segunda-feira, 29 de julho de 2013

Deus e Epifanias

Deus e Epifanias

     Desejando o absurdo dos impossíveis – entender a essência de Deus –
me dediquei, por muitos anos, a investigar exaustivamente as cabalas mais
antigas, a magia dos livros mais herméticos, as trajetórias dos planetas e
das estrelas. Viajei por muitos lugares, meditei solitariamente nas
montanhas, jejuei nos dias santos, frequentei catedrais e confessionários,
revelei pecados concretos ou imaginados, sonhei com paraísos, memorizei
salmos, rezei terços, cantei mantras, consultei astrólogos e cartomantes,
concebi destinos dentro de computadores. Percorri muitas livrarias e
bibliotecas, algumas misteriosas e quase sombrias, onde li, com espírito
atento, pergaminhos que talvez tivessem sido escritos metade por santos,
metade por demônios. Fascinei-me ante os livros redigidos em idiomas
ininteligíveis; neles permaneceu secreta a sabedoria que eu não pude
desvendar.
     Certo dia abandonei as cidades e os templos suntuosos, os institutos
de teologia e as academias de filosofia. Perdi a paciência com os sábios, com
os matemáticos, com os religiosos, com os filósofos, com os livros
herméticos, com as montanhas tristes, com as estrelas e os planetas
conforme são vistos pelos astrônomos. Olhei o céu, as cidades, o Sol, as
estrelas, com os olhos do homem simples e mortal. Foi talvez esta a primeira
medida certa que tomei em minha existência. A essência de Deus só era
possível de ser percebida pelos fatigados olhos humanos, e não, como eu
chegara a supor, pelos olhos mágicos de um computador programado para
investigar os confins do Universo.
     Fui a um povoado de poucas casas e escassas ruas, que tinha sido
incendiado em tempos de guerra civil. Afirmavam-me os camponeses que
muitos tinham morrido no meio das ruas barrentas e até dentro da igreja.
Dentre os raros sobreviventes, apenas uma mulher desdentada, escondida
numa vala de esgoto, se atrevera a testemunhar o morticínio. Até hoje não
se sabe bem o que ocorreu no dia do massacre, os tribunais andam dando
conta lentamente dos julgamentos. Mas no vilarejo, ressurgido das cinzas do
casario e das vozes perdidas dos mortos, ninguém se interessava por
códigos jurídicos e livros herméticos. Raros eram os que haviam aprendido a
ler com a fluidez necessária para percorrer um livro do início ao fim.
Privilegiados eram os que conseguiam assinar o nome com letras bem
torneadas, depois de longa prática em cadernos de caligrafia distribuídos na
escola rural.
     Fiz perguntas, nunca me responderam. Indicavam isso ou aquilo,
falavam e riam, às vezes até choravam. Nunca compreenderam por que os
horrores do massacre se haviam estendido ao interior da igreja incendiada –
inacreditável, na visão deles, que os homens, movidos pelo furor do ódio,
tivessem ousado violar um templo sagrado. Tampouco compreendiam a
complacência de Deus diante desse acontecimento absurdo, nauseante.
     De manhã cedo, eu saía com eles para arar o solo áspero, arrancar da
terra alfaces e cenouras, beber no poço aberto da plantação. As horas
passavam regularmente, a gente sabia quando era hora do almoço e da
janta, a hora de conversar e cantar, a hora de dormir. Os camponeses
viviam a vida possível de ser vivida naquelas paragens e dispensavam
sistemas filosóficos, textos religiosos, cabalas enigmáticas. Apesar de
indiferença aos mistérios, rezavam muito, inclusive as rezas ineficazes que
tinham rezado no dia do massacre, impotentes diante dos fuzis dos soldados
e das espingardas dos guerrilheiros.
     Eu me acostumei a conversar com eles, ao redor de fogueiras, bebendo
licor de milho. Éramos parcimoniosos com as palavras, preferíamos escutar a
opinião dos outros – ou então beber exageradamente. Bebíamos até quase
perder a consciência. Olhei tantas vezes o céu como eles o olhavam. Diziam-me,
sob o efeito do licor, que seus antepassados desfilavam na noite,
seguindo a luz das estrelas. Por isso eles eram tão calados, o tempo era
escasso para simultaneamente falar e dar atenção às aparições. Fui
perdendo, no convívio com esses camponeses simplórios, meu espírito
inquisidor, minha curiosidade atrevida, tudo o que suprimira em mim, até
àqueles tempos, a capacidade de contemplar placidamente as estrelas
cadentes – simplesmente apreciá-las, sem nada inquirir, sem arquitetar
códigos cabalísticos em céus estrelados; era disso que eu precisava.
     Numa daquelas cintilantes noites, ao redor dos camponeses e das
fogueiras, esvaziei depressa várias garrafas de licor, bebendo com avidez,
querendo perder os sentidos depressa. Eles me olhavam em silêncio, com
olhos de visagens resignadas. Desfaleci sentindo a brisa morna no rosto.
Dormi ao relento. Quando despertei, no meio da manhã seguinte, o povoado
estava vazio, sem sinal de vida. Andei pelas ruas poeirentas, gritei nomes,
disse que era hora de arar a terra e colher lindas alfaces. Só silêncio. Muito
silêncio.
     Tive, subitamente, esta revelação miraculosa: o silêncio. Essa era a tal
de essência de Deus que se me apresentava inesperadamente. Eu não sabia
até então que as epifanias só se davam em plenos e arrebatadores silêncios.

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