1. Introdução
O
livro X de As leis de Platão destaca
a gravidade das licenças e insolências cometidas pela juventude, sugerindo, em
seu preâmbulo, para que se elaborem sabiamente as leis do Estado, a necessidade
de educação dos cidadãos, fundamentando-a na crença aos deuses: “ninguém que
acredite, como é prescrito pela lei, na existência dos deuses, jamais cometeu
uma ação ímpia voluntariamente ou proferiu uma palavra criminosa” (Leis, X, 885b). Por conseguinte, entre os que praticam e/ou estimulam a
injustiça, encontram-se os ímpios, agrupados pelo ateniense (em debate com
Clínias e Megilo, os outros protagonistas do diálogo) segundo três convicções: aqueles
que não acreditam nos deuses; aqueles que acreditam nos deuses, mas não que
estes se importem com os seres humanos; e aqueles que acreditam que os deuses
são passíveis de serem subornados por oferendas e orações.
Evidencia-se,
na elaboração do projeto legislativo para o Estado magnesiano, a predominância
do caráter essencialmente educador da lei, cujo alcance pedagógico deve ser
estendido à cidade inteira, não mais se limitando apenas ao governante. O
discurso filosófico se apresenta como sustentáculo da legislação, em forma de
preâmbulos, nos quais se formulam e se fundamentam as normas do bem agir,
precedendo os preceitos coercitivos do legislador; em outros termos, vem, primeiramente,
a persuasão e somente depois a coerção. A correta educação deve ser aplicada continuamente
desde a infância até a velhice[1] e,
neste sentido, encaixa-se o papel pedagógico da constituição legal.
Também
fica evidente, no discurso sobre a crença nos deuses, a tentativa de se
legitimar metafisicamente as leis humanas, confiando-se plenamente no ethos divino, ao invés de amparar-se,
por exemplo, na vontade dos mais fortes ou dos mais ricos. Ao tomar como base a
moral fundada pelos deuses, pode o homem justo amar a justiça em si mesma,
diferenciando-se do homem da “moral” comum, que é propenso a obter vantagens
com a injustiça, ao mesmo tempo em que se escuda na proteção das leis, reivindicando,
hipocritamente, valores e fazendo discursos de aparência sobre o bem, sem
qualquer relação com o ser. Vê-se em tal comportamento um simples cálculo de interesse
pelo homem que, embora amando secretamente a injustiça, se priva de realizá-la,
não porque ame a justiça, mas para não ter de sofrer as injustiças alheias ou
mesmo sofrer punições. O célebre mito do anel de Giges desvela o auge da injustiça:
assinala que o sonho secreto de cada homem é parecer justo sem o ser (República, II, 359b sq.)[2]. Ressalte-se, contudo, que a divindade em
Platão não é a mesma apregoada pelos poetas, mas sim um Bem supremo, que é
comprovado dialeticamente pela filosofia. O filósofo converte-se, pois, em
legislador, empenhado em educar toda a cidade contra a impiedade dos discursos
dos poetas e materialistas, que, em verso e prosa, desconhecem a anterioridade da
alma em relação ao corpo, pondo em primeiro lugar o que é último, isto é, os
princípios materiais. “A alma é mais velha que o corpo, e não diferentemente.”
(Leis, X, 892c).
Ao
identificar a impiedade como gênese da injustiça e estabelecer leis para que os
ímpios renunciem ao seu ateísmo em favor dos caminhos dos piedosos, o ateniense
atribui diferentes tipos de prisão e castigo, com o fito de restabelecer a
justiça. Ao fazê-lo, termina por incluir, entre os apenados, aqueles que,
embora não acreditando em deuses, nem por isso perdem seu caráter naturalmente
justo – ou seja, pune-se o justo pelo fato de ser ateu e não porque seja
injusto. Sem contar que, ao aplicar as leis para os demais ímpios, termina por
recair no que antes se queria evitar: a vontade arbitrária do mais forte – no
caso, o Estado. Trata-se, pois, de uma dupla contradição, isto é, tanto ao defender
os deuses – que não precisam da ajuda humana – com as penas dos homens quanto ao
punir o justo não porque seja injusto, mas por ser ímpio.
Com
uma breve reflexão sobre o que significa justiça no pensamento de Platão e o
sentido das leis contra impiedade, pretende-se, neste breve ensaio, tentar
compreender essa aparente antinomia.
2. A justiça em Platão e o sentido
das leis contra a impiedade
Nosso breve ensaio se estrutura em três
partes: numa primeira, esboça-se o conceito de justiça em Platão, com base em
seus argumentos sobre o homem e as virtudes cardeais, presentes nos quatro
primeiros livros de A república; numa
segunda, descrevem-se os tipos e subtipos de crimes de impiedade e as
diferentes prisões para as quais são destinados os ímpios, conforme o
estabelecido no livro X de As leis; e,
finalmente, numa terceira, comenta-se sobre a aparente contradição do fato de
uma lei humana punir em nome dos deuses.
Tratemos, inicialmente, do conceito
de justiça em Platão.
