quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O Ciclista do Vale das Videiras

 No friorento inverno deste ano, a Festa do Colono em Petrópolis se expandiu por várias partes da cidade. Vieram muitos turistas. Tudo correu bem, sem grandes atropelos. Até o trânsito funcionou mais ou menos. Pois eu andei pela cidade pensando numa pessoa ausente que, tantas vezes, esteve por trás do preparo dessa grande festa petropolitana. Como funcionário da Prefeitura, cuidou de vários eventos culturais, tratando da logística. Falo do Eduardo Teixeira Soares, que perdeu a última batalha para as células doidas do câncer pouco tempo antes da festa. Bebi um chope por ele. Reverenciei sua ausência física. No fundo, ele continuava presente na cidade, como ainda estão por aqui, como lembranças ou almas, todos os colonos que vieram para cá nos séculos XIX e XX.
     Quatro anos atrás, ele vencera as células doidas. Estava tão magrinho naquela época, ficou tão vulnerável às infecções de qualquer natureza. Mas ele amava a vida. E tinha um amor especial, quase incompreensível, misterioso, profundo, intenso por Nossa Senhora. Rezava com fervor. Para ele, a Mãe de Cristo levaria para longe aquelas células desatinadas. E assim aconteceu. Pelo menos por algum tempo.
     Ele se fortaleceu, readquiriu o vigor dos músculos, pôs sua bicicleta debaixo do sol e se prontificou a viver o sagrado que está nas coisas visíveis e invisíveis do mundo, naquilo que aparece e naquilo que permanece retraído, naquilo que se manifesta e naquilo que se põe na sombra, naquilo que é uma grande gargalhada e naquilo que é a mais comovente timidez.
    Via-se o Eduardo aos domingos no Vale das Videiras. Forte, esguio, de bem com a vida. Seu percurso predileto era o acidentado caminho entre o Vale das Videiras e Miguel Pereira. Quem conhece aquelas subidas e descidas, pendentes e ascendentes, sabe do que estou dizendo. Uma mente sã no corpo forte, como se fosse um daqueles gregos antigos a levar a mensagem de uma batalha em maratonas memoráveis.
     Ele gostava da vida urbana. Sonhava com um belo carro, algumas comodidades mais. Mas, no fundo, continuava a ser o menino criado na roça, acostumado às aventuras entre os bois e os rios de Além Paraíba. Aquele que brincava com as demais crianças descendo o morro sentado sobre folhas de bananeira, num esqui de camponês divertido. A criançada ria a valer. Mas ele, que vislumbrava a vida na cidade, costumava subir até a parte mais alta das elevações só para imaginar-se numa viagem por aquelas estradas poeirentas no rumo de Petrópolis. E certo dia, todos vieram para cá. A família toda
     Ano passado as células doidas retornaram. Ele ficou desnorteado. Correu para Aparecida e conversou com Nossa Senhora. Mas a Mãe de Cristo e de todos nós agora o queria para si em seu regaço. Diante do silêncio na Basílica, ele voltou para Petrópolis. Não em desespero.Mas aproveitando tudo o que ainda lhe restava para viver. Emagreceu. Quase não comia mais. Até dormir ficou difícil, o corpo mais ossudo, tudo lhe feria as carnes poucas. Mesmo assim, comemorou o Ano Novo no Rio de Janeiro, levado que foi para lá por seus familiares. Viu os fogos de artifícios nos céus e sabia que talvez fosse a última vez.
   E foi assim que aconteceu. As forças se esgotaram, toda a vitalidade desapareceu, ele caiu no silêncio das coisas eternas. O resto foi o de sempre. O velório. O pranto dos familiares e dos amigos. A saudade antecipada. O vazio irreparável. Seu último pedido: a cremação. E que depois as cinzas fossem lançadas em parte no mar do Rio de Janeiro muito amado, em parte na Vista Chinesa.
    Será que o Eduardo desapareceu mesmo? Sei não. Cada vez que vou ao Vale das Videiras e pego o caminho que vai dar em Paty de Alferes e em Miguel Pereira, sou capaz de ver aquele ciclista valoroso desafiando as pendentes e vibrando com a vida. Ele é agora mais que uma lembrança. Ele se tornou uma alma feliz nos braços de sua amada Nossa Senhora. Se não for assim, estou vendo fantasmas.
    Mas quem disse que não há felicidade entre os bons fantasmas? Pois ele pega onda no mar do Rio, sobe e desce da Vista Chinesa e, quando chega o domingo, vem correndo no vento para as montanhas de Petrópolis. Em sua bicicleta sai por aí louvando a vida. Ele é o cara!
 

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