segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O ópio chinês

     Quando menino, escutei muitas cantigas de ninar e fábulas
inesquecíveis de minha avó Paula. Tínhamos uma rede, uma lamparina, uma
janela entreaberta e um quintal onde cantavam as cigarras. Ela me contava
histórias de santos, cobras encantadas, índios valorosos e até de imigrantes
chineses. Deles havia escutado o relato da vida de um rei louco.
     Segundo minha avó, havia no ponto mais remoto da China – e
apontava para o Oriente – uma esquecida província governada por um rei
solitário e um conselho de sábios. Certa vez, esses sábios se reuniram para
tratar de um grave problema: o que fazer do soberano viciado em ópio e
dado a engendrar ardis contra o povo.
     O rei enlouquecera. Dizia-se que ele, na solidão do palácio, exagerava
no uso do ópio para conseguir suportar os assuntos corriqueiros do governo,
as reclamações dos ministros, o descontentamento das tropas, os queixumes
do povo, as estiagens prolongadas, as colheitas perdidas, as iminências dos
golpes de estado. Levantava-se muito cedo e se retirava para a montanha, a
fim de ler pergaminhos de filosofia e política. Depois, com a mente inspirada,
retornava ao povoado e começava a tomar medidas drásticas de governo.
     Primeiro: ordenava às tropas que invadissem e saqueassem as casas
do povo, e matassem os velhos, as crianças; terror, governo de terror para
acabar com a visão infernal da miséria. Depois, temeroso de rebeliões (a
maior parte da tropa vinha dessas classes populares dizimadas; só os
generais procediam das castas), voltava-se contra suas próprias legiões e
mandava para a forca os suspeitos de conspiração ou motim. Em seguida, se
juntava aos sábios e procurava estabelecer pactos criminosos para fuzilar
inimigos e se manter no poder.
     Acostumada a governantes sanguinários, a província se resignava. Mas
os sábios e os generais, os ditos aliados do soberano, um dia decidiram pôr
fim ao governo e providenciaram um plebiscito: vida ou morte para o tirano?
Ali mesmo, na praça dos fuzilamentos, o rei perdeu a cabeça, decepado por
um golpe de machado.
     Moral da história: primeiro, a solidão aniquila as almas, despertando
déspotas incorrigíveis; segundo, o maior efeito do poder é enlouquecer os
que o exercem com descabida onipotência; terceiro, a erudição raramente
quer dizer sabedoria, sendo inúteis os pergaminhos quando não se sabe
interpretar corretamente os sinais da vida; quarto, não há, nunca houve e
jamais haverá fidelidade absoluta nos palácios; e, por último, a justiça
popular é, em si mesma, um grande engodo, pois só acontece pela vontade
exclusiva dos opressores, na hora em que estes bem entendem que devem
dar às pessoas a ilusão de que elas têm licença para se meterem nos
assuntos dos governos.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O círculo



“A mortalidade ou a corruptibilidade do corpo não pode afetar a
imortalidade ou a incorruptibilidade da alma.”
(De um manuscrito rosacruz)


     Um círculo, um símbolo sagrado, o que gira sempre. Dentro dele nada
começa e nada termina, tudo existe. A vida, que mais é do que uma alegoria
do círculo? A morte, que mais é do que a aparência de um círculo extinto?
    No Livro do Gênesis, encontrei que Deus, certa vez, apanhou barro,
esculpiu o homem e, para transformar sua criatura em algo factível, soprou
dentro dele a essência anímica do universo. Se a origem da alma humana foi
mesmo esse sopro divino dentro daquela figura inanimada de barro, entendo
melhor o porquê de eu me pretender definitivo: é que guardo comigo a
reminiscência desse hálito primordial.
     Estou diante do espelho. Cadê a alma? Só vejo o homem perecível e
mortal. Os cabelos precocemente grisalhos. O corpo maduro (ou gordo?). As
rugas inevitáveis. Os medos ridículos. O olhar impreciso. O não sei o quê.
     Eu me olho. Sou o quê? Um homem sujeito aos resfriados, aos vírus,
às bactérias e às angústias. Coisa fugaz. Tenho pela frente menos vida e
mais mortalidade. Reajo. Simulo imortalidade com palavras, sou um livro
que pode ser lido e relido, mas como evitar a última leitura?
     Escrevi este texto imaginando a vida e a morte como um círculo. Eu
dentro dele. Em alguma parte dele. Escrevendo, atônito. No meio dessa
escrita, supus ver, subitamente, o olhar de Deus. Mas como se Deus não tem
olhos e se Deus é um Círculo?
     Diante dessa constatação, me faltaram palavras para continuar. Não é
que eu tivesse perdido a inspiração, é que repentinamente eu submergi por
completo na inspiração. Acolhido pelo Círculo, emudeci. Ainda estou mudo.
Espantosamente mudo. Talvez esse espanto, essa palavra que nunca perde a
condição de ideia, talvez isso é o que seja a alma – alguma coisa mais ou
menos imune aos resfriados, aos vírus, às bactérias e às angústias. Que não
vira coriza. Que não vira pneumonia. Que não vira infecção. Que não vira
câncer. Que não vira morte. Que não vira nada porque nada é.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