Toda a práxis política em Platão se volta, primordialmente, para a
dimensão ética e política da existência humana. Segundo Jaeger, “o problema
para o qual desde o primeiro instante se orienta o pensamento de Platão é o
problema do Estado” (2003, p.749). Toda a argumentação política e ética
platônica, em A república, como se
constata já na leitura do livro I, tem
como ponto de partida a busca da definição de justiça. Tem em vista com isso
estabelecer uma nítida diferenciação entre as esferas da ética e dos apetites
desmedidos, pois no agir do homem se mantém uma relação nem sempre simétrica
entre lei e desejo, e é dessa assimetria que, geralmente, emergem as crises
morais. Comumente, nessa relação entre desejo e lei, o homem se situa em três
posições: ou dá preponderância ao desejo, em detrimento da lei; ou abre mão do
desejo em prol da lei; ou opera o desejo em níveis mínimos, isto é, na justa medida,
em conciliação com a lei.
Como em seus diálogos anteriores,
Platão, por meio de Sócrates, continua a utilizar o método dialético em A república, em torno da definição de
justiça. Diante de Céfalo, para quem a justiça é “dizer a verdade e devolver o
que se tiver recebido de outrem”, diz:
Belas palavras as
tuas, Céfalo, disse eu. E, assim, afirmaremos que em si a justiça é
simplesmente dizer a verdade e devolver o que se tiver recebido de outrem? Ou
que é possível, às vezes, agir com justiça e, às vezes, contra ela? Por
exemplo, quando alguém, de um amigo que estivesse em seu juízo perfeito,
recebesse armas, se, estando fora de si, ele as pedisse de volta, todo mundo
diria que não deve devolver tais armas e que não agiria com justiça quem as
devolvesse, nem se quisesse dizer toda a verdade a alguém nesse estado. (A república, I, 331c).
Já com Polemarco, que se faz
porta-voz do poeta Simônides, para quem a justiça seria devolver a cada pessoa
o que lhe é devido, Sócrates apresenta sua refutação com o paradigma da techné (técnicas). Sócrates diz que
quando o poeta usou a expressão o que lhe
é devido, ele pensava que o justo seria dar ao outro o que lhe convinha:
Então, se alguém
lhe perguntasse: “Simônides, a quem e o que a arte chamada medicina dá o devido
e o conveniente?”, o que pensas que ele nos responderia? Polemarco responde:
“Evidentemente que aos corpos dá remédios, alimentos e bebidas”. (A república, I, 332c).
Ora, Sócrates, para opor-se à
pretensão democrática de que cada um pode se exprimir sobre qualquer assunto,
apresenta o paradigma da techné, ou
seja, o critério técnico que deve ser plenamente seguido por todos. O saber
técnico é o exemplo de um saber reservado. Quando se toca um domínio de
competência particular, cada um concorda que a palavra deve ser dada ao homem
de arte, àquele que mais sabe do assunto. Tem-se aqui a pedra fundamental do
socratismo, que torna ilegítimas as pretensões democráticas da multidão, pois,
muitas vezes, um só indivíduo pode ter mais razão do que muitos.
A dialética e a associação com as technai (técnicas) também são usadas por
Sócrates para refutar o sofista Trasímaco, que vê a justiça como o interesse do
mais forte. Ele demonstra a hierarquia das técnicas, dizendo que as diversas
artes não têm por objetivo a sua própria vantagem, pois não necessitam de nada,
mas sim a do indivíduo a que se aplicam. As artes governam e dominam o objeto
sobre o qual se exercem. A medicina, por exemplo, não visa ao vantajoso para a
medicina, mas para o corpo. A equitação, por sua vez, não visa ao vantajoso
para a equitação, mas para os cavalos; e assim por diante. Desse modo, Sócrates
afirma a Trasímaco que
[...] nenhuma outra
pessoa, em nenhum posto de comando, na medida em que é chefe, tem em vista e
impõe o útil para si mesmo, mas o útil para o governado e para aquele a quem
ele presta serviço e, voltando os olhos para isso e para o que é útil e conveniente
para aquele, diz tudo o que diz e faz tudo o que faz. (A república, I, 342e)
Esse diálogo se aprofunda pela
antropologia platônica no livro II de A
república, no qual, devido ao impasse sobre a definição de justiça, Platão
ampliará seus comentários sobre as technai
(artes) e buscará encontrar, pela dialética, uma techné superior, aquela que conterá o logos do ser e na qual se encontra a capacidade dos belos discursos
e a arte de governar. Duas argumentações sobre a definição de justiça merecem
destaque: a de Glauco, a partir do raciocínio de Trasímaco, e a de Adimanto, em
sentido contrário à de Glauco.
