Humberto B. Leal
Eduardo, ex-Antônio, constrói sua nova vida no Brasil, primeiro no
Rio de Janeiro ,
depois em
Belo Horizonte .
Mas o que
vem à tona é um
destino cujas estruturas
são acossadas permanentemente .
O passado resiste dentro
dele, como algo
não resolvido, e irrompe constantemente não
apenas como
lembranças aflitivas – o seu primeiro encontro com
Nininha no Porto , em
março de 1953; a quarta-feira
em Poçais em
que a PIDE lhe
entregou a contrafé ; o ronco do avião
do aeroporto de Dakar no dia de sua partida em
1957; e tantas outras recordações –, mas
também como
fantasmas que
o perturbam em forma
de cantos de galos :
“Os galos cantaram pela
primeira vez
nos meus
ouvidos na penúltima
véspera de Natal .
[...] Estava na cama , lendo [...] Os galos cantaram de repente ,
no meio da leitura ,
como se houvesse uma capoeira
dentro dos meus
ouvidos ” (p.16, 17).
Nascido e criado
na serra do Gerês, região
norte de Portugal, Eduardo gosta
da mudança do Rio
de Janeiro para
a montanhosa Belo Horizonte ,
onde se embrenha nas matas e picadas
da serra do Curral .
É lá que ,
num domingo de Carnaval ,
estando Miriam e o filho no Rio de Janeiro ,
decide rever Nininha. Entretanto ,
é uma decisão que
não vinga e que
se dilui em sua
fraqueza para
decidir . Somente meses depois , isso se
torna realidade ,
após receber ultimato de Miriam: “Por
que você não vai logo a
Portugal e resolve de uma vez esse seu amor encrencado, hem ? [...]
Se é por causa
do dinheiro , eu
arrumo com papai ,
pode deixar ” (p.55). Aí
está um exemplo
da força das personagens
femininas de Cunha Leiradella e de certa pusilanimidade
dos seus protagonistas
masculinos .
Os protagonistas de Cinco Dias
de Sagração são
homens fracos ,
se comparados com as personagens femininas. Dessa fraqueza
masculina , no entanto ,
é que emergem os dilemas ,
os impasses , as indecisões
e toda a substância
do romance . Afirme-se, em favor desses homens , que talvez sem essa
debilidade não houvesse drama transformado em
relato literário . São
eles , os heróis
tíbios de Cunha
de Leiradella, que expressam o humano na intensidade
das contradições , nas imprecisões da vontade
e do desejo , nos
fracassos da vida
concreta , nos
ideais que
jamais perdem sua
condição abstrata .
Sem eles ,
a força feminina
jamais poderia
ser ressaltada. Tomemos como
exemplos dessa tibieza
os personagens Carlos Manuel, João
Miguel e Eduardo.
Carlos Manuel, irmão
de Nininha, é o grande companheiro de Tónio, o Antônio que
ainda não
se transformou em Eduardo. Ele é quem incentiva o jovem
vindo da serra do Gerês para
estudar medicina no Porto a escrever sobre política
e atacar o regime salazarista
no pasquim Primeiro de Dezembro . Os dois se inspiram no tio
de Carlos Manuel que , ex-prisioneiro do sistema de Salazar, aparenta o dobro
da idade – “Aos trinta e cinco anos
[...] magro , curvado ,
o cabelo todo
branco e com
ataques de tosse
estrebuchantes, andava pelos corredores da casa
da irmã como um
fantasma ” (p.204). O Quixote
lusitano . O modelo
de coragem a ser imitado.
Mesmo sendo um
Aquiles derrotado.
O tio
de Carlos Manuel é o herói desventurado.
O que resistiu ao ambiente
de censura e propaganda
do regime salazarista. O que
foi destroçado na Fortaleza de Peniche.
O que esteve no inferno
e retornou vivo para
contar que
“fizeram de mim gato
e sapato , até
cabos de vassoura
no cu me enfiaram [...]” (p.205). Apesar disso, esse
homem desvela
o país para o
sobrinho e seu
amigo Tónio, lhes
transmite verdades , disseca a hipocrisia e o cinismo
de Portugal. Por isso
ele é a exemplaridade para
os jovens que
detestam Salazar e se inspiram na causa comunista . É Antônio, o escritor
e não mais
o estudante de medicina ,
o panfletário e não
mais o ingênuo
da aldeia católica
da serra do Gerês, quem
diz
No
Porto , eu não ia mais à missa nem me confessava todas as sextas-feiras, mas os jornais
e as rádios diziam a mesma coisa . Se Portugal não tinha fome nem guerra , é porque
Salazar velava dia e noite no palácio do governo e a Virgem de
Fátima orava por todos
nós . E os noticiários
que passavam nos
cinemas provavam isso .