PAI

     Todo dia me lembro do meu pai. Seu modo prático de enxergar a vida,
sua rudeza às vezes exagerada, seu vocabulário de poucas palavras, sua
vida de tanta experiência, seus pecados inconfessáveis, suas rezas tão
desesperadas, ele pequenino diante de Deus e Deus tão imenso na frente
dele.
     Aprendi com ele tantas coisas boas, mas também centenas de
equívocos. Fez questão de me ensinar que lágrimas tinham natureza
feminina, que homem precisava mesmo era mostrar valentia, pôr comida na
mesa, cumprir obrigações, conhecer o vasto mundo, desfrutar o direito de
retornar para casa, de madrugada, sempre com muitas histórias para contar
e impregnado de múltiplos cheiros femininos. Ele me acordava,
ruidosamente, ao chegar de madrugada, ligando a velha vitrola para ouvir e
cantar boleros. Eu o olhava, entre fascinado e assustado, sem saber dizer se
ele era um macho vencedor ou um homem aturdido.
     Meu pai me dizia que homens falam necessariamente com rispidez,
andam de cara fechada, escondem faca na cintura, seduzem mulheres,
vencem desafetos, têm certezas absolutas. Jeito de ele moldar um filho para
os combates da vida. Para ele, a poesia só tinha vez nas letras decoradas
daquelas canções passionais. Em sua opinião, poetas eram seres
demasiadamente vulneráveis. Preferia para mim outro destino, no fundo
desconfiava desse mistério de escrever versos, achava o ofício de poeta uma
excentricidade doentia.
     Um dia meu pai me deu presente uma espada, me apontou a rua (Vai,
que o mundo te espera, meu filho!), me ensinou meia dúzia de fórmulas
irresistíveis de sedução e me aconselhou a ter cuidado com os excessos de
romantismo, que isso, na opinião dele, aniquilava os homens e os fazia
sucumbir facilmente diante de mulheres encantadoras e interesseiras. “Nada
de poesia, meu filho, nada de poesia: viver é um combate diário, privilégio
dos fortes!”
     Homem de ir muito à missa, usava um cabalístico crucifixo de ouro,
quase um amuleto. Tinha fé em Deus e nos santos. Às vezes dizia que anjos
e fadas, ou espíritos iluminados, como costumava assinalar, vinham até
nossa casa para dar conselhos. Nessas horas a vida se transformava numa
indescritível epifania. Certa vez, escutou de um desses santos que o meu
destino era mesmo fazer versos e que eram inúteis as suas resistências à
poesia. Pensou durante algum tempo e concordou com pesar: “Que pelo
menos escreva versos irresistíveis para lindas mulheres!”. E foi assim que
meu pai se convenceu de que não era tão nociva a ideia de ter um filho
poeta.
     Cresci, vivi, tive inumeráveis provações e quedas, mas conquistei
também algumas vitórias. Andei muito pelo mundo, virei uma espécie de
cigano, adquiri o gosto de vagar indefinidamente pela vida. Certa vez tive de
viajar para longe e disse a ele: “Me espere, pai, que vou para outro país,
mas volto em dois anos”. Ele andava adoentado, meio sem noção do que era
estar vivo. Olhou-me com seus olhos graúdos, riu com certa tristeza, me deu
um abraço e ficou parado na calçada, esperando que eu sumisse na esquina.
Suas palavras ecoavam dentro de mim: “Nada de poesia, meu filho, nada de
poesia: viver é um combate diário, privilégio dos fortes!”; “Que pelo menos
escreva versos irresistíveis para lindas mulheres!”. Longe dele eu escrevi
poemas épicos que falavam de homens conquistadores – como ele era em
suas andanças noturnas – e mulheres sonhadoras, eu escrevi tanto sobre
histórias de amor, sobre esperanças e desesperos humanos. Guardei tudo
em um caderno de espiral, pensando que fosse ler para ele. Porém, numa
madrugada de junho, o telefone tocou trazendo mensagem do Brasil.
     Sobressaltado, me acordei. Afinal, telefones não tocam sem mais nem
menos em horas avançadas da noite. Tive um indesejável pressentimento, e
tudo ficou escuro dentro de mim, e minha mãe me disse: “O teu pai
morreu!”. O coração, tinha de ser o coração, logo o coração que vibrara
tanto dentro dele! Depois de tantas peripécias, aquele valente silenciara nos
braços da mulher que o acompanhara por mais de quarenta anos. Minha mãe
me disse que ela se levantara para ir ao banheiro, ele estava se mexendo e
murmurando na cama, como se estivesse doendo o peito. “Quando voltei,
perguntei se ele estava bem, ele me olhou sem dizer nada, se aconchegou
nos meus braços, fechou os olhos, ficou quieto.” Morrer assim deve ter sido
para ele um memorável acontecimento, protegido pela fiel mulher amada,
que mais pode querer um homem valoroso?
     Andei pela casa o resto da madrugada, esperei amanhecer. Vi, pela
janela, que as pessoas apareciam como sempre, cruzando a rua, passando
por minha calçada, cada uma com seu destino. Liguei meu rádio de pilha,
escutei as notícias da manhã, chorei como um forte, senti como um poeta. O
sol brilhava sobre a cidade.
     Escrevi pequenas notas em meu diário: “A gente se encontra, pai,
qualquer dia. Aí vou tirar da estante o amarelecido caderno de espiral com os
poemas que eu não tive tempo de ler para o senhor. De algum lugar desse
céu, o senhor deve estar me enxergando, constatando que sou poeta de
versos sedutores (alguns, líricos; outros, metafísicos), mas também homem
bravo, que nunca leva desaforo para casa e maneja habilmente qualquer tipo
de arma. Aprendi bastante com o senhor, nunca me esqueci dos seus
conselhos, das coisas certas que me ensinou e também dos seus muitos
erros. Quando eu for embora daqui, quando eu deixar este mundo para me
tornar alma livre, tenho a certeza de que vamos nos reencontrar. E
saltaremos de estrela em estrela, percorrendo espaços siderais, rindo a valer
dessa coisa ilusória que a gente chama de vida."