São
três os pontos argumentativos de Glauco: o primeiro, o que afirma ser a justiça
e qual a sua origem: a justiça seria um acordo entre os homens, mediante o qual
estes se privam do maior bem, que é cometer a injustiça, em vista de não
sofrerem o mal maior, que é ser vítima da injustiça; o segundo, o que afirma
que todos os que praticam a justiça o fazem contra a vontade do que realmente
gostariam de fazer, ou seja, todos gostariam de praticar a injustiça, em
decorrência da predominância do desejo ilimitado sobre a lei (primazia da epythimia em cada homem, isto é, do
desejo sensível); ora, ao se conceder ao justo e ao injusto a possibilidade de
fazerem o que bem quiserem, sem coerção, logo se apanhará o justo em flagrante
a cometer injustiça, ou seja, buscando o mesmo objeto buscado pelo injusto, em
razão da sanha, hybris; o que se
busca como bem (quando invisível, como no mito do anel de Giges) é o bem
sensível; a justiça, por conseguinte, é vista como uma repressão do desejo; e o
terceiro, o que afirma que a vida do injusto é muito melhor do que a do justo,
uma opinião não compartilhada por Glauco, embora este se sinta embaraçado por
ouvir como válidos os argumentos de Trasímaco e outros sofistas, que dão a
esses discursos dissociados do ser uma aparência de verdade. Quanto a Adimanto,
a argumentação sobre a justiça se põe em sentido oposto ao de Glauco. O
argumento apresentado é uma tese elogiosa à justiça, mas se percebe que, por
trás da aparência de verdade do discurso, o que se assume é a injustiça, o
propósito de se desacreditar a justiça.
Fica
bem evidenciado o caráter problemático da tarefa de se definir a natureza e a
origem da justiça. Em Glauco, inicialmente, entende-se que a origem e a
essência da justiça se encontram no dilema de situar-se entre o maior bem –
cometer impunemente a injustiça – e o maior mal, o de sofrê-la quando se é incapaz
de confrontar-se o injusto. É por isso que se originaram as leis e as
convenções, considerando-se legítimo e justo o que prescreve a legislação. Ora,
mas Glauco também se vale do mito do anel de Giges para realçar a epythimia (apetite corporal) como causa
da injustiça cometida pelo homem, cuja natureza – sendo justo ou sendo injusto
– é deixar-se levar pelas ambições, pelas paixões e pelo desejo de prevalecer
sobre os outros. O indivíduo é um problema para a justiça, por isso é
fundamental tratar antes o todo, isto é, a cidade. Além disso, Glauco afirma
ainda que a vida do injusto é muito melhor do que a do justo. Esta parece não
ser a opinião dele, mas é o que costuma ouvir da maioria dos homens que se
pronunciam a respeito disso. Ao fazer um juízo da vida do justo e do injusto,
Glauco demonstra que os ditos homens justos praticam a justiça apenas para
receber honrarias e recompensas e não porque sejam realmente justos. Em outros
termos, o injusto se dissimula habilmente quando realiza alguma má-ação e quer
ser superior na injustiça. E o justo é aquele que apenas parece ser justo, e
por isso é recompensado pelos outros. Assim sendo, as opiniões que situam a
injustiça sobre a justiça só comprovam como a vida do injusto parece ser melhor
do que a do justo. O injusto governa a cidade graças ao seu aspecto de homem
justo, mas, em contrapartida, arranja mulheres onde lhe apraz, constitui
associações de prazer e negócios com quem lhe agrada e tira proveito de tudo,
porque não tem escrúpulos em ser injusto. Normalmente, ele prevalece sobre os
adversários, enriquece ilicitamente, prejudica os inimigos, ajuda os amigos e
chega ao cúmulo de obter até mesmo favores dos deuses a quem oferece
sacrifícios e oferendas. Todo esse quadro aponta um favorecimento ao injusto,
por parte dos deuses e dos homens, o que lhe faz viver melhor do que o justo.
Quando
Glauco acaba de falar, é a vez do seu irmão, Adimanto, discursar. E Adimanto
apresenta tese contrária à de Glauco – a tese dos que elogiam a justiça, mas
assumem a injustiça –, porém com o propósito de também desacreditar a justiça.
Afirma que é comum elogiar a justiça não pelo que ela é em si mesma, mas pela
reputação que acarreta, ou seja, as pessoas se mostram justas apenas para
receberem os benefícios da aparência. Ora, segundo Adimanto, todos celebram
como boas a temperança e a justiça, mas as consideram difíceis e penosas; ao
contrário, a intemperança e a injustiça lhes parecem agradáveis e de fácil
domínio, somente vergonhosas na ótica da opinião pública. Até os deuses
reservam, muitas vezes, aos homens virtuosos, o infortúnio e uma vida
miserável. O injusto chega a fazer negociatas com os deuses para obter o que
deseja e ambiciona. Mostra-se aqui, mais uma vez, a injustiça como o resultado
da primazia do desejo corporal (epythimia),
que deve ser controlado para o bem da cidade. Afinal, na Atenas daquela época
priorizava-se parecer justo ao invés de ser verdadeiramente justo, ou seja, um
homem que fosse justo sem o parecer jamais tiraria proveito dessa condição; ao
revés, só teria aborrecimentos e prejuízos. Mas se fosse injusto e gozasse da
reputação de justo, lhe diriam que levava uma vida divina. Portanto, a
aparência surge como distribuidora da verdade e senhora da felicidade. Era com
base nisso que os pais e mestres educavam as crianças. Então, por que motivo se
deveria preferir a justiça à injustiça?
Está
claro, no exame da argumentação de Glauco e Adimanto, que o problema da
injustiça e da decadência dos valores de Atenas é o homem que não exerce o
devido controle sobre seus desejos, o que não dá a justa medida à sua epythimia, o que vive predominantemente
na esfera da paixão e desconhece outras dimensões da vida, como a vida sob o
domínio da razão – este é o injusto que precisa ser educado na dialética socrática.
