segunda-feira, 10 de agosto de 2015

PAI

     Todo dia me lembro do meu pai. Seu modo prático de enxergar a vida,
sua rudeza às vezes exagerada, seu vocabulário de poucas palavras, sua
vida de tanta experiência, seus pecados inconfessáveis, suas rezas tão
desesperadas, ele pequenino diante de Deus e Deus tão imenso na frente
dele.
     Aprendi com ele tantas coisas boas, mas também centenas de
equívocos. Fez questão de me ensinar que lágrimas tinham natureza
feminina, que homem precisava mesmo era mostrar valentia, pôr comida na
mesa, cumprir obrigações, conhecer o vasto mundo, desfrutar o direito de
retornar para casa, de madrugada, sempre com muitas histórias para contar
e impregnado de múltiplos cheiros femininos. Ele me acordava,
ruidosamente, ao chegar de madrugada, ligando a velha vitrola para ouvir e
cantar boleros. Eu o olhava, entre fascinado e assustado, sem saber dizer se
ele era um macho vencedor ou um homem aturdido.
     Meu pai me dizia que homens falam necessariamente com rispidez,
andam de cara fechada, escondem faca na cintura, seduzem mulheres,
vencem desafetos, têm certezas absolutas. Jeito de ele moldar um filho para
os combates da vida. Para ele, a poesia só tinha vez nas letras decoradas
daquelas canções passionais. Em sua opinião, poetas eram seres
demasiadamente vulneráveis. Preferia para mim outro destino, no fundo
desconfiava desse mistério de escrever versos, achava o ofício de poeta uma
excentricidade doentia.
     Um dia meu pai me deu presente uma espada, me apontou a rua (Vai,
que o mundo te espera, meu filho!), me ensinou meia dúzia de fórmulas
irresistíveis de sedução e me aconselhou a ter cuidado com os excessos de
romantismo, que isso, na opinião dele, aniquilava os homens e os fazia
sucumbir facilmente diante de mulheres encantadoras e interesseiras. “Nada
de poesia, meu filho, nada de poesia: viver é um combate diário, privilégio
dos fortes!”
     Homem de ir muito à missa, usava um cabalístico crucifixo de ouro,
quase um amuleto. Tinha fé em Deus e nos santos. Às vezes dizia que anjos
e fadas, ou espíritos iluminados, como costumava assinalar, vinham até
nossa casa para dar conselhos. Nessas horas a vida se transformava numa
indescritível epifania. Certa vez, escutou de um desses santos que o meu
destino era mesmo fazer versos e que eram inúteis as suas resistências à
poesia. Pensou durante algum tempo e concordou com pesar: “Que pelo
menos escreva versos irresistíveis para lindas mulheres!”. E foi assim que
meu pai se convenceu de que não era tão nociva a ideia de ter um filho
poeta.
     Cresci, vivi, tive inumeráveis provações e quedas, mas conquistei
também algumas vitórias. Andei muito pelo mundo, virei uma espécie de
cigano, adquiri o gosto de vagar indefinidamente pela vida. Certa vez tive de
viajar para longe e disse a ele: “Me espere, pai, que vou para outro país,
mas volto em dois anos”. Ele andava adoentado, meio sem noção do que era
estar vivo. Olhou-me com seus olhos graúdos, riu com certa tristeza, me deu
um abraço e ficou parado na calçada, esperando que eu sumisse na esquina.
Suas palavras ecoavam dentro de mim: “Nada de poesia, meu filho, nada de
poesia: viver é um combate diário, privilégio dos fortes!”; “Que pelo menos
escreva versos irresistíveis para lindas mulheres!”. Longe dele eu escrevi
poemas épicos que falavam de homens conquistadores – como ele era em
suas andanças noturnas – e mulheres sonhadoras, eu escrevi tanto sobre
histórias de amor, sobre esperanças e desesperos humanos. Guardei tudo
em um caderno de espiral, pensando que fosse ler para ele. Porém, numa
madrugada de junho, o telefone tocou trazendo mensagem do Brasil.
     Sobressaltado, me acordei. Afinal, telefones não tocam sem mais nem
menos em horas avançadas da noite. Tive um indesejável pressentimento, e
tudo ficou escuro dentro de mim, e minha mãe me disse: “O teu pai
morreu!”. O coração, tinha de ser o coração, logo o coração que vibrara
tanto dentro dele! Depois de tantas peripécias, aquele valente silenciara nos
braços da mulher que o acompanhara por mais de quarenta anos. Minha mãe
me disse que ela se levantara para ir ao banheiro, ele estava se mexendo e
murmurando na cama, como se estivesse doendo o peito. “Quando voltei,
perguntei se ele estava bem, ele me olhou sem dizer nada, se aconchegou
nos meus braços, fechou os olhos, ficou quieto.” Morrer assim deve ter sido
para ele um memorável acontecimento, protegido pela fiel mulher amada,
que mais pode querer um homem valoroso?
     Andei pela casa o resto da madrugada, esperei amanhecer. Vi, pela
janela, que as pessoas apareciam como sempre, cruzando a rua, passando
por minha calçada, cada uma com seu destino. Liguei meu rádio de pilha,
escutei as notícias da manhã, chorei como um forte, senti como um poeta. O
sol brilhava sobre a cidade.
     Escrevi pequenas notas em meu diário: “A gente se encontra, pai,
qualquer dia. Aí vou tirar da estante o amarelecido caderno de espiral com os
poemas que eu não tive tempo de ler para o senhor. De algum lugar desse
céu, o senhor deve estar me enxergando, constatando que sou poeta de
versos sedutores (alguns, líricos; outros, metafísicos), mas também homem
bravo, que nunca leva desaforo para casa e maneja habilmente qualquer tipo
de arma. Aprendi bastante com o senhor, nunca me esqueci dos seus
conselhos, das coisas certas que me ensinou e também dos seus muitos
erros. Quando eu for embora daqui, quando eu deixar este mundo para me
tornar alma livre, tenho a certeza de que vamos nos reencontrar. E
saltaremos de estrela em estrela, percorrendo espaços siderais, rindo a valer
dessa coisa ilusória que a gente chama de vida."

Nenhum comentário:

Postar um comentário