domingo, 6 de setembro de 2015

Um homem



        Vive nesta rua um homem de sentimentos ambíguos, de pensamentos desconcertados. Tudo nele é pueril, tumultuado, incerto, hesitante. Aparenta a experiência de um homem bem vivido, mas sofre de ser criança pirracenta dentro de um corpo maduro. Por isso é triste: porque perdeu a noção do tempo, embora justifique a própria melancolia como um defeito de nascença. Este é outro grave defeito dele: o de não falar objetivamente, o de valer-se excessivamente de falas oblíquas, de obscuras metáforas. Tudo nele é máscara, por isso disfarça a adolescência tardia com discursos circunspectos.
        Adolescentes são adolescentes. Homens são homens. Adolescentes sonham, homens vivem. Adolescentes nunca se amedrontam com a morte, homens vislumbram incessantemente a morte. Quando dentro de uma mesma criatura esses personagens ocupam o mesmo espaço, ao mesmo tempo, na mesma vida, os resultados são patéticos: adolescentes sobrevivem em homens e homens perdem sua solidez – lá dentro, um menino birrento resiste a morrer, e aqui fora um homem envelhece sem se dar conta disso. 
         Assim é este homem de minha rua. Taciturno, distante, irresoluto. Às vezes é visto na padaria, outras vezes na quitanda; esporadicamente no botequim. Qualquer que seja o lugar onde se encontre, diz coisas que ninguém entende. Se ele fala de política, não apenas critica governos, como todos o fazem, mas também alude a repúblicas platônicas lideradas por filósofos. Se ele fala de mulher, não apenas repete comentários masculinos corriqueiros, como todos o fazem, mas também assinala a poesia que existe em olhares, em andares, em vozes femininas. Se ele fala de solidão, diz duas ou três palavras e depois, apático, se cala. Nada nele é incisivo, brutal, rude, desconfiado, como se espera dos homens que já tiveram tempo de se livrar da ingenuidade.
        Quem é ele? Um poeta ou um filósofo?
        Dele são estas palavras soberbas: “Toda arte é um ato de magia, por isso escrevo; nesse fluxo de palavras e reminiscências, empreendo uma marcha sem fim através da verdade. Caminho querendo enxergar um ponto de luz geralmente inalcançável – não o sonho, mas a vida!”. Frases de efeito que não combinam com o falar direto e seco dos outros homens. É isto ser poeta?
Esta manhã, ele escreveu um soneto em louvor a um beijo de amor e, concluída a obra-prima, renunciou aos mecanismos da poesia, ao constatar que nenhum beijo de poema vale mais que um beijo propriamente dito – beijo de poesia escrita é beijo ausente, beijo sem a boca do ser amado, beijo sem gosto de hálito e saliva, beijo sem humanidade, beijo que nunca deixa de ser anseio para virar fato.
Ainda esta manhã, ele recorreu a tratados filosóficos escritos e lidos em grego clássico. Ninguém o entendeu quando ele se expressou na linguagem cifrada dos filósofos antigos. Ninguém compreende metafísica no botequim, que é lugar onde só se entende de sobrevivência, da vida crua, do mundo infame. Ao reconhecer que desconhecia o vocabulário usual dos outros e que não poderia mais se comunicar com ninguém, silenciou de vez, renunciando também aos ardis da filosofia.
O silêncio desse homem é medo. Os outros opinam que é presunção. Mas é somente medo, um medo invencível. Está diante de um navio, mas não se atreve a deixar o cais. Está diante de um avião, mas se amedronta para enfrentar as nuvens, as distâncias. Está diante das catedrais, mas tem medo dos céus e finge julgar-se deus de si próprio. Está diante do mundo, mas é retido pelos muros do seu refúgio ilusório. Está diante das pessoas, mas se agarra em desespero a fantasmas solitários. Está diante da vida, mas não se decide a viver.
Por sorte, passa agora pela rua uma procissão de revolucionários e de místicos. O adolescente que sobreviveu no homem corre atrás dos revolucionários, pensando em derrubadas de governos pelas armas. O homem que envelhece sem se dar conta disso corre atrás dos místicos, almejando alcançar uma iluminação que só é concedida aos santos. Para sua perplexidade, a procissão desaparece na esquina, levando para sempre os revolucionários e os místicos, que eram apenas espectros, nada mais que espectros, ou ideias que jamais seriam outra coisa senão ideias. “Somos apenas simulacros, nós e todas as coisas...”, conclui na esquina onde sumiram as derradeiras fantasias.
Só há mundo infame, só há sobrevivência, só há vida rente à sarjeta. O homem entende. Assim morre o menino pirracento que resistia a morrer, assim nasce o homem que finalmente se dá conta de que vive para morrer. (A birra não combina com a inocência!).


4 comentários:

  1. O texto é soberbo. Mas o menino jamais deveria morrer. Antes morrer o velho

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    1. É o menino pirracento que precisa morrer. Sem ele, pode haver o velho com a inocência do menino!

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  2. Penso que o homem maduro pode viver, sem abandonar o menino, isso lhe faria muito triste e solitário, afinal sempre viveram juntos e, por que não, morrerem juntos também?

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    1. O homem maduro conserva sua inocência para poder ser receptivo à vida; só as crianças são verdadeiramente abertas para o mundo! Mas os meninos birrentos, estes são uma praga que impedem o homem de amadurecer; e homens imaturos são infelizes consigo próprios e não conseguem fazer ninguém feliz! (O que o homem maduro não pode perder, em seu espírito, é a inocência da criança!)

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