Ora, Sócrates entende que a investigação sobre a justiça não pode se limitar ao
indivíduo, mas sim estender-se a toda a cidade. É na cidade que a justiça será
mais visível; somente depois é que se deve buscar a justiça no indivíduo, até
para que se verifique a semelhança entre a justiça grande e a pequena. É então
que Platão retoma a associação das technai
ao propor construir a cidade ideal a partir das necessidades dos
indivíduos, porque o que causa o nascimento de uma cidade é justamente a impossibilidade
que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e também a necessidade que sente
de ter uma porção de coisas, isto é, bens sensíveis. Contra esse homem injusto,
Platão se apresenta em polo oposto, propondo-lhe encontrar, pela dialética, o logos do ser, a verdade situada além dos
falsos saberes e do prestígio aparente dos belos discursos sofísticos.
A
pedagogia socrática, por meio de Platão, ressoa no livro III de A república, com a retomada das
acusações contra os poetas – é preciso livrar as crianças das falsidades dos
poetas; é necessário realçar o heroísmo, a figura de Aquiles e não a dos homens
fracos e covardes que só sabem se lamentar; é urgente pôr fim às influências negativas
dos mitos. Observe-se, desde já, que a divindade em Platão – fundamento para a
legislação da colônia de Magnésio, como se poderá constatar em As leis – é completamente oposta à
teogonia hesiódica e às sagas de Homero, nas quais o ethos dos deuses é tremendamente flexível e, por vezes, esgarçado
pela amoralidade. Os argumentos platônicos conduzem a cidade para um modelo
educacional que transporte o homem para além da experiência sensível,
livrando-o das sombras e das aparências, e o faça chegar ao conhecimento da
razão. Por isso é que Platão deseja eliminar, da educação dos jovens e das
crianças, as fábulas dos poetas, que, segundo ele, só contêm falsidades sobre
os deuses, descritos na poesia com todos os seus defeitos, e não perfeitos como
o são as divindades. Discute-se, desse modo, o que deve ser dito na poesia
(conteúdo) e como deve ser dito (forma). Propõe-se que sejam expurgadas das
fábulas as asserções que reforcem a epythimia
e a autopiedade, consideradas prejudiciais à educação. Diante das referências
aos deuses e heróis encontradas em Homero, Sócrates diz que devem ser
preservadas as divindades e as figuras heroicas das cenas de fraqueza e
lamento; também rejeita o prazer psicológico daqueles que se põem como vítimas
e têm sede de lágrimas. São estabelecidos os conteúdos para os mitos, bem como
as ações que devem ser imitadas, isto é, a dos homens nobres, pois a imitação
se transforma em hábito e natureza para o corpo, a voz e a mente – assim, só se
deve imitar o que seja bom para o homem de bem; enaltece-se a educação baseada
na música e na ginástica.
É
no livro III de A república que
Platão retoma a busca dialética pela melhor definição de justiça, a partir das
outras virtudes cardeais: a temperança, a coragem e a sabedoria. Definidas
essas virtudes, chegar-se-ia, por exclusão, à justiça. No exame do que se
entende dessas virtudes, Platão, por meio de Sócrates, leva-nos ao seu modelo
de educação baseado na música e na ginástica. Diz que a alma tem dois
elementos, a coragem e a sabedoria, que precisam estar perfeitamente
equilibrados, e que a coragem está ligada à ginástica, como a sabedoria se liga
à música. É preciso haver harmonia entre música e ginástica, porque a música
conduz o homem à sabedoria, e a ginástica, à coragem. É a música que permite o
contato com a musa, capacitando o homem a servir-se do discurso para persuadir
os demais, livrando-os dos grilhões das sensações e tornando-os amigos da razão
(apenas o homem educado tem modelos dados pela razão): assim tornar-se-á sábio.
Por outro lado, se o homem se entregasse somente à música, entregar-se-ia à
moleza e à brandura excessivas, pelo que precisa da rusticidade propiciada pela
ginástica: assim tornar-se-á corajoso. Aí já pode se perceber a presença do logos, o que faz o filósofo aparecer
como o líder capaz de associar, harmonicamente, a ginástica à música. Tal é o
plano geral da educação da cidade, que visa a produzir um homem eminentemente
útil a si mesmo e à cidade, o governante idealizado, porque comedido, sensato,
racional e com pleno domínio sobre as emoções.
No livro IV de A república aprofunda-se a relação entre justiça e felicidade na
cidade ideal. Ao oráculo de Delfos é encaminhada a questão religiosa. Outros
aspectos da cidade são regulamentados. Agora, fundada a cidade, pode-se tentar
novamente encontrar onde se acham precisamente a justiça e a injustiça.
