Andamos
robotizados no âmbito de um mundo tecnológico em que todas as coisas parecem
haver se transformado em utensílios e no qual o próprio sentimento humano se
molda sob a força dos algoritmos. A cada dia os nossos cálculos presunçosos
buscam, de forma obstinada, medir e determinar a vida segundo uma subjetividade
pragmática, lógica, científica e neurótica, numa tentativa de retirar da
existência sua peculiaridade do imprevisível, do desamparo, da euforia, do
medo, da própria mortalidade. Há um risco de que, em meio às turbulências
contemporâneas, já não sejamos efetivamente humanos, não mais plasmados de
carne e ossos, vísceras e espírito, porém anjos decaídos formatados por
rebeldia, uniformidade e confusas fórmulas matemáticas. Vivemos sob a ameaça
silenciosa e traiçoeira da aniquilação da nossa humanidade, o bem maior com
que, desde sempre, nos movemos debaixo do Sol.
Eis que, no entanto, em sentido
redentor, manifesta-se um modo de ser oposto à automatização do homem e à
deformidade de sua vida causada pelo excesso de técnica. Que não nega a força
dos algoritmos. Que não desdenha da cibernética. Que não despreza a necessidade
dos cálculos, prognósticos e previsões para o cotidiano. Que não desconsidera o
valor dos utensílios. Que não rechaça o pragmático, o lógico, a tecnologia e
sua matemática. Ao contrário: um modo de ser que, sem perder de vista a
praticidade necessária à vida corriqueira, almeja devolver à existência algo
esquecido no instante em que perdemos a possibilidade de sonhar: o arcaico milagroso,
a época em que o caos originário adquiriu as formas e os nomes das coisas que
vieram das sombras para o intenso da claridade do seu aparecer. Aquilo que, sob
a força da gênese do Verbo, apareceu para existir em sua beleza e mortalidade,
a existência finita dos homens e das coisas perecíveis, a transfiguração primordial
do caos em linguagem poética, a vida precária e provisória consubstanciada com
a imortalidade. Assim aprendemos a vencer a Morte: no dizer poético das Musas e
nas suas peripécias contra o Esquecimento, quando, num enigmático, duplo e
simultâneo acontecimento de apropriação, elas se apoderam do ente humano porque
têm uma necessidade de se expressarem e porque, no mesmo instante, o homem
precisa dessa expressão poética para suportar e reverenciar a precariedade e a
finitude de sua própria vida. Em outras palavras, o fazer poético nos aparece
como se fosse vereda a cruzar os sertões do mundo, no encalço da imortalidade,
triunfando com as palavras sobre o Esquecimento. Afinal, o que é a Morte ante a
Linguagem originária, senão o culminar histórico da vida do poeta que soube
usar autenticamente sua liberdade criadora para configurar uma realidade
imperecível?
Assim
nos diz Rita Codá, essa intérprete brilhante da Poesia, em sua perspectiva
originariamente grega – ela, uma brasileira, nordestina, companheira
inseparável de Hesíodo e Homero – ao recordar-nos, em seu livro Rosalvo Acioli e Carlos Moliterno: dois poetas
a caminho da Piéria, que “mesmo na morada de Hades, aqueles que cultivam a
poesia escaparão do anonimato e do esquecimento, ou seja, da lei da morte”. Sem
dúvida alguma, o grande mérito da interpretação feita por Rita Codá se encontra
na perspectiva da interpretação originária dos poemas de Inventário de cinzas e A
ilha, livros que se fizeram escrever por intermédio desses dois grandes
servos das Musas, aedos alagoanos, respectivamente, Rosalvo Acioli e Carlos Moliterno. Não é que a ensaísta
desconsidere as teorias literárias e desconheça os rumos tomados pela poesia
contemporânea. Mas sua ênfase não está na aplicação das teorias sobre os
poemas, como se estes fossem meros objetos de um sujeito que os analisa
friamente de acordo com essa ou aquela doutrina literária. Definitivamente,
Rita Codá, com sua alma grega, lê e pensa os poemas com o olhar e o pensamento
que enxergam o instante em que eles vieram do fundo do abismo e se desvelaram
ao mundo como o mais originário que poderia emergir das entranhas das Musas.
Ela fala desde o lugar do Originário, definido por Heidegger, no primeiro
parágrafo de sua obra A origem da obra
de arte: “aquilo a partir de onde e através do que algo é o que ele é e
como ele é; a isto o que algo é, como ele é, chamamos sua essência”. Portanto,
a proveniência da essência dos poemas de Rosalvo e Moliterno pode ser enxergada
e experimentada na interpretação primorosa de Rita Codá. E nós, seus leitores,
com o suporte dessa grande Mestra que emprega a linguagem não como mera
comunicação, mas sim como o dizer do essencial, recebemos a dádiva de viver as
circunstâncias em que se deu a gênese da notável poesia desses dois poetas
alagoanos.
Vontade sinto de falar dos poemas de
Rosalvo Acioli e Carlos Moliterno. São grandiosos, magníficos. Mas essa tarefa,
neste caso, coube à pena de Rita Codá: bravo, Mestra, bravo! Somos todos
imortais, nós, os que fazemos e os que amamos a Poesia. Não morremos. As Musas
nos poupam da Aniquilação. As palavras prevalecem enquanto vida.