As pessoas riam e cantavam e agitavam milhares de bandeirinhas ,
sempre que
Salazar aparecia.
Carlos Manuel, em
1951, de cabelo louro
cortado rente e usando calça curta ,
aproxima-se de Tónio, no Café Palladium,
com um
pacote de livros
debaixo do braço
e o Primeiro de Dezembro ,
então quatro
folhas de papel
almaço sem
pauta , manuscritas. Aí
os dois se conhecem. E aí
também Carlos Manuel tenta convencer o poeta Tónio a escrever e a distribuir o pasquim .
Assim começam uma amizade
férrea e a tremenda
aventura de escrever
contra Salazar.
Veja-se também
o caso de João Miguel, o companheiro de Nininha. Depois
que ela
retorna a Lisboa, não
havendo conseguido tomar o avião
em Dakar com
Tónio, por causa
de uma questão burocrática ,
é João Miguel, tempos depois , quem a
acolhe e quem se torna
a companhia dela. Um
dia , ele
dorme na casa de Nininha e de lá não sai mais . Não se
casam. Juntam-se. E vivem sob as condições estabelecidas por
Nininha. Ele nada
cobra dela, contenta-se com a sua presença , mais nada . Tanto é que , na noite em que Eduardo,
ex-Antônio, retorna a Portugal e se encontra com
Nininha, João Miguel os segue de longe até o restaurante
e chega a sentar-se numa mesa próxima ,
pagando a conta do jantar .
Um homem
generoso e compreensivo ?
Ou um
frouxo que
acedeu à vontade de Nininha de ciceronear Eduardo em
sua estada
em Portugal e de levá-lo até mesmo para dentro do quarto do casal , onde ela conserva lembranças
da juventude e de Tónio?
Antônio ou
Eduardo – o caso mais
emblemático de fraqueza
das personagens masculinas de Cunha Leiradella em
Cinco Dias
de Sagração – é o homem que jamais decide. Pusilanimidade
e má-fé . Seu
retorno a Portugal para
rever Nininha só
ocorre graças ao estímulo
de Miriam, que praticamente o obriga a viajar e a resolver a questão do “amor
encrencado”. Aliás , ao retornar
a Portugal, reencontra Nininha e nada resolve. Só
confirma seu espírito
de indecisão . Este
é seu destino :
permanecer no impasse .
Por quê ?
Podem ser
comentadas, dentre outras, três passagens
do romance que
bem demonstram essa fraqueza
de Antônio ou Eduardo. A primeira delas, sua
melancólica experiência militar
na Índia Portuguesa, como alferes
miliciano da arma de artilharia
antiaérea . Encarregado
de comandar um
grupo de quinze homens
e de ocupar um
posto militar
em Polorá, uma pequena
aldeia situada num vale
entre montanhas ,
demonstra firmeza inicial
ao se opor às ordens
do agente Lourosa, representante da
PIDE, e ao assumir de fato
o comando de sua
tropa . Chega
a apontar a metralhadora
no peito do agente ,
para fazer valer
sua vontade .
Mas , logo
em seguida ,
talvez devido
ao fato de discordar
da política colonialista portuguesa e porque sua personalidade seja pouco
dada a coisas
como comando
de tropa , ele
abdica de suas responsabilidades
e as delega ao sargento Cardoso. O agente Lourosa, por
exemplo , é assassinado por um dos soldados , e uma tramoia é engendrada pelo
sargento Cardoso, sob
o consentimento do alferes ,
para distorcer o fato : dá-se a morte do agente por picada de cobra
e se permite a fuga do assassino . Tudo
em nome
da “verdade ideológica” contrária
ao regime e ao colonialismo
português . Ao fim
e ao cabo , Tónio, a este
respeito , diz que
A minha carreira militar não me honrou, não
honrou a Índia , nem
honrou Portugal. Terminou, simplesmente .
Sem nenhum
ato de bravura ,
sem medalhas
e sem depressões
psicológicas. Prosaicamente atacado de beribéri ,
deixei Polorá na madrugada do dia 27 de novembro
de 1956 e desembarquei em Lisboa como tenente . [...]
Dei
baixa no quartel
de Espinho no dia
14 de março de 1957, e naquela noite tomei a minha
quarta e última
grande bebedeira
militar . (p.168)
Os dois
entram em Tânger com
suas identidades :
Maria Elvira Vieira de Matos e Cunha ; e Antônio Marques de Campos ;
ela , natural
do Porto , freguesia
da Cedofeita; ele , da vila de Terras
de Bouro, freguesia de Covide. Pouco tempo depois , recebem um
jornal e um
aviso de Carlos Manuel. Não podem mais regressar a Portugal.