Indaga-se, com mais minúcias, sobre a justiça, a partir das virtudes cardeais –
sabedoria (sophia), coragem (andreia), temperança (sophrosyne) e justiça (dikaiosyne). Essas virtudes só podem ser
adquiridas pelo cidadão se este for educado adequadamente desde criança, e esse
raciocínio se manifesta agora com mais clareza. Estabelece-se uma relação entre
justiça e felicidade: na cidade bem construída, todos são felizes e não apenas
alguns. É preciso haver unidade na polis,
o que se consegue quando cada cidadão se ocupa de sua tarefa própria: quem é
governante, deve ser apenas governante; quem é guerreiro, deve ser apenas
guerreiro; quem é artesão, deve ser apenas artesão.
Da
temperança, Platão diz que se trata do domínio sobre certos prazeres e paixões;
o homem temperante é senhor de si mesmo, e isso significa que sua parte
racional e superior supera sua epythimia;
se não fosse assim, seria escravo de si mesmo, isto é, sua parte inferior e
emocional tomaria conta dele. A natureza superior, moldada pela educação, deve
prevalecer sobre o inferior e impor seus valores. Esta harmonia existente no
indivíduo se estende para a cidade, onde também deve haver um acordo harmonioso
pelo qual os governados, em maior número, se submetam aos governantes, do mesmo
modo que os desejos numerosos se subordinam à razão.
Da
sabedoria, Platão diz que se trata da posse de uma epistéme (conhecimento) pela qual se delibera sobre a melhor
maneira de a cidade se comportar consigo mesma e perante as outras cidades. Tem
por objeto a conservação do Estado e se encontra nos magistrados, que são os
guardiões perfeitos; essa epistéme é
a filosofia.
Da
coragem, Platão afirma que se trata da capacidade (dynamis) e perseverança em conservar, em qualquer circunstância,
especialmente nas vicissitudes, a opinião sobre as coisas a temer. Em outras
palavras, trata-se daquilo que o legislador designou na educação, uma espécie
de salvaguarda, os valores internalizados dos quais resultam uma opinião reta e
legítima. Por conseguinte, todos devem dar de si o melhor para a cidade,
segundo uma lei maior, que é exatamente a lei internalizada pela educação.
Todos se predispõem a obedecer às suas consciências, voltados para o bem comum.
É por isso que a cidade bem fundada gera o Estado perfeito, pois ela será
sábia, corajosa, ponderada e justa. Assim, a coragem se caracteriza como logos, a vontade de fazer cumprir a lei
maior, internalizada em cada homem pela educação.
Da
justiça, portanto, após ter examinado as demais virtudes cardeais, Platão pode
dizer agora que se trata do princípio de fundação da cidade, pelo qual cada um
desempenha a sua função própria, sem interferir no trabalho dos outros.
Encontra-se na cidade bem governada, isto é, dirigida pelo governante que
possui a epistéme e a dynamis para gerar e preservar as outras
virtudes. Justiça, por conseguinte, é o que resulta de dois princípios em
confronto no indivíduo: o elemento racional e o elemento irracional, entre os
quais um terceiro elemento, o irascível, se põe como auxiliar da razão. Isso se
estende às classes da cidade, assim representadas: os governantes como o
racional; os artesãos como o irracional; e os guerreiros como o irascível. É da
primazia da racionalidade que surge a justiça tanto na alma do homem quanto na
cidade bem fundada. Pode-se agora vislumbrar como a coragem – a força que
salvaguarda a opinião reta e legítima sobre os valores da educação,
internalizados pelo que o legislador previamente estabeleceu – se alia à
sabedoria, a epistéme capaz de
conservar o Estado. Sendo esta epistéme a
filosofia, é necessário que o governante seja filósofo ou no mínimo o rei
convertido à filosofia. É o logos –
portanto, o rei filósofo – que determinará ao poeta que elabore mitos (fábulas)
com função pedagógica, isto é, a poesia necessária ao processo de
internalização e hierarquização de valores que levem o cidadão à opinião reta e
legítima (coragem).
Ora,
a cidade ideal de Platão nunca se tornou realidade, o que não invalida seu
projeto. Não é tão simples impor à multidão da cidade a autoridade do filósofo,
especialmente quando o discurso filosófico passa a enfrentar outras técnicas
discursivas, como a retórica, a sofística e a erística. Os sofistas introduzem
um discurso utilitarista, que não se preocupa em atingir o ser e se situa na
neutralidade da linguagem – o logos deixa
de estar ligado ao ser; agora diz tanto uma coisa quanto o seu oposto, não mais
diz o ser e as coisas assim como são; são discursos de aparência e contrários à
existência dos deuses e à moralidade nestes fundada; descreem da intervenção
dos deuses na criação do mundo; refugiam-se no materialismo mais estrito e
chegam a derivar a alma dos elementos materiais como o ar, o fogo, a água e a
terra. Perde-se, assim, uma linguagem consubstancialmente ligada ao ser; o
discurso admite a mentira como premissa do argumento; “o homem é a medida de
todas as coisas”, diz Protágoras, e a lei vigente logo se torna a expressão da
vontade da classe dominante; em consequência, é preciso agir contra os
sofistas, fazendo a cidade reencontrar, para o bem da ordem política, o seu
fundamento e a sua legitimidade numa ordem cósmica.
