quarta-feira, 28 de junho de 2017

O homem ao deus-dará II, Soljenitsin e os gulags soviéticos.

     Nasci na segunda metade do século XX. Época de Guerra Fria, golpes de estado, revoluções, guerrilhas, totalitarismos, ameaça de holocausto nuclear. Parece que foi ontem. Imaginava-se que o apocalipse bíblico irromperia nos céus cruzados por mísseis balísticos. Mas nada disso aconteceu. O mundo seguiu em frente, o Muro de Berlim ruiu de podre, a União Soviética se acabou, vieram a globalização e a cibernética, muitos dos meus entes queridos se foram. 
     Ficamos nós e nossas cinzas, nós e nossas esperanças, nós e nossas perplexidades. 
     Para que recordar o que já está morto ou deveria estar morto?
     Talvez porque muita coisa lá de trás deixou de ser essencialmente pensada. Talvez porque nos deixamos levar novamente pela fúria crescente. Talvez porque esteja outra vez se gerando um monstro capaz de aniquilar a condição humana. Que alguns já chamam apressadamente de terrorismo. Que já foi nomeado de diversas maneiras, dissimulado, camuflado, insinuante, criminoso. No fundo é somente o velho ódio humano. Nada se pode fazer contra ele, porque é constitutivo da vida. Mas bem que se pode amenizar o nosso desvario. 
     Talvez por isso valha a pena recordar Soljenitsin, escritor russo que ganhou o Nobel de Literatura. Que esteve preso nos gulags soviéticos (Sigla, em russo, para "Administração Central dos Campos"; geralmente esses campos de trabalho forçado se situavam em regiões geográficas inóspitas, sob as condições climáticas extremas que levavam mais depressa à morte os prisioneiros mal-alimentados e submetidos a uma péssima higiene). Li seu Arquipélago Gulag nos meus vinte anos e o releio agora que os cabelos brancos já se impuseram com toda sua carga de silêncio e apreensão. 
      Recordar Soljenitsin para amenizar o ódio de agora. E para escapar da sensação de deus-dará que se experimenta neste aturdimento do século XXI que mal começou.
      Recordar Soljenitsin para repudiar as máquinas de morte totalitárias em qualquer parte do mundo. Aqui e lá. E até dentro da gente, que se transforma em campo de extermínio, quando se permite ser movido por aquela mesma força que vigorava tanto na loucura de Hitler quanto na de Stálin. E que vigorou em tantos caudilhos, em tiranos afamados ou anônimos. E que continua a germinar em nossos palácios, em nossas cadeias, em nossas ruas e até em nossas casas.
     Basta!
     Que fale Soljenitsin em toda sua impotência como homem sob o arbítrio. Que fale Soljenitsin em toda sua grandeza de artista da palavra.
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" Detenção! Será necessário dizer que isso representa uma brusca reviravolta em toda a sua vida? Que é como a queda a pique de um corisco sobre a sua cabeça? Que é uma comoção espiritual insuportável, a que nem todas as pessoas podem adaptar-se, e que frequentemente leva à loucura?
O universo tem tantos centros quanto os seres vivos que nele existem. Cada um de nós é o centro do mundo e do universo, e ele se desmorona quando alguém nos sussurra ao ouvido: 'Está preso!'.
Se você já está preso, acaso algo terá ainda resistido a esse terremoto?
Incapazes, com o cérebro ofuscado, de abarcar esses abalos do universo, os mais sutis, exatamente como os mais simples dentre nós, não conseguem extrair nesse instante, de toda a sua experiência de vida, senão algo como: 'Eu? Por quê?'
Pergunta repetida milhões e milhões de vezes antes de nós, e que nunca obteve resposta.
A detenção é uma transição instantânea e evidente, uma ruptura, a passagem de um estado a outro. Ao longo da sinuosa rua da nossa vida caminhamos felizes, ou arrastamo-nos penosamente, passando diante de não importa que tapumes de madeira podre, de barro, de tijolo, de cimento, de ferro fundido.
Pensamos no que existe para além deles? Nem com a vista nem com o pensamento tentamos penetrar no que há por trás, quando é ali mesmo, bem perto, a dois metros de nós, que começa o país do Gulag. Nem ainda distinguimos, nesses tapumes, a inúmera quantidade de portas estreitas e bem ajustadas, bem camufladas. Todas, todas essas portas foram preparadas para nós! E eis que uma se abre rápida e fatal, e que quatro mãos brancas, masculinas, não habituadas ao trabalho, mas como garras, nos prendem pelas pernas, pelos braços, pelo colarinho, pelo boné ou por uma orelha, e nos arrastam como um fardo, enquanto a porta fica para trás de nós, a porta da nossa vida passada, fechada para sempre.
E é tudo. Você é um preso!
E nada encontra para responder a isso, a não ser um balido de cordeiro: 'Eu? Por quê?'.".
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     Deixo este texto como uma possível contribuição à liberdade do pensamento e à preservação do que há de humano em cada um de nós. Para que a gente deve se transformar numa fábrica de morte? Que se ganha com isso? 

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