A TRANSCENDÊNCIA DO MENINO
Era um pedaço de rua, com alguns postes de iluminação, tão poucos que tudo parecia estar sempre escuro. O cortiço ficava nesse pedaço de rua. Havia rádios nas casas, gente concentrada nas radionovelas. Faz muito tempo tudo isso. Ali perto do cortiço insalubre, havia os fundos de uma loja maçônica, com uma iconografia que dava medo nas crianças. Mas, durante as festas juninas, acendia-se uma fogueira no terreno baldio das proximidades, onde também se costumava jogar o lixo que era queimado ao final do dia. Ao redor da fogueira, as mandingueiras faziam adivinhações, aproveitando-se da curiosidade da vizinhança que não se contentava com o excessivamente pouco de suas vidas e sonhava com futuros promissores.
Que promissão pode esperar o povo pobre? Promissão dos céus, o inusitado, o que só pode desvelar-se como acontecimento do Mistério? Ou promissão enganosa das mandingueiras que também precisavam se resignar com a precariedade de viver? Ainda assim, como uma necessidade insuperável de supraterreno, sonhava-se com as coisas que subsistem apenas no instante em que os desesperos dão vez para os doces anseios humanos. A ilusão é uma forma de coragem, porque, às vezes, estender as mãos para o inalcançável produz efeito degradê no escuro, e este bem depressa passa pelo cinza, com gosto de tocar na luminosidade.
Há os que esperam essas claridades provenientes do escuro. Lá dentro da escuridão sempre há um amanhecer. Era isso que o menino daquele cortiço ordinário na beira do rio conseguia enxergar: o despontar do Sol. Mesmo quando tudo, em seu entorno, se fazia do caótico, ele sabia que, para além do medo das coisas, havia algo que os olhos comuns não captavam, mas ele, sim, ele percebia tudo. E percebia com os mesmos olhos que enxergavam fantasmas. Ele percebia quando a manhã chegava, ainda que fosse demorar para que a noite se desfizesse. Ou se contentava quando havia luar sobre o rio, ou quando se atordoava diante da imensidão dos céus estrelados, com a imaginação fixada em deuses e santos.
O tempo levou embora o cortiço e a maioria dos que lá viviam. Até muitas crianças morreram precocemente. Porque a pobreza excessiva mata as crianças com as coisas mais bobas, como febres e disenterias descontroladas. O menino conseguiu sobreviver. Anda pelo mundo. Vai a muitos lugares. Às vezes o escuro daquela rua, uma espécie de fantasma melancólico, se apodera dele e o atordoa. Então ele faz de conta que ali, no meio da avenida ou da multidão, há um vasto rio onde, inevitavelmente, vindo das brumas, desponta o Sol. Ou o luar acalma as águas aturdidas. Ou as estrelas fazem pensar que, em algum ponto no infinito, o Sagrado quer se apossar do mundo com mais poesia e menos crueldade.
O menino agora sente mais de perto o finito. A sua hora pode chegar subitamente. Ele se amedronta. Mas logo se apruma quando pensa que algum tipo de transcendência pode haver para quem, ainda que de cabelos embranquecidos, guarda em si o menino sonhador e imortal.
Quem transcende não morre. Vai despontar como Sol em algum lugar. Ou clarear a noite como se fosse estrela ou fogueira de festa junina. Alegre como um saltimbanco.