O
ateniense de As leis, conhecedor
desse projeto irrealizado da cidade ideal e do seu rei filósofo, em meio às
influências dos sofistas e dos físicos sobre as opiniões da juventude, vai ao
encontro de Clínias e Megilo para contribuir com a elaboração das leis da
colônia de Magnésio. Se em A república, a teoria das ideias e o Bem
supremo têm lugar central, deles derivando todas as ações humanas por
participação, em As leis se concede
maior importância à experiência e ao problema da formação elementar da multidão,
partindo-se dessas raízes terrenas para as esferas suprassensíveis, caminho inverso
da dialética educacional da cidade ideal. A dialética do Bem, no Estado
magnesiano, se dá na multiplicidade das suas manifestações. A ideia do Bem é
exigida como conteúdo da cultura do governante. Retoma-se a fundamentação das
leis numa ordem cósmica, isto é, na divindade, e se faz necessário, portanto,
combater a impiedade com uma educação correta[3].
Afirma Jaeger, a respeito do grande espaço ocupado pelos problemas de educação
em As leis, que “A finalidade da
obra, no seu conjunto, era edificar um formidável sistema de educação. A sua
atitude em face da Paideia aparece
exposta com maior clareza de princípio numa passagem do livro X” (2003,
p.1299). Ele se refere ao paralelo estabelecido por Platão entre o mau
legislador e o médico de escravos, bem como ao paralelo entre o médico que se
dedica a tratar cidadãos livres e o filósofo convertido em legislador. É bem
conhecida essa passagem:
O ateniense: Deve,
então, o preposto que nomeamos para essas leis deixar de fazer uma tal
formulação inicial e declarar imediatamente o que tem que ser feito e o que não
tem e indicar a punição na qual incorre a desobediência, e assim voltar-se para
uma outra lei, sem acrescentar aos seus estatutos uma única palavra de
encorajamento e persuasão? Tal como ocorre com os médicos, um nos trata de uma
maneira, outro de outra: eles dispõem de dois métodos diferentes dos quais
podemos nos lembrar, para que, como crianças que pedem ao médico para que as
trate pelo método mais brando, possamos fazer um pedido semelhante ao
legislador. E o que queremos dizer com isso/ Há homens que são médicos, segundo
dizemos, e outros que são assistentes de médicos, mas chamamos estes últimos
também de médicos, não é mesmo?
Clínias: Sem
dúvida, nós o fazemos.
O ateniense: Esses,
sejam eles livres ou escravos, adquirem sua arte sob a direção de seus mestres
por meio da observação e da prática e não pelo estudo da natureza, que é o meio
pelo qual os médicos livres eles mesmo aprendem a arte, sendo também este o
meio pelo qual instruem seus próprios discípulos. Dirias que temos aqui duas
classes do que é chamado de médicos?
Clínias:
Certamente.
O ateniense: Estás
também ciente de que como as pessoas enfermas nas cidades são constituídas
tanto por escravos quanto por cidadãos livres, os escravos são geralmente
tratados pelos escravos, em suas rondas pela cidade ou aguardado nos
dispensários; e nenhum desses médicos dá ou recebe quaisquer explicações sobre
as várias doenças dos diversos servos que tratam, limitando-se a prescrever
para cada um deles o que julga certo com base na experiência, como se detivesse
conhecimento exato, e com a autossuficiência de um monarca despótico; em
seguida passa de um átimo muito rapidamente para um outro servo enfermo,
poupando assim seu mestre do atendimento dos doentes. Mas o médico nascido
livre se ocupa principalmente em visitar e tratar das enfermidades das pessoas
livres e o faz investigando-as desde o começo e conforme o curso natural;
conversa com o próprio paciente e com seus amigos, podendo assim tanto obter
conhecimento a partir daquele que padece da doença [e seus amigos] como
transmitir a estes as devidas impressões na medida do possível. Ademais, ele
não prescreve nada ao paciente enquanto não conquistar o consentimento deste,
para só quando consegui-lo então, mantendo a docilidade do paciente por meio da
persuasão, realmente tentar completar a tarefa de devolver-lhe a saúde. (As leis, IV, 720a-e).
Esse
processo educacional fundamentado na moralidade do cosmos divino está bem claro
no livro X de As leis, em cujo
prólogo Platão, por meio do ateniense, comenta sobre os ilícitos mais graves
cometidos pela juventude, destacando os que atingem as coisas públicas e
sagradas e atribuindo como causa de todas essas ofensas a impiedade que é propagada
pelos sofistas e físicos. Sob esse ponto de vista, os males humanos vêm todos
da descrença nos deuses e em sua moralidade cósmica, sendo os materialistas os
verdadeiros responsáveis por isso, porque propagam discursos mentirosos e
utilitários que tomam o homem como a medida de todas as coisas. O ateniense
enuncia três tipos de impiedade: primeiro, a descrença nos deuses; segundo, a
crença nos deuses, mas não que estes se importem com os seres humanos; e
terceiro, a crença em que os deuses são fáceis de serem conquistados quando
subornados por oferendas e orações. Para cada tipo de impiedade, resultam duas
formas derivadas de impiedade.
