segunda-feira, 8 de junho de 2015

Essa coisa de imensidão

Diz-se que o ontem deve ficar para lá e que para cá só tem lugar o hoje; não é bem assim, porque mal começamos a falar do agora ficamos com a impressão de que as palavras se derretem e correm para longe, imitando os rios desassossegados (que são, a um só tempo, água de nascente, água de correr em leito, água de morrer na foz); estamos sempre falando daquilo que nos escapa e talvez seja por isso que, rebeldes contra a vida que jamais fica e que só pode ser vivida enquanto passa, tenhamos criado esse artifício de lembrar, essa mania incorrigível de sentir saudade.
Como ficam dentro de nós o outrora, o hoje, o amanhã, que são no fundo a mesma coisa? Como ser sendo passageiro, impermanente?
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Talvez ser como o rio, que não distingue dentro de si os diversos tipos de água, pois esse hábito de nomear, classificar, catalogar, valorar, isso vem de uma parte bem específica do homem, aquela que não sabe ser rio.
O rio é coisa muito simples; não é rio principal ou afluente, não está à margem direita ou à esquerda, não contém minerais, hidrogênio, oxigênio, não alimenta povoados e hidrelétricas, não seca nas estiagens prolongadas, não pinga das torneiras e não sacia a sede nem se presta para lavar roupa; o rio é outra coisa... (Que coisa? A vastidão!)
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Lá do fundo da nascente está vindo a água de brotação; quando brota, ainda que sob o disfarce de outro tipo de água, nunca engana os olhos muito atentos: é a mesma água-bailarina que se dispersa pelos caminhos em sua vontade de provar o gosto das terras e permear os mundos; e é também a mesma água já impotente que, depois de tanto percorrer as ribanceiras e as planícies, se aquieta cheia de reumatismo e se submete ao destino de ser água de foz de rio, aquela que deixa de ser rio porque essa condição de rio não lhe é mais necessária.
Trata-se daquela água que vai para a imensidão do mar, porque de lá talvez ela tenha vindo - sim, a imensidão parece ser o destino da água de nascente, da água-bailarina, da água de foz de rio...
...deve ser assim a coisa que permanece, a única coisa duradoura, suponho que seja assim a vida, essa nossa vastidão possível!
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Mais tarde, o mar devolve tudo que acolheu em seu imenso, e as águas devolvidas logo se transformam em nuvens e vão chover nas cabeceiras, infiltrando-se na terra e nos montes, com aquela força de aparecer outra vez como água de nascente e se transformar em rio, em vida, em sagrado; tudo é assim, terrivelmente indizível e inocente - uma inocência pirracenta captada apenas pelos espíritos dóceis e avessa à presunção da certeza científica.
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Estou pensando essas tolices depois de caminhar pelas ruas da cidade e não encontrar mais os que já se foram para além da foz do rio; doeu muito a ausência daqueles a quem não posso mais abraçar; e foi com uma sensação indescritível de pequenez que experimentei, por frações de segundos, essa coisa de imensidão...
...isso me assustou muito, estar diante do enigma indecifrável: o de viver para além da lucidez...
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...Outro dia, quem sabe, eu me arrisco a pensar sobre a imensidão; talvez nunca isso venha a ocorrer, porque para pensá-la é preciso ser acolhido e transformado por ela em toda a sua pungência, deixar de ser homem porque esta condição não será mais necessária; serei somente vastidão...
...(E vastidão não pensa, não sente, não fala! Ela é todo pensamento, todo sentimento, toda fala! Em si e por si!)  

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