segunda-feira, 15 de julho de 2013

MEMÓRIAS

Memórias

Sento-me devagar à mesa que parece vazia. Antigos companheiros
encontram-se ausentes. Alguns partiram sem deixar endereço, outros
fizeram um pacto antecipado com a morte. Deixaram silêncio no lugar das
velhas conversas. Parece que eu herdei o nada, a ausência do alvoroço
humano.
Sou convencido do contrário. O silêncio é sobrenatural. A mesa
alcançou a notoriedade do sagrado. Ficaram velhas lembranças perdurando
por conta própria. Cada palavra dita tornou-se um extenso labirinto, a
continuidade de uma remota procura. Sou capaz de recitar meus sonetos
prediletos e discursar em favor de esquecidas conspirações. Não estão vazias
as cadeiras de minha sala: em cada uma delas, há um poeta bradando um
grito de centenas de séculos. Antigos poemas são declamados na música
suave do vento que cruza minha janela. Velhas memórias atravessam os
séculos, velha mesa sagrada dos espíritos.
De vez em quando, esses velhos amigos vêm conversar comigo em
minha “Távola Redonda”, uma mesa retangular de jacarandá situada no
centro da sala. Perguntam-me sobre as atrocidades humanas e choram sobre
os meus ombros, porque constatam que nada mudou na face da Terra desde
que foram embora. Falam-me de afrontas imemoriais, de guerras
intermináveis, e discursam mesclando sonhos revolucionários com utopias
poéticas – ou seriam sonhos poéticos e utopias revolucionárias? Quando se
lembram de revoluções e mulheres, misturam lágrimas com sorrisos, sol com
chuva, vida com morte.
Um deles, velho poeta que deixou de herança centenas de versos à
única mulher que de fato amou, muda o tom da conversa. Cansado de
tragédias, anima o falatório, dizendo que Shakespeare não perdeu o hábito
de fundar teatros. Levanta-se e me toma pelo braço. Vamos até a janela
para ver um ponto no céu. Ele me conta que, precisamente naquela estrela,
o velho bardo inglês fundou um teatro para os santos. Todos riem das
peripécias de Shakespeare, até mesmo Hemingway, que ainda discorre sobre
caçadas, cuba libre e amores perdidos. E a balbúrdia só termina para que a
gente escute Machado de Assis a dizer que a vida no universo não é nem a
sombra amedrontadora da morte nem a voracidade dos vermes que um dia
tanto assustaram Brás Cubas.
Não há silêncio nem esquecimento em minha “Távola Redonda”. Nela
pronunciam-se alguns fantasmas nostálgicos, imperfeitos e abstratos,
precisando de meus ouvidos, de meus olhos e de minha voz, para se
sentirem visíveis e humanos outra vez, mesmo sabendo que só podem
existir como metáforas poéticas.
É um caso em que as palavras tornam possível a metafísica. A única
metafísica passível de credibilidade. Porque é memória das coisas que foram
e das que ainda vêm. Em sendo assim, causas primeiras.

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