Do
primeiro tipo de impiedade, por exemplo, – a descrença nos deuses – há dois
subtipos de impiedade: há o ultraje cometido pelos ímpios de caráter justo e
que repudiam a injustiça; e há o ultraje dos ímpios que, além da descrença na
existência dos deuses, fraquejam ante seus prazeres e sofrimentos, isto é, são
dominados por sua epythimia, embora
sejam dotados de memória e possuam inteligência aguda. “De maneira similar, a
crença de que os deuses são omissos gera dois outros tipos de impiedade, e a
crença de que sejam subornáveis, outras duas” (As leis, X, 908e). Todos os ímpios, inclusive os justos, serão
aprisionados.
Ora,
ao se referir ao aprisionamento que será aplicado a todos os casos de impiedade,
Platão, por meio do ateniense, comenta sobre os três tipos de prisões no
Estado, para as quais serão encaminhados os diversos tipos de ímpios, incluindo
os justos:
uma prisão pública
perto da ágora para a maioria dos
casos, mantendo a segurança das pessoas em relação aos criminosos médios; uma
segunda prisão situada próximo da sala de reuniões dos oficiais que realizam
reuniões noturnas (chamada de reformatório);
e uma terceira no centro do território, no sítio mais selvagem e ermo possível,
e que detém um nome que evoca a ideia de um lugar de castigo; e visto que as
pessoas se envolvem na impiedade pelas três causas que descrevemos, resultando
de cada uma dessas causas duas formas de impiedade, consequentemente aqueles
que transgridem contra a religião caem em seis categorias que precisam ser
distinguidas, já que requerem penas que são tanto diferentes quanto
dessemelhantes. (As leis, X, 908a).
Ora, Platão pune os ímpios justos
com advertência e prisão, sem considerar que, embora descreiam nos deuses, amam
a justiça, odeiam instintivamente o mal e repudiam as ações injustas. Quer
dizer, amam a justiça em si mesma, sem necessitarem dos fundamentos da
moralidade dos deuses. Todavia, por isso mesmo, segundo Platão, amparam-se em
discursos humanos dissociados do ser e da verdade – o logos, neste caso, dá lugar às exigências de uma moral apoiada
sobre a lei positiva. Quanto aos ímpios injustos, dominados por sua epythimia, empenhados em transmitir sua
perversão aos demais habitantes da cidade, a pena é o reformatório, onde são persuadidos por aqueles que participam da
assembleia noturna, durante um período não inferior a cinco anos, em completo
isolamento em relação aos demais, a salvarem suas almas; caso eles se
recuperem, passarão a morar com aqueles que foram recuperados; em caso
negativo, poderão ser sentenciados à morte. E quanto aos que afirmam serem os
deuses negligentes ou subornáveis, a corte os aprisionará na prisão situada no
meio do território, impedindo que deles se aproxime qualquer pessoa e que
recebam suas rações de alimentos segundo o fixado pelos guardiões das leis.
Como apenas o legislador não será culpado pelo deus, por já ter estabelecido a
lei, verifica-se que se incide na definição de justiça como a expressão
arbitrária da classe mais forte, não obstante a fundamentação metafísica da
legislação. Trata-se aparentemente de uma antinomia a aplicação de uma lei
baseada na moralidade do cosmos divino e pela qual se deseja evitar o
voluntarismo dos mais fortes e dos injustos, pois tanto se pune o ímpio que ama
a justiça – embora descreia dos deuses – quanto se mata o outro homem em nome
dos deuses que, por serem perfeitos, não precisam absolutamente de ser defendidos
pelo legislador.
Tem-se pela frente um problema
representado por essa antinomia. E agora, na terceira parte deste ensaio,
tenta-se esboçar uma compreensão da necessidade do fundamento metafísico para a
legislação humana, representado pela crença nos deuses e em sua moralidade.
É bem provável que Platão esteja
tentando retomar a ideia arcaica do divino como princípio de
unidade-totalidade, como força motriz primordial, como espírito formador do
mundo. No tempo das musas, todos se colocavam sob a autoridade dos deuses, e a
linguagem servia para dizer o ser e as coisas – o logos estava plenamente na juntura com o ser, dizia o ser, refletia
o cosmos, era moralidade no grau mais elevado. Quando os ímpios começaram a
propagar um discurso de desvio e aviltamento do logos, pondo em xeque as virtudes norteadoras do bem agir,
tornou-se necessário estabelecer como fiel da balança da justiça algo que
transcendesse os limites do humano dissimulador e aviltado. Retomar a junção
entre a natureza e a lei, ainda que fosse preciso punir eventualmente um justo
ímpio ou mesmo matar em nome dos deuses perfeitos, tornou-se um imperativo na
Grécia socrática, uma necessidade de desautorizar o preceito de Protágoras que
tomava o homem como a medida de todas as coisas. Era preciso, por conseguinte,
após as devidas correções das impropriedades cometidas pelos poetas quanto à
natureza e ao comportamento das divindades, recuperar a ideia de Deus como
medida de todas as coisas, o Deus que se revela e age no cosmos do Estado assim
como costuma agir na natureza. Assim, a obediência à lei é, ao fim e ao cabo,
obediência à divindade, que tem consigo o princípio, o meio e o fim de todas as
coisas. Tudo deve se subordinar a esse Bem supremo e à sua harmonia, pois o
homem dominado por sua epythimia encontra
muitas dificuldades para apreciar a ordem política e suas leis por si mesmas.
