o tijolo); entre eles, o humano, tentando, com seus óculos, superar a miopia que se instala na rotina de estresse e violência; aliás, uma tentativa vã, frustrada pelos tiros do fuzil: cegueira e falta de sentido; o grafite ou a arte espalhada nos muros urbanos, feitos a partir da “arma” lata de tinta em spray, seriam a expressão da liberdade na
confusa vida da cidade e da nostalgia do homem pela natureza perdida na arquitetura urbana. Esta talvez seja a metáfora que Bokel, com seu estilo bem peculiar, exprime em sua retórica artística. Lá fora do mundo da arte, um tronco de árvore é apenas um tronco de árvore em alguma floresta ou no que resta da floresta; o tijolo é apenas um tijolo que, com outras peças semelhantes, serve para levantar uma parede; os óculos, apenas óculos, com a função de reparar, talvez, um problema visual, como a miopia; os projéteis de fuzis, apenas balas de armas que simplesmente matam; e a lata de tinta em spray, apenas recipiente de tinta e utensílio com a função de pintar não necessariamente artística – ou seja, objetos corriqueiros; mas o artista os transfigura, inscrevendo-lhes um significado artístico, e os leva para o espaço legitimador do centro cultural.

2) Não Sente - Vazio; e Gato - Cat:


Não Sente – Vazio é constituída de uma cadeira de madeira danificada em seu centro, isto é, um enorme buraco no assento, com o aviso em tinta negra, Não Sente. Por baixo dela, junto ao chão, outro pedaço de madeira pintada de preto, com o escrito Vazio, na diagonal, em cor branca. A obra é apresentada em conjunto com Gato – Cat, que consiste de um bocal com lâmpada moldada pelo artista; o conjunto recebe uma cobertura de tinta dourada de spray. Do bocal, sobe um fio de cobre que, na metade do percurso, se emaranha, antes de alcançar um suporte no teto do salão.
A cadeira danificada e o bocal com a lâmpada suspenso por um fio de cobre trazem um significado extraído da vida urbana, muito provavelmente de uma favela da cidade do Rio de Janeiro. Como objetos corriqueiros, podem ser vistos como uma cadeira quebrada, na qual não se deve sentar porque o assento está com um grande furo; e ainda como uma ligação clandestina de energia elétrica. Banais como a vida das pessoas que têm cadeiras deterioradas em casa ou que dependem de “puxar a luz” dos postes de iluminação pública (os conhecidos “gatos”).
No salão do centro cultural, a cadeira quebrada e o bocal com lâmpada suspenso pertencem à região ontológica da obra de arte. A cadeira não se encontra ali com a função de comunicar o risco comum que representa para alguém disposto a sentar-se nela. Não é uma cadeira estragada, mas um objeto corriqueiro transfigurado em arte. Duas coisas chamam a atenção e reforçam o seu significado metafórico: os avisos de “Não Sente” traspassado pelo furo e o de “Vazio” sobre o fundo negro e colado ao chão. Provavelmente querem exemplificar a realidade de uma comunidade que, acossada pela violência urbana e por dificuldades de ordem social, vive na incerteza e na imprevisibilidade dos acontecimentos, sem o chão firme da vida possível de ser minimamente planejada. Não se trata de fazer sociologia com a arte, mas de transpor certa realidade para o espaço legitimador do mundo da arte. Falta o chão firme da vida possível de ser planejada. A cadeira com o furo no centro do assento exprime, por certo, o abismo escuro da ameaça cotidiana e imprevisível. Quando combinada com Gato – Cat, a obra da cadeira quebrada reforça o sem sentido da decadência e do desamparo. O habitante da favela não dispõe do assento que simboliza o conforto do burguês ou a estabilidade necessária para o enfrentamento das ameaças da rotina diária. Viver é perigoso, diria o Riobaldo de Guimarães Rosa. Tudo é abismo escuro, e até mesmo a providencial luminosidade chega ao morador da favela com escassez e marginalmente. O “gato”, artifício comum entre as pessoas que se apropriam ilicitamente de energia elétrica, agora transfigurado em arte, tanto pode chamar a atenção para a vida das pessoas destituídas da “luz do Estado”, como simplesmente indicar um modo de ser na luta da sobrevivência, o que implica safar-se de qualquer maneira, sem os obstáculos representados por valores morais.

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Experimentei grande alegria ao visitar, no primeiro semestre de 2012, a exposição de onze artistas brasileiros, no Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, sob a curadoria de Vanda Manglia Klabin.
A exposição recebeu o título de Gramáticaurbana.
As obras se propuseram a mostrar a interação entre o espaço cotidiano da cidade e a produção artística contemporânea. Entre eles, estava Antônio Bokel, designer, artista plástico, que tem apresentado trabalhos no Brasil e no exterior, em galeria e em intervenções urbanas.
O meu louvor a esse artista brasileiro. E, por que não dizer?, minha gratidão por ter me proporcionado, com sua arte, instantes de grande contentamento e talvez ampliação de minha compreensão sobre a arte contemporânea.

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