CRÔNICAS E MEMÓRIAS DA CALÇADA:
reminiscências de Rita Codá
Insurgente contra a mortalidade, mas
não a ponto de rebelar-se diante do modo de a vida se pôr e se esvair. Assim é
Rita Codá, com suas crônicas e reminiscências, disposta a confrontar-se com o
esquecimento, a resistir à fugacidade das coisas, a recriar mundos sumidos no
tempo. Nada se perde em sua memória, nada se deixa para trás, nada perde o
gosto sutil da saudade. Sua arma de lembrar é simples – a narrativa, com a
qual, insistentemente, palavra por palavra, faz sobreviver lembranças,
reinstaura realidades perdidas, revigora destinos consumados e clareia as
sombras que costumam engolir os mortos. Seu livro, inevitavelmente, nos remete à
fala de Édipo diante de Teseu (versos 607-609 de Édipo em Colono), que ela mesma traduziu no seu belo livro de
estreia, Epitáfios Gregos: “os deuses
são os únicos a quem não ocorre nem a velhice nem a morte, mas o tempo soberano
todas as outras coisas aniquila”. E, também, com suas crônicas, numa luta
obstinada contra a aniquilação, Rita Codá nos traz a riqueza do folclore
brasileiro, relatando as peripécias de fantasmas em lendas que se mesclam com
cirandas e cantorias de gente humilde. A cronista louva a vida que antigamente
era boa de viver e hoje é boa de lembrar.
A contemporaneidade tecnológica
desorienta o homem, ao automatizar as multidões alvoroçadas e opor-se ao
silêncio. Já não se escuta o que vem dos mistérios. Mesmo nas pequenas cidades
do interior, o dito progresso levou embora certo modo de viver que priorizava a
simplicidade e o humano. Há dissonâncias entre a tecnologia e o poético. Rita
Codá, então, se encarrega de conciliar essa desarmonia, ao retomar as vidas e
as histórias que parecem só encontrar guarida no imaginário. Fala das almas se
redimindo em penitências nos dias seguidos à morte, da luta que travam para
sair da escuridão, dos pactos feitos com os vivos em torno de um galo preto e uma
botija com dinheiro. Lembra a coragem de José Codá e Maria Rosa no
enfrentamento com vândalos revolucionários em 1930, jagunços violentos e
armados por latifundiários. Ri e faz rir com as crianças que brincam com
ximbras – bolas de gude, como se diz em Pontal da Barra – e meninos que se
espantam, debaixo das saias de uma mulher sem calçola, e descobrem que dona
Paulina tem “um siri com barba colada” entre as pernas. Conta, feito uma avó em
torno da fogueira, os acontecimentos de um casarão mal-assombrado, as crenças
nas orações contra as almas errantes. Lamenta, com nostalgia, o desaparecimento
de certos lugares em que a vida daquele tempo palpitava e que depois a urbanização
tratou de suprimir, como o casarão dos fantasmas que virou primeiramente
quartel de Marinha e depois órgão público. Comove-se e faz comover ao relatar
as brincadeiras do irmão caçula, Carlos Virgínio, dado a assustar os irmãos se
fazendo de assombração à noite. E investiga a origem do nome Codá, com a
perspicácia de quem quer reencontrar a força remota das origens da família.
Trata-se
de uma tentativa do poético de restaurar o humano no mundo da técnica excessiva.
Este é o grande mérito do esforço literário de Rita Codá em Crônicas
e Memórias da Calçada. Que cada um de nós se atreva a acompanhá-la
nessas veredas da saudade. É preciso coração simples para tanto.