Havia uma ordem de prisão
contra o “perigoso
agitador profissional
e membro do chamado partido
comunista português ”
Antônio Marques de Campos . O mensageiro faz a entrega
de uma Carta de Chamada ,
selada e autenticada, em nome de Eduardo da Cunha
Júnior , natural
da cidade do Porto ,
freguesia de Massarelos, contratado para atuar no comércio e auxiliar de balcão numa sapataria
na cidade do Rio
de Janeiro . Desse modo ,
morria o Tónio, e nascia o Eduardo.
Tónio não
se arrisca. Não fica em Dakar por
Nininha. Prefere fugir e, quem
sabe, do Brasil, obter e enviar-lhe uma Carta de Chamada .
Mas como ?
Despedi-me
de Nininha. Abraçamo-nos em silêncio , no meio
das pessoas que
passavam. Nininha pegou o meu rosto com ambas
as mãos e olhou-me nos
olhos , fixamente .
– Nunca
me esqueças. Eu
nunca te
esquecerei.
Foram
as únicas palavras que
me disse naquele dia
e as últimas que lhe
escutei. Beijei-a.
– Nunca
te esquecerei, Nininha. Juro .
Deixei-a
junto da porta
e corri para o avião .
Ela ficou isolada, imóvel ,
com as mãos
cruzadas no peito
e os olhos parados e secos . Pendurada no pescoço ,
a medalha da Virgem
de Guadalupe. Voltei-me e acenei-lhe. Ela
não respondeu. Parecia uma estátua quebrada ,
jogada num canto
de jardim . Entrei no avião e não
olhei pela janela .
Não valia
a pena . Nenhum
de nós podia fazer
nada . Recostei-me no assento e fechei os olhos .
E enquanto o avião
corria pela pista ,
desejei ardentemente que Salazar morresse logo .
Ou então
eu . (p.203)
Nininha
recebe dinheiro de um
primo para regressar a Lisboa após sair de Dakar. Este primo a livra
da PIDE e se torna seu
confidente , tomando conhecimento
inclusive dos seus
segredos com
Tónio. Nininha escreve a Tónio no Brasil, contando-lhe tudo .
Tónio, agora Eduardo, tem crises de ciúme .
Nininha pede ao primo que escreva a Tónio. E o primo
o faz, como bom
amigo de Nininha, dizendo a Tónio que Nininha sente um
enorme vazio .
Aliás , vazio
este que
nada mais
era que
a ausência de Tónio. Dá-se então que o inseguro e enciumado Tónio manda
a Nininha uma carta de rompimento :
Maria Elvira, já que ele preenche o vazio
que tu
tens, fica com ele .
O meu vazio
ficará comigo . Infelizmente ,
não tenho quem
o preencha. Adeus . Eduardo. (EX-TÓNIO).
(p.271)
A força
das personagens femininas. A fraqueza das personagens
masculinas.
– Só
porque foste tu
a partir , pensaste que
só tu
tinhas o direito
de sentir a solidão .
Passou
as mãos pelo rosto . Acendi um
cigarro .
– Escuta ...
– Não
é verdade isso ,
Eduardo?
Puxei
uma tragada .
– Eu
só tinha
vinte e três anos ,
Nininha. E tava muito
só . Sem
ninguém que
me amparasse.
Nininha
abriu a minha mão
em cima
da mesa e colou a palma
da mão dela na minha .
– Eduardo, quando
tu tinhas
vinte e três anos ,
eu tinha
vinte e dois . E também
estava só . E continuo só até hoje .
Fechei
os olhos em
volta da mão
dela. Ela abanou a cabeça .
– Escrevi-te dezenas
de cartas e pedi a ele
que te
escrevesse. Escreveu-te e tu nunca respondeste. Nem
às minhas cartas
nem às dele.
Apertei
a mão dela com
força e puxei uma tragada .
– Nininha, que
adianta isso agora ?
Eu vim a Portugal pra
dizer que ainda gosto de você .
– Eu
penso que
tu nem
isso sabes.
Acendeu
um cigarro
e abanou a cabeça .
– Tu
não mudaste mesmo
nada , Eduardo. (p.272, 273)
Tem-se
a impressão de que
Cunha de Leiradella escreve também para se salvar dos seus fantasmas ou de
seus “galos
que cantam como
se houvesse uma capoeira dentro
dos ouvidos ”. Fantasmas
e realidades se confrontam nesse grande espetáculo que é a literatura . A ambos o escritor
concede o privilégio da palavra para que sejam do jeito
que são
e, assim , possam viver
simplesmente e sem
mais assustar
ninguém .
LEIRADELLA,
Cunha de. Cinco Dias
de Sagração . Rio
de Janeiro : Record, 1993, 287p.