Esse é o ideal socrático assumido por Platão no esforço contrário aos sofistas,
que iniciaram a oposição entre natureza e lei. Esta é uma tarefa à que se
entrega visando a uma ordem política fundamentada e legitimada numa ordem
cósmica, da qual ela é somente o reflexo analógico. Não há, portanto,
ambiguidade na formulação das leis do Estado magnesiano quando são confrontadas
e penalizadas todas as formas de impiedade, incluindo a do ímpio justo, pois
este caso pode, no máximo, configurar um mal menor diante de um mal maior que
seria o de prejudicar toda a ordem política da cidade. Tampouco se pode dizer
propriamente que o legislador sai em defesa dos deuses perfeitos, que dele não
necessitam para ser a harmonia e a perfeição do cosmos. Na verdade, o que se
manifesta no legislador é sua compreensão da necessidade do logos divino, fruto de sua educação
adequada para o governante; ele sabe, por possuir a intimidade com o logos, o que é necessário para que a
cidade seja feliz e justa, por participação na ordem cósmica da natureza.
3. Conclusão
Este breve ensaio tratou
sucintamente do conceito de justiça e da elaboração de leis fundamentadas
metafisicamente por Platão. Estabeleceu-se a leitura do livro X de As leis, bem como outras partes dessa
obra, em contato com os quatro primeiros livros de A república, de modo a compreender-se a definição de justiça em
conformidade com as outras virtudes cardeais – a sabedoria, a coragem e a
temperança. E, com isso, entender o propósito pedagógico de As leis, delineado como um projeto de
oposição aos discursos de aparência dos ímpios, que negavam a existência dos
deuses e os consideravam negligentes ou subornáveis.
Identificou-se uma possível
ambiguidade na aplicação das leis aos diversos tipos de impiedade, pois se
configurou uma aparente contradição tanto na punição do ímpio justo – aquele
que, embora descrente dos deuses, ama a justiça e repudia os injustos – quanto
no estabelecimento das penas severas da morte e da negação de sepultamento aos
que consideravam as divindades negligentes ou subornáveis. Afinal, como pode
haver justiça quando se pune o justo apenas por ser ímpio? E como pode se
fundamentar a legislação humana na perfeição e na harmonia do cosmos divino, se
a sua obediência exige a aplicação de sanções extremas como o exílio e a morte?
Só se pode compreender isso dentro
do projeto educacional estabelecido por Platão primeiramente em A república e, posteriormente, em As leis. Trata-se de estabelecer um
sistema de educação que, contrariamente ao propagado pelos sofistas e físicos,
contemple a intervenção dos deuses perfeitos e incorruptíveis na criação do
mundo e nos assuntos humanos, trazendo ao homem a possibilidade de viver em
consonância com sua razão e pleno domínio sobre os apetites corporais nele
enraizados. A ordem política capaz de trazer felicidade à existência humana
precisa fundamentar-se e legitimar-se numa ordem cósmica da natureza, o que
torna um imperativo categórico o combate a todo tipo de impiedade. Somente
assim podem ser transpostos os desejos desmedidos do homem, permitindo-lhe o
domínio de si, sem que precise dominar os outros despoticamente. Essa é a via
pela qual o logos divino pode descer
até os recantos mais ínfimos da vida humana e se transformar em ordem política
racional e justa.
Referências bibliográficas
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, 1413p.
PLATÃO. As leis. Trad. Edson Bini. 2.ed. Bauru: EDIPRO, 2010, 543p.
______. A república. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, 419p.
ROGUE,
Christopher. Compreender Platão. Trad. Jaime A. Clasen. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2005,
207p.
[1] Cf. Livro II, 653 a-c a fala do
ateniense: “O que afirmo é o seguinte: que quando criança as primeiras
sensações pueris a serem experimentadas são o prazer e a dor, e que é sob essa
forma que a virtude e o vício surgem primeiramente na alma; mas no que diz
respeito à sabedoria e às opiniões verdadeiras estabelecidas, um ser humano
será feliz se estas o alcançarem mesmo na velhice, e aquele que é detentor dessas
bênçãos, e de tudo que abarcam, é de fato um homem perfeito. Entendo assim por educação a primeira aquisição que a
criança fez da virtude. Quando o prazer, o amor, a dor e o ódio nascem com
justeza nas almas antes do despertar da razão, e uma vez a razão desperta, os
sentimentos se harmonizam com ela no reconhecimento de que foram bem treinados
pelas práticas adequadas correspondentes, e essa harmonização, vista como um
todo, constitui a virtude; mas a parte dela que é corretamente treinada quanto
aos prazeres e os sofrimentos, de modo a odiar o que deve ser odiado desde o
início até o fim, e amar o que deve ser amado, esta é aquela que a razão isolará para denominá-la educação, o que é, a meu ver, denominá-la
corretamente” (grifo nosso).
[2] Um inofensivo pastor da Lídia é
capaz de tornar-se um monstro após encontrar um anel que o torna invisível e
lhe assegura uma impunidade total.
[3] Reler a nota de rodapé nº 3 deste
ensaio, a que trata sobre educação (Leis,
II, 653a-c).