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O romance Tomé Mayruna

Prólogo

   Por que escrever Tomé Mayruna?
   Fiz do meu particular universo mítico um poético e abstrato refúgio
chamado Literatura. Nessa espécie de lugar sagrado, convergem para um
ponto impreciso de mim sonhos e memórias, que somente subsistem
graças à arte das palavras - uns poucos substantivos, alguns sóbrios
adjetivos e dois verbos prediletos, desejar e lembrar, que eu conjugo
como quem decifra a metáfora do tempo e a substância da vida: nunca
estou em lugar algum, vivo no fluxo apressado dos acontecimentos.
   Dependo de reminiscências ou da imaginação para viver. Em outras
palavras, só enxergo manhãs clareadas quando já vi e memorizei o sol.
Escrevo textos aturdidos e urgentes, imitações do canto das cigarras de
minha rua, que cantam com frenesi porque pressentem a perturbadora
transitoriedade das coisas - cantam para a vida e secam para a morte.
Todos somos simulacros de cigarras, chegamos e vamos embora na
vertigem do tempo, aparecemos com o sol e sumimos na escuridão,
brotamos na saudade alheia e murchamos no esquecimento do mundo.
Existir e perecer formam a mesma metáfora das horas perdidas e dos
milagres ansiados.
   Algumas vezes, risco traços alegres ou não às variadas lembranças
de minha existência e construo memórias fingidas dentro de memórias
verídicas - mergulho, por assim dizer, em um labirinto de reminiscências
superpostas. Esse é um privilégio dos poetas e dos loucos, dispor do
atributo de lembrar o fato que existiu e o fato ainda por inventar - afinal,
toda literatura tem um resíduo indelével da loucura criativa e da fecunda
fragilidade humana. Escrever Tomé Mayruna resulta desse
incompreensível fato: se não o escrevo, me transformo em cigarra com
morte anunciada.
       Humberto B. Leal

PARTE I

A MEMÓRIA

Capítulo 1

     Madrugada. Tomé Mayruna, sozinho numa cela fétida da
delegacia de Marupiara, uma remota vila na Amazônia
brasileira, olha o céu e o casario através das grades. A solidão
e a iminência da morte fazem-no pensar e lembrar.

     “Daqui a pouco vai amanhecer. Sou testemunha solitária de tudo
que acontece nesta hora que antecede o clarear do dia de meu santo
guerreiro, São Jorge destemido, que matou muitos dragões e, dizem, vive
mesmo na Lua Cheia. Segundo os índios mapanas, esse santo católico, a
quem eles conhecem como Sawara Suçuarana, até hoje continua vivendo
nos terreiros das malocas e nos oratórios das casas das benzedeiras.
Apesar da minha fé nesse santo de guerra, sei que ele não vai aparecer,
derrubando tudo com seu cavalo, dizimando os meus inimigos. O meu
santo predileto está longe, brigando em outra parte desse céu grande de
Deus, e é por isso que me sinto completamente abandonado. Nem os
santos da igreja, nem os deuses da mata, nem os amigos do mundo,
ninguém pode fazer nada por mim.
     Estou vendo o relógio de parede da delegacia, o guarda Silvério
dormindo, uma luzinha de sol querendo aparecer entre nuvens escuras.
Há tanto silêncio em Marupiara, uma espécie de sossego misterioso, um
silêncio avassalador de Deus, que me assusto quando um galo canta, em
algum quintal, um canto de presságio ruim. Nem os bichos experimentam
paz nesta madrugada.
     Está mesmo amanhecendo e hoje vai ser um dia para ninguém
esquecer, porque está marcada a morte de um homem na forca e faz mais
de cem anos que aconteceu de alguém morrer assim em Marupiara. Esse
acontecimento estremeceu a vila: entre gente eufórica e gente pesarosa,
houve quem chegou a encomendar terno de linho, vestido de seda,
perfume estrangeiro, roupa de luto e velas roxas, para ver suspenso, no
ar da manhã, aquele a quem todos acusam de ser o Mapinguari, o maldito
que come carne humana, este humilde servo de Deus que vos fala.

...........................................................................................................................