segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O mundo como quitanda

   Tem chovido mais à tarde no verão. Pancadas de chuva. Semana retrasada, minha rua se transformou em rio caudaloso. Por isso tem sido normal despertar, afastar a cortina, abrir a janela e deparar com o sol. Sempre é muito agradável experimentar a força dessa claridade do amanhecer em janeiro. A coisa muda de figura no transcorrer do dia, se o calor se intensificar. Horrível o calor para quem se acostumou com a brisa fresca da montanha. Assim é o primeiro mês do ano que há pouco começou.
   Meu réveillon aconteceu em Manaus. O céu da noite na Ponta Negra tão bonito. Fazia tempo que eu não experimentava tanta esperança. Mas assim foi somente por algumas poucas horas. Até que, na tarde de mormaço do primeiro domingo do ano, reverteu-se a ilusão de tempos melhores: em Manaus começava a onda de massacres nos presídios brasileiros. Difícil de crer. Assim o país se tornou cenário de um verão dantesco. Sangue, vísceras expostas, decapitações, gosto de inferno.
   Corri de volta para a Mosela que um dia Manuel Bandeira cantou em poesia.
   A manhã de sol. Fui até a quitanda. Poucos carros na rua. Ainda estamos em férias escolares. Muitos foram passar o mês em Cabo Frio. Nunca foi tão agradável ir até a quitanda. Não havia lido jornais. Tampouco me interessava pelo que estava acontecendo. Somente pensava nas alfaces viçosas das primeiras horas do dia. E talvez no almoço com salada de alface, tomate, cenoura, beterraba, azeitona, rodelas de ovo cozido. Que estranheza aquela espécie de paz.
   Havia pouca gente na quitanda. Fiz minha compra bem sossegado.
   Depois o caminho de volta. O resto da manhã, os jornais, os livros, os escritos, as notícias da TV. Que me importava o horror dos acontecimentos? Que me importavam as opiniões das gentes sobre esse terror das cidades brasileiras? Que me importava o lá de fora, se bem dentro de mim só valia a pena esperar a salada no almoço?
   O problema é que, em vez de alface crespa, eu trouxera chicória. Não é a mesma coisa. Não tem o mesmo gosto. Faltou perguntar à quitandeira o que era alface crespa e o que era chicória. Era preciso falar e não falei. Tive de absorver o imprevisto de comer a salada com chicória em vez de alface.
   Era preciso falar e não falei. E agora escrevo sobre alfaces e chicórias.
   Ainda assim, com o gosto de chicória na boca, recuso-me a falar do horror.
   Escrevo sobre alfaces e chicórias. E me sinto feliz, porque isso basta para a vida, por enquanto.
   Bem que o mundo poderia ser uma quitanda e jamais esse lugar perigoso que é. Afinal de contas, equivocar-se entre alface crespa e chicória em nada é danoso. Mas errar nas políticas públicas, por negligência ou má-fé, traz muito malefício ao mundo e o torna quase insuportável para a vida,

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