quinta-feira, 30 de julho de 2015

O menino ribeirinho do Amazonas

     O menino descia da canoa, exausto de remar, os pés dentro d’água,
sem se preocupar com os detritos ao redor. Ele se misturava com homens e
mulheres que gritavam a valer no Mercado de Manaus. Disputava com outros
meninos de rua o direito de viver e vender mentiras aos forasteiros que
chegavam, inventando-lhes histórias em um dialeto mesclado de palavras
em português, inglês e linguajar indígena. Eu vi esse menino numa manhã
de mormaço, os olhos amendoados, o corpo magrinho, os pés descalços, a
roupa humilde. Dele lembro suas fabulosas alegorias do amor, seus blefes de
criança, seu costume de falar por monossílabos para disfarçar as tristezas
herdadas dos antepassados.
     Usava uma camisa aberta para o sol, andava descalço, pensava na
liberdade sem se dar conta de que ninguém era mais livre do que ele
vivendo na rua, sem preocupação com relógios, o ontem, o hoje, o amanhã.
Queria ser herói de histórias em quadrinhos, passar por todos
os perigos e conquistar uma mulher prodigiosa. Entre acordar e dormir,
andava por becos, subia e descia ladeiras, queria coisas difíceis, tudo o que
lhe fazia falta, o bom amor, a boa roupa, a boa comida, o bom sonho, o bom
viver e o bom morrer. Viver assim era viver um grande poema de poucas
rimas mas muitos adjetivos.
     Passou o tempo. Dizem que o menino cresceu, foi para longe,
conheceu muitos lugares, muita gente. Mas, passados tantos anos, não
conseguiu se livrar de sua própria história, nem perdeu sua fisionomia vaga,
nem deixou de pretender ser um herói, nem abandonou os sonhos de viver
com mulheres prodigiosas.
     Falar dele me faz lembrar o rio Negro, as terras muitas vezes
devastadas por enchentes periódicas, o terror dos ribeirinhos ante os
temporais. Esse menino costumava apanhar a canoa e ir para o meio do rio
enfrentar as tempestades. Gritava para os céus, e ninguém sabia se eram
gritos insolentes ou súplicas desesperadas. Qualquer que fosse a natureza
daquela gritaria, o fato é que tudo se acalmava e ele retornava para casa.
     Afirmavam os mais cultos do lugar, os que pelo menos tinham
aprendido o abecedário, que aquele menino insolente e romântico, meio
sobrenatural por ser filho de uma vidente, era um poeta, um lunático com a
pretensão de querer tocar o Sol com as mãos. Esses eram os rumores sobre
o menino.
     Desconheço o paradeiro desse menino sonhador e com jeito precoce de
homem. Não sei o que a vida fez dele. Sei apenas que, numa certa manhã
de verão, seguiu uma procissão de soldados que passaram por sua vila
vacinando os nativos contra febre amarela. Alguns supõem hoje que, se
fosse possível misturar substâncias imisturáveis, como as essências
antagônicas do poeta e do soldado, ele teria entrado num quartel para
cumprir o sonho de ser herói numa guerra qualquer. Talvez estivesse hoje
atirando de fuzil, marchando na avenida, cruzando pântanos, decepando
inimigos.
     Ignoro se ele está vivo ou não. Se vivo estiver, talvez ainda olhe as
pessoas com seu jeito acanhado de gente tímida, com sua fisionomia
sobressaltada de criança indefesa, ou então com seus olhos insolentes de enfrentar
tempestades. Pode ser que continue andando pelas ruas com a camisa
aberta pro sol e tenha encontrado, num desses acasos da vida, a mulher
prodigiosa com quem sonhou desde que era um simples menino. Se isso
tiver acontecido, terá finalmente tocado o Sol com as mãos de artífice das
palavras e se livrado de seus mais remotos medos, que nada mais eram do
que presságios irreais.
     Esse menino ainda pega a canoa, nos dias de tempestade, e vai gritar
no meio do rio. Esse menino ribeirinho, esse menino poeta sobreviveu nos
meus espelhos.

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