terça-feira, 23 de julho de 2013

SÃO JOÃO DEL REY

São João del Rei

     Quando a vi pela primeira vez, garoava e fazia frio. Uma luz tênue de
lamparinas antigas iluminava as suas ruas de paralelepípedos. Torres de
igrejas, uma infinidade delas, contrastavam com o contorno escurecido das
montanhas no horizonte. Havia um silêncio tão expressivo naquela
madrugada, uma solidão de centenas de anos, que julguei ter visto um
desfile de fantasmas na penumbra das ruelas. Só hoje consigo associar
aquela noite silente à história de suas almas que ainda se recordavam do
ciclo do ouro.
     Amei o seu silêncio, as suas igrejas, as suas beatas, os seus sinos, as
suas chuvas, o seu amanhecer, o seu crepúsculo. Amei essa cidade como se
ama uma mulher: São João del Rei!
     Eu gostava daquele lugar de velhas igrejas e incríveis histórias
sobrenaturais, das ruelas e ladeiras com seixos e casas seculares. E também
me escondia lá em cima da serra cinzenta que dominava a cidade. No meio
daquelas rochas, nos tempos da Conjuração Mineira, os poetas e os rebeldes
tinham também se refugiado. Eu me sentia um conspirador.
Andei muito pelas trilhas que circundam São João del Rei, onde ainda
hoje estão fincadas cruzes pelos mortos dos séculos passados, heróis sem
nome, humildes desaparecidos. Quando chegava o outono, eu seguia as
procissões que subiam a serra, onde, entre os rochedos, os peregrinos
acendiam fogueiras sob as estrelas. Os devotos recordavam as façanhas e
desventuras dos antepassados, cantando ladainhas, como se certas cantigas
religiosas pudessem reanimar almas devastadas. Lembravam-se dos amigos
mortos, com lágrimas e música de violão entrando pela madrugada. Eles
conversavam de rebeliões e paixões amorosas, e eu os escutava com os
olhos a cintilar.
     Aquelas conversas de roça eram falas de gente que vive como quem
desenrola um carretel de linha. A vida dura até acabar a linha, e a morte é o
carretel vazio. Às vezes acontece de a linha se romper antes do tempo, e aí
vem todo tipo de morte inesperada, morte do coração, morte de paixão não
correspondida, morte de fatalidade, morte indesejada, morte repentina.
     Eu amava também as conversas com os veteranos de guerra, os
pracinhas da Força Expedicionária Brasileira, que, entre uma cerveja e outra,
discorriam sobre os combates nos campos de batalha europeus. Eu lhes dava
atenção quando me falavam de táticas, tiros de metralhadora, vitórias
heroicas. Bebia com eles para arrancar-lhes segredos de guerra: quando
bêbados, livres de todo e qualquer bom senso, passavam as mãos pelos
cabelos brancos e esqueciam a brava conquista de Montese para descrever a
suavidade da pele das italianas e a maneira atormentada como elas faziam
amor nas tréguas dos combates.
     Um dia eu tive de deixar São João del Rei, percorrer outras estradas:
adeus, meu amor de cidade, adeus, torres, sinos, procissões, adeus, gente,
adeus, tudo. Levei na memória as orquestras sinfônicas tocando na missa de
domingo, os artistas pintando quadros nas praças, os sinos anunciando
nascimentos e mortes. Segui a vida com essas lembranças, tal qual o
córrego do Lenheiro, que, nascido num olho-d’água tão pequeno na
montanha, nem parecia um rio secular ao cruzar a cidade e gravar tantas
histórias e tantas vozes. Nele também eu fiquei memorizado numa metáfora
de ruído de correnteza no meio da madrugada.
     Agora eu ando por outros lugares. Mas sempre que possível, eu me
junto aos fantasmas das ruelas de São João del Rei. E percorremos, em
noites de garoa, as ruas iluminadas por lamparinas, a solidão dos becos, as
reminiscências da guerra, a manhã dos domingos ensolarados. Sempre
refazemos essas coisas para jamais algum de nós cair no esquecimento. Em
nós o transitório dura tanto quanto a ideia de Deus.

2 comentários:

  1. Muito peculiar e nostálgica sua reverência a São João del Rei. Dissertação perfeita, pois tem o poder de nos transportar para lá.
    E esse 4º parágrafo é simplesmente genial.
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Sua generosidade na leitura me comove. Como sempre.

    ResponderExcluir